LESÃO RENAL AGUDA COMO MANIFESTAÇÃO INICIAL DA NEFROPATIA POR IGA
ACUTE RENAL INJURY AT PRESENTATION OF IGA NEPHROPATHY
Introdução
As glomerulonefrites (GN) constituem uma causa não desprezível de doença renal aguda ou crónica1. O seu diagnóstico é dificultado pela enorme variedade de manifestações clínicas1. A Nefropatia por IgA (NIgA) ou doença de Berger foi descrita em 1968 por Berger e Hinglais, sendo a GN primária mais frequente nos países desenvolvidos1,2. A sua incidência é maior nas 2ª e 3ª décadas de vida, sendo duas vezes mais frequente no sexo masculino que no feminino. A forma de apresentação clínica é muito variável; o seu espectro clínico varia desde a hematúria assintomática a GN rapidamente progressiva3,4. Tipicamente manifesta-se sob a forma de episódios de hematúria macroscópica recorrente (40-50%) num jovem, associada ou não a proteinúria, podendo surgir concomitantemente com infeção respiratória superior ou gastrointestinal4. A lesão renal aguda (LRA) como manifestação inicial deste tipo de glomerulonefrite é rara. O seu diagnóstico é feito através de biopsia renal identificando-se, por imunofluorescência, depósitos de IgA na parede mesangial. Tem um curso frequentemente benigno mas cerca de 15% dos pacientes evoluem para doença renal terminal em 10 anos 3.
Caso Clínico
Descrevemos o caso de uma mulher, de 40 anos, que recorreu ao Serviço de Urgência com queixas de odinofagia, hematúria e febre com 8 dias de evolução, encontrando-se já sob antibioterapia com amoxicilina/ácido clavulânico desde o dia anterior. A doente não tinha antecedentes relevantes e não fazia medicação crónica. Ao exame objetivo, encontrava-se febril, com valores tensionais estáveis e sem edemas. Tinha adenopatias cervicais palpáveis e a observação da orofaringe evidenciava edema, eritema e exsudato amigdalino, sem outras alterações de relevo. Analiticamente, apresentava aumento da proteína C reativa (PCR: 18,88mg/dl) e creatinina sérica de 3,1mg/dl, com uma taxa de filtração glomerular (TFG) estimada de 19,0ml/min. Hematúria macroscópica e proteinúria foram detetadas no sedimento urinário. Perante o quadro de LRA com hematúria macroscópica sinfaringítica, optou-se pelo internamento para estudo e tratamento. Foi instituída antibioterapia com Benzilpenicilina intra-muscular e fluidoterapia para correção da função renal. A doente efetuou estudo analítico (quadro I) alargado, nomeadamente serologias víricas, estudo do complemento, das imunoglobulinas séricas e de auto-imunidade (incluindo anticorpo anti-membrana basal glomerular) que não revelaram quaisquer alterações. A proteinúria das 24 horas evidenciou proteinúria na faixa nefrítica (546mg/24H) e na ecografia renal era evidente diminuição da diferenciação parênquimo-sinusal, correlacionando-se este achado com compromisso funcional.
Para esclarecimento etiológico, obtivemos a colaboração da Nefrologia que optou pela realização de biopsia renal. Durante o internamento, na primeira semana, a doente manteve temperaturas auriculares superiores a 37,7ºC mas nunca superiores a 38,2ºC. Instituiu-se apenas fluidoterapia intensiva de modo a aumentar a perfusão renal e foi possível normalizar progressivamente a sua função, tendo a doente tido alta orientada para consulta de Medicina e Nefrologia, a aguardar o resultado da biopsia. Esta revelou alterações compatíveis com glomerulonefrite proliferativa mesangial, com compromisso intersticial e a imunofluorescência identificou depósitos glomerulares de IgA, confirmando-se o diagnóstico de NIgA. Na reavaliação, dois meses depois, a doente tinha recuperado a função renal (Creatinina: 0,6mg/dl e TFG estimada de 98.3ml/min), sem proteinúria, mantendo valores tensionais estáveis, embora tivesse apresentado entretanto outro episódio de hematúria macroscópica sinfaringítica mas sem rebate na função renal. Foi observada por Otorrinolaringologia para ponderar realização de amigdalectomia que, até ao momento ainda não foi realizada.
Discussão
A NIgA é a GN primária mais prevalente, variando a sua taxa de prevalência consoante a região geográfica2. A NIgA secundária é incomum, estando habitualmente associada a cirrose hepática, doença celíaca e infeção VIH. A sua etiologia permanece desconhecida e alvo de muitos estudos. Habitualmente é precedida por infeções respiratórias altas ou, menos frequentemente, por síndrome febril ou sintomas gastrintestinais3.
O diagnóstico é confirmado apenas por biopsia renal pois não tem uma apresentação clínica patognomónica, sendo o seu espetro bastante amplo, desde formas praticamente assintomáticas até outras rapidamente progressivas3. Tipicamente manifesta-se por microhematúria e proteinúria, habitualmente na faixa nefrítica, ocorrendo síndrome nefrótico em até 10% casos. Na nossa doente, além desta clínica típica, apresentou-se também com LRA.
A LRA reversível associada a hematúria macroscópica é uma manifestação inicial rara da NIgA, ocorrendo em menos de 5% dos casos3,5. Por esse motivo, a hipótese de NIgA apesar de ser um dos diagnósticos diferenciais colocados, constituiu um fator que nos levou a alargar o espetro de etiologias possíveis. Os mecanismos fisiopatológicos envolvidos no desenvolvimento de LRA incluem quer a formação de crescentes – NIgA Crescêntica; quer fenómenos de necrose tubular aguda associados a microhematúria e acumulação de cilíndros eritrocitários com a consequente oclusão dos túbulos renais6,7. Trata-se habitualmente de um fenómeno reversível e a normalização da função renal é possível apenas com medidas conservadoras3,5.
Os surtos de hematúria macroscópica são uma complicação frequente associada à NIgA, a maioria dos quais desencadeados por infeções do trato respiratório superior, podendo ser recorrentes5. Contudo, em simultâneo com a hematúria macroscópica, alguns pacientes podem desenvolver agravamento da função renal5,7. Segundo Gutiérrez et al, 25% dos pacientes com NIgA que se manifestam com episódio de LRA e hematúria macroscópica não recuperam a função renal basal5, o que não se verificou neste caso, constituindo um indicador de melhor prognóstico.
Alguns dos achados clínicos ou laboratoriais presentes no momento do diagnóstico têm valor prognóstico, constituindo marcadores de progressão da doença. A proteinúria é o fator clínico mais importante e é tanto mais forte quanto mais marcada for, estando demonstrado um maior risco de doença renal crónica terminal (DRCT) e um declínio mais rápido da função renal quando existe um valor de proteinúria superior a 1g/dia5. A evidência de hipertensão não controlada no seguimento está associada ao agravamento da proteinúria e, consequentemente, à diminuição mais rápida da TFG 4,5, assim como uma baixa TFG à apresentação condiciona maior risco de progressão para DRCT 5. À admissão, a nossa doente apresentava uma TFG baixa (19,0ml/min), embora com rápida recuperação para os valores basais normais. Este foi o único fator de mau prognóstico presente, pois apresentava uma proteinúria <0,6g/dia que não se voltou a repetir e, até ao momento, tem tido valores tensionais controlados.
Apesar de os achados clínicos serem, aparentemente, indicadores de prognóstico mais fiáveis, existe evidência de que certos achados na biopsia renal dos pacientes com NIgA encontram-se relacionados com maior risco de progressão da doença renal. Neste sentido foi desenvolvida a Classificação de Oxford de NIgA que identificou alterações histológicas específicas (hipercelularidade mesangial; glomeruloesclerose segmentar; hipercelularidade endocapilar e atrofia tubular/fibrose intersticial) como variáveis que determinam risco de progessão da lesão renal e que, associadas aos preditores clínicos, proporcionam uma melhor acurácia na determinação do prognóstico e terapêutica adequada8.
A determinação do risco é essencial para se definir uma abordagem terapêutica correta e identificação dos doentes com maior risco de progressão da doença. O seu tratamento varia com o grau de gravidade da apresentação clínica podendo consistir em seguimento para monitorização nas formas mais leves, em tratamento de suporte no caso de proteinúria sub-nefrótica, hipertensão arterial e LRA ligeira9. Caso haja persistência de proteinúria superior a 1g/dia o início de corticoterapia isoladamente pode ter benefício enquanto a TFG for superior a 50ml/min8. No paciente atípico que se manifesta com Síndrome Nefrótica ou LRA rapidamente progressiva deve ser considerada a hipótese de vasculite e iniciada imunossupressão9.
Nos casos de NIgA que cursem com LRA após infeção amigdalina, pode estar indicada a realização de amigdalectomia10. Evidências demonstram que a sua realização pode ter influência na manutenção de uma função renal estável, na melhoria da proliferação mesangial e na deposição de IgA, sem causar imunossupressão significativa ou maior incidência de infeções respiratórias10. Contudo, pode não ter qualquer efeito de prognóstico em doentes com lesão renal mais avançada10.
Apesar de o seu prognóstico a curto prazo ser favorável, a sua evolução a longo prazo permanece incerta, podendo evoluir para doença renal terminal. Tal como recomendado, na doente em causa perante a resolução de todas as manifestações iniciais foi adotada uma estratégia de vigilância clínica regular.
Através do presente caso e de revisão da literatura, os autores pretendem realçar que os pacientes com NIgA e hematúria macroscópica podem desenvolver LRA devido a necrose tubular aguda ou formação de crescentes. Nestes pacientes, a depleção de volume deve ser vigorosamente tratada. A identificação desta situação é de extrema importância uma vez que pode prevenir uma evolução desfavorável e a necessidade de terapêutica imunossupressora.
Bibliografia
1 Nicole M Isbel, Glomerulonephritis – Management in general practice, Australian Family Physician, Vol.34, No.11, November 2005
2 Glassock, R. J., IgA nephropathy: challenges and opportunities, Cleveland Clinic Journal of Medicina, Vol 75, No.8, August 2008
3 Jonathan Barratt and John Feehally, IgA Nephropathy, J Am Soc Nephrol 16: 2088–2097, 2005.
4 Coppo, Rosanna; D’Amico, Guiseppe, Factors Predicting Progression of IgA Nephropaties, J Nephrol 2005; 18:503-512
5 Guttiérrez, Eduardo; González, Esther; Hernández, Eduardo; el al, Factors that determine an incomplete recovery of renal function in macrohematuria-induced acute
renal failure of IgA Nephropathy, Clin J Am Soc Nephrol 2: 51-57, 2007
6 Wen YK, Chen ML, The spectrum of acute renal failure in IgA Nephropathy, Ren Fail, 2010 May; 32(4): 428-33
7 Delclaux C., et al, Acute Reversible Renal Failure with Macroscopic Hematuria in IgA Nephropathy, Nephrol Dial Transplant 8: 195-199, 1993
8 Cattran DC, et al, The Oxford Classification of IgA Nephropaphy: rationale, clinicopathological correlations and classification, Kidney Int., Sep;76(5):534-45 (2009)
9 Floege, Jurgen; Eitner, Frank, Current Theraphy for IgA Nephropathy, J Am Soc Nephrol 22: 1785-1794, 2011.
10 Xie, Yuansheng; Chen, Xiangmei, et al, Relationship between tonsils and IgA nephropathy as well as indications of tonsillectomy, Kidney International, Vol. 65 (2004), pp. 1135–1144
Quadro I
Parâmetros analíticos à admissão
| |
| |
Hemoglobina (g/dl) | 11,4 |
Ureia (mg/dl) | 70,5 |
Creatinina (mg/dl) | 3,1 |
PCR (mg/dl) | 18,88 |
Anti-Estreptolisina O (U/ml) | 169 |
Albumina (g/dl) | 2,78 |
Colesterol total (mg/dl) | 142 |
Colesterol HDL (mg/dl) | 31,1 |
Colesterol LDL (mg/dl) | 90 |
Triglicerídeos (mg/dl) | 80 |
Clearance creatinina (urina de 24 horas) (ml/min) | 32,52 |
Proteinúria (mg/24 horas) | 546 |
BIBLIOGRAFIA
Bibliografia
1 Nicole M Isbel, Glomerulonephritis – Management in general practice, Australian Family Physician, Vol.34, No.11, November 2005
2 Glassock, R. J., IgA nephropathy: challenges and opportunities, Cleveland Clinic Journal of Medicina, Vol 75, No.8, August 2008
3 Jonathan Barratt and John Feehally, IgA Nephropathy, J Am Soc Nephrol 16: 2088–2097, 2005.
4 Coppo, Rosanna; D’Amico, Guiseppe, Factors Predicting Progression of IgA Nephropaties, J Nephrol 2005; 18:503-512
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renal failure of IgA Nephropathy, Clin J Am Soc Nephrol 2: 51-57, 2007
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9 Floege, Jurgen; Eitner, Frank, Current Theraphy for IgA Nephropathy, J Am Soc Nephrol 22: 1785-1794, 2011.
10 Xie, Yuansheng; Chen, Xiangmei, et al, Relationship between tonsils and IgA nephropathy as well as indications of tonsillectomy, Kidney International, Vol. 65 (2004), pp. 1135–1144