Introdução
A Cetoacidose Diabética (CAD) é uma complicação grave da Diabetes Mellitus (DM). É caracterizada pela tríade: hiperglicemia (glicemia superior a 200 mg/dL pelos critérios da Joint British Diabetes Society ou superior a 250 mg/dL pela American Diabetes Association), acidemia metabólica com aumento do gap aniónico e cetonemia.1 Em 1973 Munro et al2 descreveu uma nova entidade designada por cetoacidose diabética euglicemica (CADEu) que se diferencia da anterior por hiperglicemias moderadas, frequentemente inferiores a 200 mg/dL, o que pode levar ao atraso no diagnóstico e tratamento, principalmente se o doente apresentar outras causas para a cetoacidose, com consequências potencialmente fatais.1,3
De entre as causas descritas para a CADeu contam-se a gravidez, baixo consumo calórico, cirurgia bariátrica ou, mais recentemente, toma de inibidores do cotransportador sódio-glucose 2 (iSGLT2). 1
Caso Clínico
Apresentamos o caso de um homem de 71 anos, previamente autónomo, com antecedentes pessoais de diabetes mellitus tipo 2 com 19 anos de diagnóstico, hipertensão arterial, dislipidémia, enfarte agudo do miocárdio 6 meses antes e patologia ulcerosa péptica. Polimedicado com pantoprazol 40mg id, clopidogrel 75 mg id, ácido acetilsalicílico 100 mg id, atorvastatina 40 mg id, perindopril 10mg id, indapamida 2,5mg id, amlodipina 10mg id, metformina 1000mg com vildagliptina 50mg bid e gliclazida 60mg id. Por hemoglobina glicada de 7,4% e pelos potenciais benefícios cardiovasculares,o médico assistente iniciou empagliflozina 10 mg id 15 dias antes.
Recorreu ao Serviço de Urgência (SU) por astenia, adinamia, anorexia, mal-estar geral, diminuição do débito urinário e diminuição da força muscular generalizada com uma semana de evolução que culminou em anúria, náuseas e vómitos alimentares no dia da admissão hospitalar.
No exame objectivo à admissão apresentava hipotensão (PA 66/45 mmHg), taquicardia (FC 124 bpm), taquipneia (FR 28 cpm) e apirexia (TT 36,8ºC). Encontrava-se vigil mas confuso, sem sinais meníngeos, tetraparesia (força muscular 3/5), pele e mucosas desidratadas, anictérico, acianótico, respiração de Kussmaul e sem alterações com significado patológico na auscultação cardio-pulmonar.
Foi admitido de imediato na Unidade de Observação, monitorizado e foram simultaneamente garantidos dois acessos venosos periféricos com início de fluidoterapia, colhido sangue venoso para análise, algaliado com saída de 200ml de urina piúrica e realizada gasimetria arterial que revelou acidemia metabólica grave com um gap aniónico aumentado (tabela 1).
Após resgate volémico inicial o doente melhorou o nível tensional (111/75mmHg) e houve melhoria do estado neurológico.
As análises de sangue venoso (tabela 2) mostraram leucocitose à custa de neutrofilia, normoglicemia, creatina cinase de 2987 UI/L, creatinina 6,7 mg/dL, potássio 3,3mmol/L, proteína C reactiva de 202 mg/dL e exame sumário de urina com leucocitúria, nitritos e glicosúria.
Tendo em conta os antecedentes medicamentosos, exame físico e dados gasimétricos foi avaliada uma cetonemia indoseável por valor demasiado elevado.
Foram assumidos os diagnósticos de CADeu, infecção do trato urinário, lesão renal aguda e rabdomiólise.
O tratamento dirigido à CADeu seguiu os mesmos princípios que para a cetoacidose diabética clássica. Iniciou fluidoterapia com soro dextrosado a um ritmo de 20mL/kg/h com 20mEq de cloreto de potássio por cada litro de soro infundido, perfusão contínua de insulina rápida a um ritmo de 0,14UI/kg/h, monitorização dos sinais vitais e medição horária da glicémia, cetonemia e caliémia até normalização e resolução do caso clínico. Paralelamente, após colheita de exames culturais, iniciou antibioterapia empírica com ceftriaxone. Foi posteriormente transferido para a enfermaria de Medicina Interna.
Discussão
Os sintomas inespecíficos do doente e possivelmente justificáveis pela intercorrência infeciosa, associados a uma glicemia de 140 mg/dL na altura da admissão, podiam fazer passar despercebido o diagnóstico de CADeu, com consequências previsivelmente nefastas pelo não início precoce do tratamento dirigido.
De relevar que a CADeu é registada mais frequentemente em doentes com DM tipo 1, Latent Autoimmune Diabetes of Adulthood e na DM da gravidez 1,2,3,5 Este caso torna-se particularmente interessante e relativamente incomum por se tratar de um doente com DM tipo 2, o que contribuiu para dificultar o diagnóstico.
Os iSGLT2 são uma classe terapêutica aprovada no tratamento da DM tipo 2 que actuam ao diminuir a reabsorção glicose da urina primordial no túbulo contornado proximal, por inibição do co-transportador sódio-glucose. A fisiopatologia da CADeu no nosso doente é diferente da CAD nos doentes com DM tipo 1. O doente estava medicado com empagliflozina o que levou a um aumento da glicosúria, com consequente diminuição da glicémica, agravada pelo baixo consumo alimentar nos dias anteriores. Como a produção de insulina é dependente dos níveis de glucose sanguínea, a libertação pancreática de insulina consequentemente diminuiu. A redução da inibição insulínica associada à diminuição do transporte de glicose para a célula alfa mediada pelo co-transportador sódio-glucose levou a um aumento dos níveis plasmáticos de glucagon. Estas alterações hormonais levaram à glicogenólise e gluconeogenese hepática, aumentando a produção endógena de glicose. Paralelamente, o défice insulínico relativo estimulou a lipólise com libertação de ácidos gordos livres, subsequentemente convertidos a acetilcoenzima A na mitocôndria hepática por beta-oxidação que após metabolização são convertidos a ácido acetoacético, posteriormente reduzido a betahidroxibutirato. É a acumulação destes dois ácidos que causou a acidose metabólica com aumento marcado do hiato aniónico. A normoglicémica aparente neste caso clínico resultou do equilíbrio dinâmico entre a produção endógena e a espoliação renal de glucose. 1,4
No doente descrito, a infecção do trato urinário, também registada como efeito secundário dos iSGLT25, levou ao aumento das hormonas contraregulatórias (cortisol e catecolaminas), que também terá contribuído para o défice relativo de insulina e consequente desenvolvimento da CADeu. A lesão renal aguda será de causa mista: pré-renal, consequência da diurese osmótica com espoliação de volume resultante do mecanismo de acção do fármaco, e renal, no contexo da infecção.5
Os iSGLT2 podem contribuir directa e indirectamente para causar cetoacidose, através de vários mecanismos biológicos diferentes.6Estes fármacos diminuem a glicémia por um mecanismo insulino-independente, levando à redução da dose de insulina necessária e consequentemente aumento da lipólise e cetogénese hepática.1,6 Por outro lado, aumentam o glucagon plasmático quer indirectamente, em resposta à glicosúria7, como directamente por aumento da expressão do gene do preproglucagon na célula alfa pancreática.8 Curiosamente, a florizina (um inibidor não selectivo do SGLT1 e SGLT2) aumenta a reabsorção tubular renal de acetoacetato,9 caso os inibidores selectivos do SGLT2 tenham um efeito semelhante, é possível que também possam activamente diminuir o clearence de corpos cetónicos.
Os principais factores de risco descritos para CADeu em doentes medicados com iSGLT2 são a cirurgia, dietas pobres em hidratos de carbono, suspensão ou diminuição da dose de insulina e intercorrência médica aguda.10
Conclusão
Reportamos um caso de CADeu como uma complicação do uso de empagliflozina, cujo diagnóstico apesar de simples, pode ser desafiador no SU com consequências potencialmente fatais. Alerta-se para a necessidade da realização de gasimetria arterial e medição da cetonemia a todos os doentes medicados com iSGLT2 que se apresentem no SU por doença aguda ou por sintomas inespecíficos como vómitos, náusea, dor abdominal ou letargia de forma a garantir um diagnóstico precoce de CADeu e o início atempado do tratamento.
Quadro I
Gasimetria na admissão (fiO2 21%)
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pH | 7,179 |
pCO2 | 23,1 mmHg |
pO2 | 96 mmHg |
HCO3 | 8,6 mmol/L |
Hiato Aniónico | 37,5 mmol/L |
Lactatos | 0,9 mmol/L |
Sódio | 128 mmol/L |
Potássio | 4,5 mmol/L |
Cloro | 87 mmol/L |
Glicose | 141 mg/dL |
Gasimetria na admissão (fiO2 21%)
Quadro II
Análises sangue venoso e exame sumário de urina
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Hemoglobina | 11,1 g/dL |
Hematócrito | 0,31 L/L |
Leucócitos | 16,2x109/L |
Neutrófilos | 13,5x109/L |
Plaquetas | 285x109/L |
INR | 1,2 |
Glicémia | 140 mg/dL |
Creatina Cinase | 2987 UI/L |
Aspartato Aminotransferase | 92 UI/L |
Alanina Aminotransferase | 91 UI/L |
Fosfatase Alcalina | 81 UI/L |
Amilase | 79 UI/L |
Lipase | 63 UI/L |
Sódio | 129 UI/L |
Potássio | 3,3 mmol/L |
Cloro | 76 mmol/L |
Creatinina | 6,7mg/dL |
Ureia | 94 mg/dL |
Proteína C Reactiva | 202 mg/dL |
Sumária Urina | Nitritos ++ Leucócitos ++ Glicose++ |
Análises sangue venoso e exame sumário de urina
BIBLIOGRAFIA
1 Barski, Leonid et al. Euglycemic diabetic ketoacidosis. European Journal of Internal Medicine, Volume 63, 9 - 14.
2 Munro JF, Campbell IW, McCuish AC, Duncan LJ. Euglycaemic diabetic ketoacidosis. Br Med J. 1973 Jun 9;2(5866):578-80.
3 Modi A, Agrawal A, Morgan F. Euglycemic diabetic ketoacidosis: a review. Curr Diabetes Rev 2017;13(3):315–21.
4 Chou YM, Seak CJ, Goh ZNL, Seak JC, Seak CK, Lin CC. Euglycemic diabetic ketoacidosis caused by dapagliflozin: A case report. Medicine (Baltimore). 2018;97(25):e11056.
5 Musso G, Gambino R, et al. A novel approach to control hyperglycemia in type 2 diabetes: Sodium glucose co-transport (SGLT) inhibitors. Systematic review and meta-analysis of randomized trials, Annals of Medicine 2012; 44:4, 375-393
6 Taylor S, Blau J,Rother K. SGLT2 Inhibitors May Predispose to Ketoacidosis, The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism, 2015 Volume 100, Issue 8, 1, Pages 2849–2852
7 Ferrannini E, Muscelli E, Frascerra S, et al. Metabolic response to sodium-glucose cotransporter 2 inhibition in type 2 diabetic pa- tients. J Clin Invest. 2014;124:499–508.
8 Foster DW. Malonyl-CoA: the regulator of fatty acid synthesis and oxidation. J Clin Invest 2012;122: 1958–1959.
9 Cohen J, Berglund F, Lotspeich D. Renal tubular reabsorption of acetoacetate, inorganic sulfate and inorganic phosphate in the dog as affected by glucose and phlorizin. Am J Physiol. 1956;184:91–96
10 Goldenberg RM, Berard LD, Cheng AY, et al. SGLT2 inhibitor-associated diabetic ketoacidosis: clinical review and recommendations for prevention and diagnosis. Clin Ther 2016;38(12):2654–64.