INTRODUÇÃO
A Necrose Retiniana Aguda (NRA) é um síndrome uveítico raro, passível de causar cegueira, que se caracteriza por retinite necrosante periférica progressiva.1
Segundo a Sociedade Americana de Uveíte (1994) o diagnóstico de NRA é clínico, baseado nos seguintes critérios: 1) um ou mais focos de necrose periférica na retina; 2) alastramento periférico; 3) retinopatia arteriolar oclusiva; 4) reação inflamatória proeminente no vítreo e câmara anterior; 5) rápida progressão na ausência de terapêutica, independente da extensão da necrose, género, raça, idade e estado imunológico.2
A principal etiologia de NRA é a infeção por vírus Varicela zoster (VZV) e Herpes simplex tipo 1 e 2 (HSV-1 e HSV-2).1
Trata-se de uma patologia extremamente rara, descrita pela primeira vez em 1978 por Young e Bird, que atinge em todo o mundo cerca de 1 em cada 1,5 a 2 milhões de pessoas por ano.3 Afeta mais frequentemente indivíduos imunocompetentes, ocorrendo ocasionalmente em imunocomprometidos.4
O tratamento da NRA não é consensual. É importante o diagnóstico célere e a abordagem terapêutica pode incluir retinopexia profilática com laser de argon (para reduzir o risco de descolamento da retina), antivíricos sistémicos ou intra-vítreos e corticosteróides (com o intuito de controlar a inflamação grave associada à NRA).4,5
Apesar da variedade de estratégias terapêuticas descritas na literatura, não há evidência de uma estratégia ótima, sendo os resultados semelhantes para todos os esquemas de tratamento descritos, geralmente associados a um mau prognóstico quanto à acuidade visual.5
Assim, mantém-se como opção o paradigma de tratamento tradicional da NRA, utilizado desde a década de 1980, que inclui terapêutica de indução com aciclovir endovenoso (500mg/m2 tid) durante 7 a 10 dias, seguido de aproximadamente 14 semanas de terapêutica oral.5
CASO CLÍNICO
Mulher de 32 anos, caucasiana, natural e residente em V.N. Famalicão, solteira, trabalhadora-estudante.
Referia antecedentes pessoais de rinite alérgica, sem história pregressa de varicela. Medicada habitualmente com Yasmin® (drosperidona+estrogéneo) e zolpidem.
Recorreu ao serviço de urgência em Maio de 2012 por dor vulvar e leucorreia purulenta. Ao exame ginecológico apresentava enantema, descamação acentuada da mucosa vaginal do introito e úlceras vulvovaginais. Apresentava também enantema e úlceras dolorosas da mucosa oral. Por se presentar muito sintomática e com dificuldade em alimentar-se, ficou internada ao cuidado de ginecologia. Fez zaragatoa de exsudado vaginal (cujo exame microbiológico foi negativo).
Ao terceiro dia de internamento foi pedida observação por Medicina Interna por instalação súbita de visão turva, tonturas e desequilíbrio da marcha. Ao exame objectivo apresentava lesões cutâneas pruriginosas dispersas pelo tronco em vários estadios de evolução (máculas, pápulas, vesículas, crostas) [figura I], sem outras alterações ao exame físico.
Feito o diagnóstico clínico de varicela, face ao quadro de visão turva e desequilíbrio levantou-se a suspeita de encefalite por vírus Varicella zoster. Realizou punção lombar e iniciou empiricamente aciclovir endovenoso na dose de 10mg/Kg 8/8h. Como o estudo do liquor (quadro I) não foi compatível com encefalite vírica foi pedida ressonância magnética cerebral que também foi normal.
Por persistência dos sintomas visuais foi avaliada por oftalmologia, apresentando achados típicos de NRA bilateral no fundo de olho e angiografia dos vasos da retina (figura II).
Associou-se corticoterapia ao aciclovir, completando 14 dias de tratamento endovenoso. Teve alta ao 17º dia de internamento, com melhoria da sensação de visão turva. Foi referenciada às consultas externas de medicina interna e oftalmologia, com indicação para cumprir em ambulatório mais 6 semanas de aciclovir oral e prednisolona 40 mg em desmame.
Aos 6 meses após a alta, apresentava melhoria da visão e regressão das lesões oculares (figura III), ainda com sensação de sombras visuais, não limitativa das atividades diárias.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
O presente caso clínico é ilustrativo dos desafios diagnósticos do atual exercício da Medicina Interna.
Logo à partida, a queixa inicial que motivou a ida ao serviço de urgência levou à triagem para observação por ginecologia e ao internamento por esta especialidade. Nesta fase inicial, o quadro era dominado pelas lesões vulvares, dolorosas e exsudativas, e as lesões cutâneas típicas da varicela ainda não se tinham instalado.
Ao longo dos três dias de internamento em ginecologia, as lesões cutâneas foram surgindo e agravando. Só a instalação de sinais neurológicos (alterações visuais e desequilíbrio) fez com que fosse pedida observação por Medicina Interna. Neste ponto, o diagnóstico clínico de varicela era evidente e a associação de sintomas neurológicos fez suspeitar de encefalite vírica por VZV. Instituiu-se de imediato a terapêutica empírica com aciclovir, mas a punção lombar e análise de liquor não corroboraram esta hipótese diagnóstica.
Outro diagnóstico equacionado foi a Encefalomielite Aguda Disseminada (doença desmielinizante rara do sistema nervoso central, de provável natureza auto-imune e normalmente despoletada após infeções víricas ou vacinação). Apesar do quadro clínico compatível, a ausência de lesões desmielinizantes na RM cerebral excluiu esta entidade.
Parecendo excluídas causas primárias do sistema nervoso central, a possibilidade das queixas visuais terem origem oftalmológica motivou o pedido de observação por oftalmologia. Nesta avaliação observaram-se as lesões típicas de NRA que permitiram fazer o diagnóstico. Embora a suspeita inicial de encefalite vírica não se tenha confirmado, a instituição ad inicium de aciclovir pode ter ajudado a travar a progressão das lesões de NRA.
A raridade da NRA limita o desenvolvimento de ensaios clínicos randomizados capazes de avaliar o protocolo terapêutico ideal.1 Assim, não há consenso quanto ao tratamento óptimo, a não ser quanto à importância da precocidade da sua instituição, idealmente nas primeiras 24 horas, crucial para um prognóstico mais favorável.1
No caso apresentado optou-se pela abordagem terapêutica tradicional (aciclovir endovenoso 10mg/Kg 3 vezes/dia durante 5 a 10 dias, seguido de aciclovir oral 400 a 800mg 5 vezes por dia durante pelo menos 6 semanas).1
Serve o presente caso para chamar a atenção para esta complicação rara da varicela. Esta infeção, típica da idade pediátrica (onde cursa geralmente com bom prognóstico), tende a assumir formas mais graves em adultos ou imunocomprometidos de qualquer idade.6 Ainda assim, a maioria dos adultos infetados pelo vírus Varicella zoster terá varicela não complicada.7 No caso em discussão, destaca-se a apresentação de varicela num adulto não imunocomprometido, que cursou com uma complicação rara, de diagnóstico difícil e tratamento não consensual.
Na varicela no adulto, o tratamento com aciclovir oral nas primeiras 24 a 72 horas após aparecimento do exantema parece não influenciar o curso da doença.1 Todavia, o maior risco de complicações de varicela no adulto faz com que alguns autores recomendem a instituição de antivírico nas primeiras 24 horas de apresentação.1
No caso em epígrafe, apesar das dificuldades, foi possível chegar ao diagnóstico. Realça-se a instituição precoce do antivírico, assim que se instalaram as queixas visuais, que terá contribuído para a evolução favorável da visão.
Quadro I
Estudo do Líquido cefalorraquidiano
Exame | Resultado |
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Citológico | 3 células, 2 eritrócitos |
Bioquímico | Proteínas 33mg/dL; Glicose 54mg/dL |
Virulógico | Negativo para HSV1 e 2; VZV; EBV e CMV |
HSV1 - Herpes Simplex Virus tipo 1; HSV2 - Herpes Simplex Virus tipo 2; VZV - Vírus Varicela Zoster; EBV - Epstein-barr virus; CMV - citomegalovírus.
Figura I

Aspecto do dorso da doente; à direita pormenor das lesões.
Figura II

Fundo de olho (esquerda) e angiografia ocular (direita) na data de diagnóstico. Fundo de olho com sinais de Necrose Retiniana Aguda Bilateral no polo posterior, sem antingimento macular e sem vitrite (exsudados moles maculares e extramaculares – setas brancas); Angiografia com áreas de microangiopatia periférica, sem isquemia macular.
Figura III

Fundo de olho (esquerda) e angiografia ocular (direita) 6 meses após a alta. Melhoria das lesões face a imagens iniciais.
BIBLIOGRAFIA
1. Tam PMK, Hooper CY, Lightman S. Antiviral selection in the management of acute retinal necrosis. Clinical Ophthalmology 2010; 4: 11–20.
2. Holland GN. Standard diagnostic criteria for the acute retinal necrosis syndrome. Executive Committee of the American Uveitis Society, Am J Ophthalmol 1994; 15;117(5):663-7.
3. Rautenberg P, Hillenkamp J, Grancicova L, Nölle B, Roider J, Fickenscher H. Virus Diagnosis and Antiviral Therapy in Acute Retinal Necrosis (ARN). In Arbthnot P Antiviral Drugs – Aspects of Clinical Use and Recente Advances. RijeKa: InTech Europe 2012: 18-34.
4. Chun H, Lau CH, Missotten T, Salzmann J, Lightman SL. Acute Retinal Necrosis Features, Management, and Outcomes, Ophthalmology. 2007;114:756–762
5. Tibbetts MD, Shah CP, Young H, Duker JS, Maguire JI, Morley MG. Treatment of Acute Retinal Necrosis, Ophthalmology 2010;117:818–824
6. Albrecht MA. Clinical features of varicella-zoster virus infection: Chickenpox. Uptodate.(Acesso em 14/01/2013, em www.uptodate.com/contents/clinical-features-of-varicella-zoster-virus-infection-chickenpox).
7. Albrecht MA. Treatment of varicella-zoster virus infection: Chickenpox. Uptodate.(Acesso em 14/01/2013, em www.uptodate.com/contents/treatment-of-varicella-zoster-virus-infection-chickenpox)