INTRODUÇÃO
A Raoultella ornithinolytica é uma Enterobacteriaceae aeróbia gram-negativa que habita o aparelho gastrintestinal. Sabe-se que esta bactéria reside em ambientes aquáticos, é comensal nalguns peixes e pode ser encontrada em ambiente hospitalar (1).
O potencial patogénico da Raoultella ornithinolytica tem sido alvo de interesse crescente, tendo sido descritos casos de intoxicação por consumo de peixe no extremo oriente e casos de colangite em doentes com neoplasia (2).
Algumas das características do microorganismo ligadas à sua patogenicidade são: 1 – a capacidade para aderir ao tecido humano; 2 – a propriedade de converter a histidina a histamina em peixes da família scombridae como o atum, causando um quadro alérgico/anafilactóide, como referido num caso de infecção de pé diabético (3); 3 – a capacidade de formar biofilme nos catéteres urinários – causa frequente de infecções do tracto urinário em ambiente hospitalar.
Apesar destas características, as infecções a este agente são raras, sobretudo na forma de bacteriémia. No entanto, estas podem estar subestimadas devido à dificuldade de identificação deste microrganismo pelos métodos laboratoriais padrão (1).
Raoultella ornithinolyitica
A Raoultella ornithinolytica é um bacilo gram-negativo renomeado ao longo do tempo devido a reformulações da classificação taxonómica. Anteriormente designada como Klebsiella oxytoca foi renomeada em 1989 como ornitina positiva e produtora de histamina. Em 2001 foi criado o género Raoultella através da análise genética, incluindo as espécies Klebsiella ornithinolytica, planticola e terrigena (4,5). Num estudo publicado em 2011 por Park e colaboradores, utilizando sistemas mais avançados de análise genérica como o rRNA 16s, conseguiu distinguir-se de forma mais eficaz os géneros Klebsiella e Raoultella (6)
Relevância clínica
A R. ornithinolytica encontra-se habitualmente em ambientes aquáticos, no sistema digestivo dos peixes (particularmente em peixes da família scombridae), e em térmitas (4).
Um estudo de larga escala identificou 88 estirpes de Raoultella (planticola e ornithinolytica) em amostras de fezes humanas, pelo que se admite que estes microrganismos possam ser comensais e parte do microbioma humano (4).
A infecção por esta bactéria tem sido associada a dois tipos principais de apresentação clínica. Pode apresentar-se como intoxicação aguda, relacionada com a libertação de histamina após consumo de peixe (intoxicação por peixes da família Scombridae) ou manifestar-se como colangite, frequentemente associada a neoplasias. Estão ainda descritos casos de infecções urinárias, pneumonias e de uma infecção de ferida de pé diabético (3, 7, 8-11). (tabela 1).
Caso Clínico
Doente de 90 anos de idade, japonês, antigo pescador, residente em Portugal há 50 anos, recorreu ao serviço de urgência por dor abdominal, náuseas e icterícia com uma semana de evolução, associadas a quadro constitucional de astenia e perda ponderal não quantificada. Na admissão estava ictérico, mas apirético e com uma observação cardiorespiratória ou abdominal sem alterações de relevo.
O doente não apresentava história médica significativa, excepto hipertensão arterial essencial. De referir que fazia consumo regular de peixe cru.
Apresentava aumento dos parâmetros de inflamação com Leucocitose 15 000 células/uL com neutrofilia de 88%, PCR 25 mg/dl e bilirrubina total de 7,23 mg/dL, com predomínio de bilirrubina directa, γGT 140 UI/L, Fosfatase alcalina 356 UI/L, AST 31 UI/L e AST 62 UI/L.
A ecografia abdominal revelou dilatação ligeira das vias biliares intra-hepáticas e pelo menos da via biliar extra-hepática proximal visualizável.
Para melhor documentação das alterações encontradas na ecografia abdominal realizou-se TC abdominalque revelou litíase biliar e micro-abcessos hepáticos. Foi realizada esfincterectomia com extracção de cálculos por CPRE. Nas hemoculturas isolou-se uma Raoultella ornithinolyitica, tendo sido iniciada antibioterapia com ciprofloxacina endovenosa, de acordo com antibiograma.
Após a instituição terapêutica, observou-se resolução completa da sintomatologia com normalização dos valores analíticos e imagiológicos.
Atendendo à ausência de queixas do foro intestinal num doente com 92 anos, optou-se por não prosseguir estudo complementar por colonoscopia, admitindo uma margem terapêutica estreita.
O doente manteve seguimento durante dois anos com reavaliação imagiológica por TC que documentou resolução completa das alterações incialmente encontradas. Durante este período o doente manteve-se assintomático.
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
Scombroid fish poisoning
Kanki e os seus colaboradores demonstraram que as estirpes de R. ornithinolytica são frequentemente isoladas no peixe cru e são as bactérias que mais causam intoxicações mediadas pela histamina. Espécies da família Scombridae, como o atum, a cavala e a sarda, são ricas em histidina, sendo que a R. ornithinolytica tem a capacidade de transformar a histidina em histamina. (4)
Esta síndrome está associada a um inapropriado armazenamento de algumas destas espécies, uma vez que a Raoultella spp apresenta a particularidade de se replicar lentamente a 4 ºC, temperatura a que frequentemente o peixe é conservado (4).
O quadro clínico que se observa nas intoxicações deriva da libertação de histamina. Na fase aguda observam-se náuseas, vómitos, dor abdominal, diarreia, flush e dispneia. Os doentes podem ter ainda rash cutâneo e prurido. Estes sintomas iniciam-se geralmente após o consumo de peixe e persistem 8 a 12 horas. Na maioria dos casos esta intoxicação apresenta uma evolução favorável, mas em doentes com maior susceptibilidade poderá ter mais complicações, sobretudo respiratórias.
Em 2007 observou-se um surto de Raoultella ornithinolytica numa unidade de neonatalogia de um hospital português, sendo sido afetadas 8 crianças e tendo uma delas falecido. Apesar de ter sido levantada a hipótese de ter havido contaminação dos sacos de alimentação parentérica, o mesmo nunca foi comprovado. Também não foi estabelecido um nexo de causalidade com a morte, já que foram isolados outros agentes patogénicos mais agressivos nesse doente. (9)
Infecção Hepato-biliar
Numa revisão da literatura até 2016 encontrámos casos descritos de infecções a Raoultella ornithinolytica com isolamento do agente em hemoculturas. É transversal a estes doentes algum grau de imunodepressão, (sobretudo pela presença de neoplasia ou diabetes), ou pelos doentes apresentarem obstrução das vias biliares (1,2,10-12). (tabela 1).
É frequente os doentes apresentaram-se com dor abdominal, icterícia e febre e com elevação dos parâmetros de infecção e colestase hepática.
Boattini e colaboradores num estudo retrospetivo recente realizado em hospitais da área de Lisboa, identificaram 25 isolamentos de R. ornithinolytica entre 2010 e 2014, dos quais 5 foram em culturas de sangue. Destes 25 doentes, 16 (64%) apresentavam algum grau de imunodepressão, sendo o mais comum tumores sólidos ou doentes transplantados. (10)
A R. ornithinolytica é encontrada em peixes que são frequentemente consumidos em Portugal, como a sarda, o atum e a cavala. Apesar deste hábito, existem entre nós poucos casos documentados de infecção por este agente.
O nosso caso desperta alguns pontos de interesse nomeadamente a relação entre a origem do doente (Japão), os seus hábitos alimentares e o seu trabalho com peixe crú. Apesar da sua origem japonesa o doente residia em Portugal há cerca de 50 anos.
Seria um portador assintomático de Raoultella e foi a oclusão das vias biliares que despoletou o quadro clínico? Sabe-se que a Raoultella faz parte do microbioma intestinal humano, sendo a sua virulência baixa e associada a infecção em doentes imunodeprimidos. O seu tropismo para as vias biliares não está descrito e no entanto a maioria dos casos identificados com infecção por este agente em culturas de sangue apresentam infecções das vias biliares.
Ou seria uma infecção recente adquirida entre nós?
Esta hipótese parece ser a mais provável. Até 2015 não existiam casos publicados em Portugal de infecção a Raoultella ornithinolytica com isolamento de agente em hemoculturas. Na publicação recente de Boattini e colaboradores (10) foram identificados 25 casos de infecção por Raoultella com 5 casos de isolamento em hemoculturas.
Haverá um aumento da prevalência desta infecção, relacionada com a mudança de hábitos alimentares, como o consumo mais frequente de sushi e outra formas de peixe cru? Ou será que o número crescente de casos diagnosticados se deve à utilização crescente de novas técnicas laboratoriais, mais sensíveis que os métodos clássicos, o que estaria a subestimar a realidade da prevalência de infecções por esta bactéria?
A infecção com Raoultella ornithinolytica tem a potencialidade de emergir como uma infecção adquirida na comunidade, devido ao consumo crescente de peixe crú, sob a forma de sushi, sashimi e carpaccio.
Esta situação levanta alguns desafios de identificação e tratamento, nomeadamente como agente causal em infecções das vias biliares ou urinárias, mesmo em doentes imunocompetentes, embora em geral elas tenham um bom prognóstico.
O consumo de peixe crú não está isento de riscos potenciais para a saúde, dada a possibilidade de aquisição de infecções com bactérias patogénicas ou parasitas, o que leva a considerar seriamente a qualidade higiénica e sanitária da venda desses alimentos, o que será possível com uma boa refrigeração de peixe crú.
Quadro I
Tabela 1
Quadro clínico | Comorbilidades / Factores de Risco |
| |
• Intoxicação por peixes da família Scrombidae | • Consumo de peixe não cozinhado |
• Infecção urinária baixa • Pielonefrite • Sepsis • Colangite, Colecistite • Pneumonia • Infecção pele e tecidos moles • Osteomielite • Infecção Sistema nervoso central • Infecção gastrointestinal | • Diabetes • Doença renal crónica • Doentes pós-transplante • Terapêutica com corticóide ou imunossupressor • Neoplasia • Litíase biliar ou coledocolitíase • Cirurgia ou manipulação prévia das vias biliares • Algaliação • Ventilação mecânica |
| |
Tabela 1: quadro clínico e factores de risco para infecção a R. ornithinolyitica ( ref: 1, 2 , 8-13)
BIBLIOGRAFIA
(1) Seng Piseth, et al. Emerging role of Raoultella ornithinolytica in human infections: a series of cases and review of the literature. International Journal of Infectious Diseases 45 (2016): 65-71.
(2) Hadano, Yoshiro, et al. ´Raoultella ornithinolytica bacteremia in cancer patients: report of three cases.´ Internal Medicine 51.22 (2012): 3193-3195.
(3) Solak, Yalcin, et al. ´A rare human infection of Raoultella ornithinolytica in a diabetic foot lesion.´ Annals of Saudi medicine 31.1 (2011): 93-93.
(4) Kanki M, Yoda T, Tsukamoto T, Shibata T. Klebsiella pneumoniae Produces No Histamine: Raoultella planticola and Raoultella ornithinolytica Strains Are Histamine Producers. Applied and Environmental Microbiology. 2002;68(7):3462-3466. doi:10.1128/AEM.68.7.3462-3466.2002.
(5) Drancourt, M., et al. ´Phylogenetic analyses of Klebsiella species delineate Klebsiella and Raoultella gen. nov., with description of Raoultella ornithinolytica comb. nov., Raoultella terrigena comb. nov. and Raoultella planticola comb. nov.´ International Journal of Systematic and Evolutionary Microbiology 51.3 (2001): 925-932.
(6) Park, Jeong Su, et al. ´Evaluation of three phenotypic identification systems for clinical isolates of Raoultella ornithinolytica.´ Journal of medical microbiology 60.4 (2011): 492-499.
(7) García-Lozano T, Pascual Plá FJ, Aznar Oroval E., Raoultella ornithinolytica in urinary tract infections. Clinical and microbiological study of a series of 4 oncologic patients. Med Clin (Barc). 2013;141(3):138-9. doi: 10.1016/j.medcli.2012.11.021. Epub 2013 Jan 18.
(8) Boattini M., Almeida A, Cardoso C. et al. ´Infections on the rise: Raoultella spp., clinical and microbiological findings from a retrospective study, 2010 - 2014.´Infectious Diseases 48.1 (2016): 87-91
(9) Cunha, Pedro ‘Menores infectados por bactéria considerada muito rara’ in Público (23/05/2007).
At https://www.publico.pt/sociedade/noticia/hospital-s-joao-cinco-criancas-ainda-internadas-registam-evolucao-favoravel-1294850
(10) Pulian Morais V, Daporta MT, Bao AF, Campello MG, Quindós Andrés G. Enteric Fever-Like Syndrome Caused by Raoultella ornithinolytica (Klebsiella ornithinolytica) . Journal of Clinical Microbiology. 2009;47(3):868-869.
(11) Haruki Y, Hagiya H, Sakuma A, Murase T, Sugiyama T, Kondo S. Clinical characteristics of Raoultella ornithinolytica bacteremia: a case series and literature review.J Infect Chemother. 2014;20(9):589-91. doi: 10.1016/j.jiac.2014.05.005. Epub 2014 Jul 8.
(12) Chun S, Yun JW, Huh HJ, Lee NY. Clinical characteristics of Raoultella ornithinolytica bacteremia. Infection. 2015;43(1):59-64. doi: 10.1007/s15010-014-0696-z. Epub 2014 Nov 1.
(13) Yamakawa, Kiyoshi, et al. ´Bacteremia Caused by Raoultella ornithinolytica in Two Children.´ The Pediatric infectious disease journal 35.4 (2016): 452-453.