Introdução
A tempestade tiroideia (TP) é um distúrbio raro caracterizado pelas manifestações clínicas extremas do hipertiroidismo, com envolvimento multissistémico, que necessita de abordagem imediata.1
A causa mais comum de TP é a doença de Graves, onde se verifica ativação do recetor da hormona estimulante da tiroide (TSH, na sigla em inglês) com consequente síntese e libertação desregulada de hormonas tiroideias (HT). Outras causas menos frequentes de TP são o adenoma tóxico e o bócio multinodular tóxico.2
A transição de um quadro de hipertiroidismo para tempestade tiroideia é habitualmente precipitada por eventos agudos sistémicos tais como infeções, cirurgia, trauma, enfarte agudo do miocárdio, cetoacidose ou tromboembolismo pulmonar.3-6 Raramente não se encontra qualquer fator desencadeante.7
As manifestações clínicas da TP incluem diaforese, febre,5 disfunção neuro-psiquiátrica (ansiedade, agitação, confusão, psicose e coma),2 disfunção gastrointestinal (dor abdominal, náuseas, vómitos, aceleração do trânsito intestinal com aumento da frequência das dejeções e icterícia),2 disfunção cardíaca (palpitações, dispneia de esforço, dor torácica do tipo anginoso, taquiarritmias e insuficiência cardíaca congestiva). Ao exame objetivo pode verificar-se exoftalmia, bócio com ou sem identificação de nódulos tiroideus, sopro tiroideu, ou tremor das extremidades. Nos indivíduos idosos as manifestações típicas de hipertiroidismo podem não ser tão evidentes.
O diagnóstico de hipertiroidismo assenta fundamentalmente em achados clínicos e na demonstração do aumento das frações livres das HT (tiroxina – T4 e tri‑iodotironina – T3) com supressão da TSH (exceto em casos raros como adenoma da hipófise secretor de TSH).2,5 Os exames de imagem não são necessários para o diagnóstico mas poderão ser úteis na caracterização da glândula tiroide, sugerindo o diagnóstico da doença tiroideia subjacente.2,7
Os níveis hormonais nos doentes com TP são comparáveis àqueles dos doentes com hipertiroidismo não complicado e por isso não constituem critério de diagnóstico de TP.4 O ponto a partir do qual o hipertiroidismo se manifesta como TP é controverso e de certa forma subjetivo.2 A Escala de Burch e Wartofsky8 (EBW) (Tabela 1) ajuda a predizer a probabilidade de TP, de acordo com as manifestações apresentadas pelo doente.
O diagnóstico de fatores precipitantes da tempestade é fundamental para ajudar no controlo da descompensação tiroideia.2,5,8
Caso Clínico
Os autores apresentam o caso de uma doente do sexo feminino de 74 anos, caucasiana, casada e doméstica. Como antecedentes pessoais apresentava hipertensão arterial essencial, diabetes mellitus tipo 2, dislipidemia, osteoporose e depressão. Encontrava-se medicada habitualmente com nifedipina 30 mg od, propranolol 40 mg od, valsartan/hidroclorotiazida 160 mg/12.5 mg od, metformina 700 mg od, atorvastatina 20 mg od, sertralina 50 mg od e bromazepam 3 mg od.
Nos três meses anteriores ao internamento no Serviço de Medicina Interna, a doente desenvolveu anorexia, perda ponderal de 15 Kg, dor abdominal difusa ligeira, alternância de diarreia e obstipação, astenia e incapacidade funcional progressiva. Recorreu ao seu médico assistente e realizou endoscopia digestiva baixa para rastreio de neoplasia do cólon, a qual não mostrou alterações. Poucos dias antes da admissão no hospital iniciou síndrome confusional motivo pelo qual foi transportada ao Serviço de Urgência (SU).
Objetivamente a doente apresentava-se confusa, agitada e com tremor postural. Estava muito desidratada e emagrecida (Índice de Massa Corporal 18 Kg/m2), a temperatura auricular era 37.8ºC, a tensão arterial era 140/60 mmHg, a frequência cardíaca era 80/min, com pulso rítmico, regular e amplo, sem sinais de dificuldade respiratória. Não apresentava exoftalmia nem outros sinais sugestivos de oftalmopatia por hipertiroidismo. A palpação da região cervical era indolor, a glândula tiroide não era palpável e não eram audíveis sopros na região tiroideia. Não apresentava sinais de irritação meníngea nem adenomegalias periféricas palpáveis. A auscultação cardíaca e a auscultação pulmonar eram normais. A palpação abdominal era indolor, o abdómen era mole e depressível, não apresentando massas ou organomegalias palpáveis nem sinais de irritação peritoneal, sendo os ruídos hidroaéreos de timbre e frequência normais. Não apresentava edemas periféricos nem mixedema pretibial.
A avaliação analítica inicial revelou anemia (hemoglobina 9,9 g/dL) normocítica e normocrómica, 4480/μL leucócitos, 264000/μL plaquetas, glicose 90 mg/dL, ureia 32 mg/dL, creatinina 0.7 mg/dL, sódio 143, potássio 3.7, T4 livre > 100 pmol/L, T3 livre 32.27 pmol/L e TSH < 0.005 μIU/mL.
A telerradiografia do tórax mostrou um aumento da silhueta cardíaca com índice cardiotorácico 0.6, sem infiltrados, condensações pulmonares ou derrame pleural. O pró-peptídeo natriurético auricular estava aumentado (1860 pg/mL). Estes achados foram interpretados no contexto de uma possível insuficiência cardíaca, a qual foi confirmada posteriormente por ecocardiograma. O eletrocardiograma da admissão apresentava ritmo sinusal, sem alterações.
Perante a clínica sugestiva de hipertiroidismo, aliada aos achados analíticos e com uma pontuação de 30 pontos na EBW (TP iminente), a doente foi internada e iniciou terapêutica dirigida com tiamazol 5 mg de 8/8h e propranolol 20 mg 12/12h. Na admissão não foi objetivado foco infecioso concomitante.
O estudo tiroideu incluiu os autoanticorpos anti-peroxidase (anti-TPO, na sigla em inglês), anti‑tireoglobulina (anti-TG) e anti-receptor da TSH (TRAb, na sigla em inglês), todos eles positivos: anti-TPO 132 (positivo quando > 100), anti-TG 6133 (positivo quando > 344) e TRAb 2.54 U/L (positivo quando > 1.5 U/L). A ecografia mostrou a tiroide com tamanho aumentado, contornos regulares e ecoestrutura heterogénea, com múltiplos nódulos sólidos hiperecogénicos, o maior deles com 11 mm de diâmetro. A cintigrafia da tiroide com tecnécio mostrou bócio multinodular com valores normais de captação de 99mTc pertecnetato.
Ao terceiro dia de internamento a doente iniciou febre (39ºC), agitação psicomotora, delirium, fibrilhação auricular com resposta ventricular rápida (145/min), dispneia e crepitações na auscultação pulmonar. A pontuação da EBW subiu para valores compatíveis com TP (85 pontos). Foi escalada a medicação anti‑tiroideia para doses de tiamazol 20 mg 6/6h, o propranolol para 80 mg 8/8h e iniciada corticoterapia com hidrocortisona 100 mg 8/8h, sendo a doente admitida na Unidade de Cuidados Intermédios (UCIM).
Foi investigado eventual foco infecioso, tendo-se identificado Escherichia coli multissensível na urocultura, sendo iniciada antibioterapia com amoxicilina e ácido clavulânico.
A fibrilhação auricular foi controlada com beta-bloqueante e com digoxina, ocorrendo reversão espontânea a ritmo sinusal com a estabilização da função tiroideia, mantendo estabilidade elétrica no resto do internamento.
A doente recuperou gradualmente o seu estado neurológico e normalizou rapidamente o trânsito intestinal.
Teve alta medicada com tiamazol 10 mg 8/8h e prednisolona 40 mg od, seguido de esquema de desmame. As HT desceram paulatinamente para os valores normais e a doente mantem-se estável, em eutiroidismo, sob medicação anti‑tiroideia. Cerca de 18 meses após o internamento os TRAb eram negativos, ponderando-se por esse motivo o desmame subsequente de tiamazol, sob vigilância apertada. Foi efetuada citologia aspirativa do nódulo tiroideu que revelou tecido tiroideu normal.
Discussão
A TP é uma emergência médica. A taxa de mortalidade associada a esta entidade é de 20-30%4,9, pelo que o seu reconhecimento precoce e o tratamento apropriado são fundamentais. Para além da terapêutica específica dirigida à tiroide, o tratamento de suporte, idealmente numa unidade de cuidados intensivos ou intermédios é fundamental.5,7
O caso clínico descrito corresponde a um caso de hipertiroidismo por Doença de Graves, previamente não diagnosticada e com evolução de alguns meses previamente à admissão hospitalar, com clínica predominantemente digestiva/abdominal e sintomas constitucionais. Posteriormente verificou-se aparecimento de agitação psicomotora, altura em que a doente recorreu ao SU e foi identificado o hipertiroidismo. Foi iniciada terapêutica dirigida ao hipertiroidismo e às manifestações adrenérgicas, ocorrendo agravamento clínico durante o internamento, com adição de disfunções orgânicas e pontuação elevada na EBW, compatível com TP. Como referido anteriormente, a EBW ajuda a predizer a probabilidade de TP mas não é por si só suficiente para avaliar a gravidade do quadro, sendo o juízo clínico essencial. Poderá questionar-se a infeção do trato urinário, como evento precipitante da TP, a qual foi prontamente tratada. As disfunções orgânicas apresentadas exigem a abordagem da doente em ambiente controlado e vigiado, pelo que foi proposta a sua admissão à UCIM.
A terapêutica para a TP é a mesma que para o hipertiroidismo não complicado, mas em doses mais elevadas.5 No presente caso clínico, iniciou-se o tratamento do hipertiroidismo não complicado com tiamazol em doses baixas, as quais foram aumentadas posteriormente quando se desencadeou a TP.10 Os objetivos do tratamento na TP são baixar os níveis de HT circulantes, bloquear os efeitos periféricos das HT circulantes, tratamento de suporte das disfunções orgânicas e tratamento do fator precipitante. A terapêutica inclui beta-bloqueadores, tionamidas, glicocorticoides e soluções de iodo. As doses apresentadas de seguida são para a abordagem da TP.
Como fármacos anti-tiroideus, que bloqueiam a síntese de novas HT, estão disponíveis o propiltiouracilo (200-250 mg a cada 4-6h) e o tiamazol (20-30 mg a cada 4-6h).2,5 Não existe evidência de superioridade de qualquer um dos fármacos sobre o outro, no entanto o propiltiouracilo tem um início de ação mais rápido e inibe a conversão periférica de T4 em T3, reduzindo mais rapidamente os níveis iniciais de T3 pelo que pode ter utilidade acrescida no tratamento inicial.5 O tiamazol, por apresentar uma duração de ação mais longa e esquema posológico mais confortável (melhor adesão terapêutica) e ser menos hepatotóxico, poderá estar mais indicado para o tratamento do hipertiroidismo menos agressivo e no tratamento de manutenção.2 Nesta doente, como já havia sido iniciado o tiamazol na admissão, optou-se por manter a terapêutica posteriormente, escalando a dose.
O iodo bloqueia a libertação de T3 e T4 da glândula tiroide pelo efeito de Wolff‑Chaikoff (níveis séricos elevados de iodo inibem a libertação de HT pela tiroide). Pode usar-se Solução de Lugol ou Solução Saturada de Iodeto de Potássio. É importante que a administração destes fármacos seja feita após o início de tionamidas de forma a prevenir a estimulação da síntese de HT pelo iodo.3,8
Os glicocorticoides inibem a conversão de T4 em T3 e adicionalmente podem ajudar no controlo do mecanismo imunológico subjacente à TP, como no caso da Doença de Graves. Servem também para tratamento da possível insuficiência suprarrenal relativa.2,5,8 Administram-se 100 mg de hidrocortisona endovenosa a cada 8h.
O bloqueio-beta tem como objetivo o controlo dos sinais e sintomas induzidos pelo tónus adrenérgico aumentado, característico desta entidade. O fármaco mais frequentemente utilizado é o propranolol pela sua capacidade simultânea de bloqueio da conversão de T4 em T3 em doses elevadas. As doses são tituladas para controlo da frequência cardíaca e ajustadas à pressão arterial, tipicamente 60-80 mg a cada 4-6h por via oral.5
Após controlo dos sintomas, pode ser descontinuada a terapêutica com iodo e com glicocorticoides, estes últimos através de esquema de desmame. Os beta‑bloqueadores podem ser parados após normalização dos testes de função tiroideia. As tionamidas devem ser tituladas e continuadas para manter o eutiroidismo.2,8
A tiroidectomia deve ser considerada na terapêutica da TP naqueles doentes com contra-indicações para a toma de agentes anti-tiroideus, toxicidade dos mesmos, sintomas compressivos por bócio volumoso ou preferência do doente.10
O tratamento com iodo radioativo tem o seu papel no tratamento definitivo do hipertiroidismo, após o controlo da fase aguda, preferencialmente nas doentes que tencionem engravidar no futuro, indivíduos com risco cirúrgico elevado ou com contra-indicações para a toma de anti-tiroideus.10
O tratamento inclui também medidas de suporte geral como hidratação endovenosa, o uso de antipiréticos (preferencialmente o paracetamol pois os salicilatos e outros anti-inflamatórios não-esteróides aumentam as frações livres de HT por interferirem com a ligação às proteínas transportadoras) e outras medidas de arrefecimento corporal, correção das alterações eletrolíticas e suporte nutricional.
Quadro I
Critérios de diagnóstico de Tempestade Tiroideia
Parâmetros diagnósticos | Pontuação |
Disfunção termoreguladora | |
Temperatura | |
37.2-37.7ºC | 5 |
37.8-38.2ºC | 10 |
38.3-38.8ºC | 15 |
38.9-39.4ºC | 20 |
39.5-39.9ºC | 25 |
≥ 40ºC | 30 |
Disfunção cardiovascular | |
Taquicardia | |
< 90/min | 0 |
90-109/min | 5 |
110-119/min | 10 |
120-129/min | 15 |
130-139/min | 20 |
≥ 140/min | 25 |
Insuficiência cardíaca congestiva | |
Ausente | 0 |
Ligeira (edema dos membros inferiores) | 5 |
Moderada (crepitações pulmonares bibasais) | 10 |
Severa (edema pulmonar) | 15 |
Fibrilhação auricular | |
Ausente | 0 |
Presente | 10 |
Disfunção do sistema nervoso central | |
Ausente | 0 |
Ligeira (agitação) | 10 |
Moderada (delírio, psicose, letargia extrema) | 20 |
Severa (convulsões, coma) | 30 |
Disfunção gastrointestinal/hepática | |
Ausente | 0 |
Moderada (diarreia, náuseas, vómitos, dor abdominal) | 10 |
Severa (icterícia) | 20 |
Episódio de tempestade tiroideia prévio | |
Ausente | 0 |
Presente | 10 |
Total: | |
> 45 pontos: tempestade tiroideia muito provável | |
25-44 pontos: tempestade tiroideia iminente | |
< 25 pontos: tempestade tiroideia pouco provável |
Adaptado de: Burch HB, Wartofsky L. Life-threatening thyrotoxicosis. Thyroid storm. Endocrinol Metab Clin North Am 1993;22(2):263-77.
BIBLIOGRAFIA
1- Wartofsky L. Clinical criteria for the diagnosis of thyroid storm. Thyroid 2012;22(7):659-60.
2- Nayak B, Burman K. Thyrotoxicosis and Thyroid Storm. Endocrinol Metab Clin N Am 2006;35:663-86.
3- Goldberg PA, Inzucchi SE. Critical issues in endocrinology. Clin chest Med 2003;24:583-606.
4- Sarlis NJ, Gourgiotis L. Thyroid emergencies. Rev Endocr Metab Disord 2003;4:129.
5- Carroll R, Matfin G. Endocrine and metabolic emergencies: thyroid storm. Ther Adv Endocrinol Metab 2010;1(3):139-45.
6- Rosei CA, Cappelli C, Salvetti M, Castellano M, Muiesan ML, Rosei EA. The unusual clinical manifestation of thyroid storm. Intern Emerg Med 2011;6:385-7.
7- Migneco A, Ojetti V, Testa A, De Lorenzo A, Gentiloni Silveri N. Management of thyrotoxic crisis. Eur Rev Med Pharmacol Sci 2005;9(1):69-74.
8- Burch HB, Wartofsky L. Life-threatening thyrotoxicosis. Thyroid storm. Endocrinol Metab Clin North Am 1993;22(2):263-77.
9- Tietgens ST, Leinung MC. Thyroid Storm. Med Clin North Am 1995;79:169-84.
10- Bahn RS, Burch HB, Cooper DS, Garber JR, Greenlee MC, Klein I, et al. Hyperthyroidism and other causes of thyrotoxicosis: management guidelines of the American Thyroid Association and American Association of Endocrinologists. Endocr Pract 2011;17(3):456-520.