Introdução
A primeira descrição da sífilis foi feita por Hipócrates na Grécia Antiga na sua forma terciária. Seria conhecida na cidade grega de Metaponto, aproximadamente 600 a. C. E em Pompéia foram encontradas evidências arqueológicas nos sulcos dos dentes de crianças de mães com sífilis. Acredita-se que durante o século XVI a bactéria tenha sofrido uma mutação convertendo-se no Treponema pallidum sub-espécie pallidum, o agente etiológico da sífilis.
Em 1905, o agente etiológico da sífilis foi identificado por Fritz Richard Schaudinn,num então moderno microscópio Zeiss, e denominou-o Spirochaeta pallida (1). Muito mais tarde, em 1998, na revista científica Science, um grupo de biólogos reportou a sequência exacta do genoma do Treponema pallidum (2).
A sífilis continua a ser um problemas de saúde a nível mundial, afectando sobretudo a África Subsaariana, a América do Sul e o Sudoeste Asiático. Na Europa Ocidental estima-se que ocorram 140.000 novos casos por ano. A epidemiologia da doença foi mudando ao longo do tempo e actualmente, tal como sucedeu nos surtos do final da década de 1970 e início de 1980, afecta maioritariamente homens homossexuais. A principal via de transmissão é, indubitavelmente, a via sexual. Os modos de transmissão menos comuns são por infecção inútero, transfusão sanguínea e transplante de órgãos3. Sabe-se que a doença pode cursar com 3 fases. Na era pré-antibiótica, cerca de 33% dos doentes com sífilis latente não tratada desenvolviam doença terciária clinicamente aparente. Actualmente, o tratamento específico da sífilis precoce e latente quase eliminaram a sífilis terciária, excepto a neurosífilis em doentes infectados pelo VIH (3) . No passado, as formas mais comuns de sífilis terciária eram a goma definidas como tumorações que podem acometer as mucosas, ossos ou visceras, sífilis cardiovascular com envolvimento frequente dos vasa vasorum da aorta ascendente com consequente aneurisma e neurosífilis (tabes dorsalis e paresia) (4). No polémico estudo retrospectivo de Tuskegee (5), envolvendo 399 doentes infectados que não receberam tratamento, documentou-se sífilis cardiovascular em apenas 10% dos casos, embora posteriormente a necropsia destes doentes tenha revelado uma percentagem maior de atingimento cardíaco; 35% nos homens e 22% nas mulheres.
As manifestações cardiovasculares da sífilis aparecem geralmente, 10 a 40 anos (2) após a infecção. Os aneurismas da aorta são as manifestações mais comuns e definem-se como dilatações patológicas com mais de 1.5 vezes o diâmetro normal da aorta, podendo atingir um ou mais segmentos, sendo os torácicos mais raros que os da aorta abdominal. Têm uma evolução geralmente assintomática numa fase inicial; quando diagnosticadas necessitam de vigilância clínica e imagiológica apertada.
Durante séculos não houve nenhum tratamento eficaz para a sífilis.Somente no início século XX, o bacteriologista escocês Alexander Fleming descobre a Penicilina, o tratamento eficaz para esta entidade nosológica.
Caso clínico
Os autores apresentam o caso de um doente de 43 anos, leucodermóide, casado, heterosexual, operário, natural da Roménia, residente em Portugal (Portimão) há 8 anos. Em Fevereiro de 2010 iniciou um quadro clínico caracterizado por tosse seca. Recorreu ao Serviço de Urgência de uma unidade de saúde particular, tendo realizado teleradiografia torácica (figura 1) que revelou acentuado alargamento do mediastino superior; subsequetemente efectuou tomografia computadorizada (TC) torácica que evidenciou a presença de aneurisma da crossa da aorta. O doente foi referenciado para a consulta de cardiologia do nosso Hospital, para complementar estudo e orientação terapêutica. Refira-se que o doente negou febre, dor torácica e perda ponderal, assim como qualquer outra sintomatologia de relevo.
Dos antecedentes pessoais é de referir que se tratava de um doente ex-fumador (56 UMA), com hábitos etílicos marcados (cerca de 48 g/dia). O doente era saudável até a data, negou qualquer lesão que fizesse sugerir sífilis primária, bem como transfusões sanguíneas, transplante de órgãos ou contacto com drogas injectáveis. Referia não fazer qualquer medicação em ambulatório.
Ao exame objectivo apresentava-se consciente, orientado no espaço e no tempo e com discurso compreensível. Estava corado e hidratado, com parâmetros vitais normais; tensão arterial: 111/63 mmHg, pulso regular a ± 90 bpm, temperatura auricular 36.7ºC, frequência respiratória de 22 cpm e com saturação de O2 a 99%, ar ambiente. Não apresentava adenopatias periféricas palpáveis nem sinais de ingurgitamento das jugulares. A boca e a língua não apresentavam lesões. A auscultação cardiopulmonar não apresentava alterações, assim como o exame abdominal. O exame do períneo e órgãos genitais era normal.
Os exames analíticos à entrada não apresentavam alterações. Já durante o internamento foram solicitadas as serologias da sífilis que revelaram os seguintes resultados: tpHA 163840.00 e RPR 256.00. As serologias para despiste de SIDA e hepatites B e C também foram realizadas, sendo negativas.
O electrocardiograma era normal (ritmo sinusal, 91 bpm). O ecocardiograma revelou porção proximal da aorta ascendente com 37 mm, dilatação da porção distal aorta ascendente e crossa com 10 cm. Ventrículo esquerdo não hipertrofiado, com normal função sistólica global, sem alterações da motilidade segmentar. Sem valvulopatias. Pericárdio normal.
Foi realizado angio-TC torácica (Figura 2) que confirmou o diagnóstico de aneurisma do arco aórtico com 10 cm de diâmetro.
O doente manteve uma evolução clínica favorável durante o internamento tendo sido encaminhado para o Hospital da Cruz vermelha onde foi submetido a substituição do arco aórtico por tubo de Dacron de 26 mm de diâmetro e reimplantação da artéria nominada (tronco arterial braquiocefálico) no novo arco aórtico. A intervenção decorreu sem intercorrências e o exame anatomopatológico da peça operatória revelou “parede arterial com necrose da média e marcado infiltrado linfo-plasmocitário (CD20, CD3 e CD 138 positivo) mesoaortico. Observa-se ainda neovascularização da média. Alterações compatíveis com aortite sifilítica”.
Discussão
As manifestações clínicas da sífilis primária são definidas por uma lesão designada como “cancro” primário que começa habitualmente na forma de pápula indolor solitária a qual sofre erosão. Nos heterosexuais masculinos, o cancro localiza-se habitualmente no pénis e é acompanhado de linfadenopatia, habitualmente inguinal e bilateral, que surge 1 semana após o início da lesão e pode persistir por vários meses. Como foi dito anteriormente, o doente não apresentava nenhuma lesão na boca, recto ou pénis, assim como não foi evidente a presença de linfadenopatias.
As manifestações cardiovasculares são atribuíveis à endarterite obliterante dos vasa vasorum da adventícia, que fornecem suprimento sanguíneo à camada média; a principal camada estrutural dos vasos de grande calibre. Essa afecção resulta em aortite, insuficiência aórtica, aneurisma sacular (habitualmente na aorta ascendente) ou estenose do óstio coronário (6), sendo a formação de aneurismas saculares (40%) e o estreitamento do óstio coronário (29%) nos seus 3 a 4 mm iniciais (típico da sífilis), as manifestações mais comuns da aortite sifilítica (7). A incidência dos aneurismas da aorta torácica está estimada em seis casos por 100.000 doentes, por ano (8), com predomínio do sexo masculino, na sexta e sétimas décadas de vida. Acredita-se que a aorta ascendente seja o segmento mais frequentemente afectado devido a maior presença de linfáticos o que intensificaria o grau de aortite secundária à presença do treponema (9). A dor torácica é uma manifestação clínica comum, geralmente secundária à rápida expansão do aneurisma aórtico (10), mas outras manifestações podem ocorrer devido à compressão de estruturas mediastínicas pelo aneurisma tal como compressão do esófago.
Segundo um estudo realizado pelo grupo de Yale, Elefteriades et al estimou a taxa de crescimento médio de um aneurisma da aorta torácica em 0,1cm/ano, sendo o crescimento de um aneurisma da aorta descendente mais rápido (0,19 cm/ano) que o da aorta ascendente (0,07 cm/ano) (11). Vários factores afectam a taxa de crescimento de um aneurisma, nomeadamente a sua etiologia e localização, estando descritos como factores de risco para um crescimento acelerado: a idade avançada, sexo feminino, presença de doença pulmonar obstructiva crónica e/ou hipertensão, história familiar positiva e presença de dissecção aórtica.
A demonstração de calcificação linear na aorta ascendente na teleradiografia torácica sugere aortite sifilítica assintomática, uma vez que a arteriosclerose raramente provoca este sinal.
Apesar de ser rara a associação de atingimento cardíaco com neurosífilis, o exame do líquido cefaloraquídeo deve ser realizado e a pesquisa de outras doenças sexualmente transmissíveis não pode ser esquecida (12). Por essa razão, foi realizada punção lombar ao nosso doente, não se tendo identificado qualquer alteração. Sendo assim, como o doente apresentava testes serológicos positivos para a sífilis, juntamente com o exame normal do LCR e ausência de manifestações clínicas de sífilis, realizou-se o diagnóstico de sífilis latente tardia (mais de 1 ano de duração). A presença de lesões na aorta corrabora este diagnóstico.
A esposa foi igualmente avaliada, não apresentando nenhuma lesão compatível com sífilis ou linfadenopatia. Os seus testes serológicos revelaram títulos de RPR (2) e de tpHA (1280.00) positivos, com serologias para VIH e hepatite B e C negativas. A punção lombar foi igualmente negativa.
O tratamento da sífilis terciária foi realizado de acordo com as últimas guidelines. A história natural dos aneurismas da aorta torácica não está completamente definida, tornando difícil a sua monitorização e decisão do timing cirúrgico. O principal objectivo do tratamento de um aneurisma da aorta é evitar as suas complicações mais importantes (ruptura ou dissecção). Actualmente temos ao nosso dispor três opções terapêuticas: o tratamento médico, cirúrgico e endovascular ainda com escassos estudos existentes sobre esta técnica mas que progressivamente está a emergir como uma nova terapêutica, apresentando uma incidência menor de complicações peri-procedimento, como a isquémia visceral e da espinhal medula, a hipovolémia, dependência do ventilador e dor peri-operatória. Na aorta torácica o limiar para intervenção cirúrgica é quando o diâmetro da mesma excede os 5.5 cm de diâmetro, na ausência de insuficiência aórtica.
A morbi-mortalidade peri e pós-operatória na cirurgia da aorta ascendente e crossa depende de numerosos factores. A fisiopatologia dos aneurismas, extensão da cirurgia e experiência da equipa são alguns dos mais importantes. Está descrito um risco de morte/ocorrência de acidentes vasculares cerebrais (AVC) de 2 a 5% associado a uma aneurismectomia electiva, aumentando para 5 a 7% se se proceder a ressecção do arco aórtico (13). O nosso doente foi submetido a cirurgia e não houve qualquer intercorrência operatória ou perioperatória. A antibioterapia dirigida não afasta totalmente futuras manisfestações da doença, o que torna obrigatório o acompanhamento clínico permanente destes doentes.
Este nosso caso reflecte uma complicação da sífilis que nos dias de hoje é rara em doentes imunocompetentes exigindo uma abordagem diagnóstica e terapêutica multidisciplinar.
Figura I

teleradiografia torácica
Figura II

TC torácica
BIBLIOGRAFIA
1. Kohl PK, Winzer I. The 100 years since discovery of. Hautarzt. 2005; 56: 112-5.
2. Rockwell DH, Yobs AR, Moore MB Jr. The Tuskegee Study of Untreated Syphilis: The 30th Year of Observation. Arch Intern Med. 1964; 114: 792-798.
3. Anthony S. Fauci, Eugene Braunwald, Dennis L. Kasper, Stephen L. Hauser, Dan L. Longo, J. Larry Jameson, and Joseph Loscalzo. Harrison´s principles of internal medicine. Mc Graw Hill, 2008; 17: 1038-1048. Vol. I.
4. Clark EG, Danbolt N. The Oslo study of the natural history of untreated syphilis; an epideiologic investigation based on a restudy of the Boeck-Bruusgaard material; a review and appraisal. J Chronic Dis. 1955; 2: 311-44.
5. Vonderlehr RA, Clark T, Wenger OC, Heller JR Jr. Untreated syphilis in the male Negro. A comparative study of treated and untreated cases. 1936; 17: pp. 260-265.
6. HA, Heggtveit. Syphilitic aortitis. A clinicopathologic autopsy study of 100 cases, 1950 to 1960. Circulation. 1964; 29: 346-55.
7. Corso RB, Kraychete N, Nardeli S, Moitinho R, Ourives C, Barbosa PJ, et al. Aneurisma luético de arco aórtico roto, complicado pela oclusão de vasos braquiocefálicos e acidente vascular encefálico isquémico: relato de caso tratado cirurgicamente. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2002; 17: 63-9.
8. Bickerstaff, LK, Pairolero, PC, Hollier, LH, et al. Thoracic aortic aneurysms: A population-based study. Surgery. 1982; 92: 1103.
9. Robbins SL, Cotran RS, Kuar V. Patologia estrutural e funcional. s.l. : Interamericana, 1986. pp. 326-9.
10. NO, Fowler. Diseases of the aorta. 17a. s.l. : Phi Saunders Company, 1985. pp. 348-50.
11. Elefteriades, JA. Natural history of thoracic aortic aneurysms: indications for surgery, and surgical versus nonsurgical risks. Ann Thoracic Surgery. 2002; 74S: 1877-80.
12. Tong SY, Haqqani H, Street AC. A pox on the heart: five cases of cardiovascular syphilis. Med J Aust. 2006; 184: 241-3.