INTRODUÇÃO
A espondilodiscite infecciosa consiste na infecção dos corpos vertebrais e/ou dos discos intervertebrais, representando 3 a 5% dos casos de osteomielite. (1,2) Pode ocorrer em qualquer idade, sendo mais frequente entre os 50 e os 70 anos (1,2,3,4), com preponderância do género masculino (2:1). (1,3,5) A incidência nos países desenvolvidos é de 4 a 24 por milhão de habitantes por ano (1) e tem vindo a aumentar, não só devido ao aumento das infecções associadas a cateteres vasculares, instrumentação, cirurgia da coluna vertebral, uso de drogas endovenosas e aumento da população susceptível, mas também devido à melhoria dos meios de diagnóstico. (1,5) Ocorre mais frequentemente por disseminação hematogénea a partir de um foco bacteriémico distante, podendo também ocorrer por inoculação directa ou por contiguidade a partir de tecidos infectados adjacentes. (1,2,5) Atinge, por ordem decrescente de frequência, a coluna lombar (58%), dorsal (30%) e cervical (11%), implicando a última localização maior risco de complicações neurológicas. (1,3,4) A insuficiência renal crónica, a diabetes mellitus, a obesidade, o etilismo crónico, a insuficiência hepática, as neoplasias, a presença de próteses valvulares cardíacas, a corticoterapia sistémica ou outro tipo de imunossupressão, são condições que podem predispor o indivíduo à ocorrência desta infecção. (1,2,4,6,7,8)
Pode ser causada por bactérias, micobactérias, fungos ou parasitas. O Staphylococcus aureus é o agente mais frequente; Streptococcus, Enterobacteriaceae e Pseudomonas aeruginosa também podem estar envolvidos. (1,2,5) A tuberculose e a brucelose devem ser consideradas em áreas endémicas, como é o caso de Portugal. (4,8)
A dor localizada à coluna vertebral é o sintoma mais frequente, sendo geralmente constante e mais intensa à noite.(1,4,5,7,8)Os sintomas constitucionais estão presentes em metade dos doentes e a febre em metade ou menos. (1,4,8) Os défices neurológicos (diminuição da força nos membros, paralisia, défice sensitivo, radiculopatia, perda de controlo de esfíncteres) podem ocorrer em cerca de 1/3 dos casos. (1) Quando a localização é cervical pode ocorrer disfagia ou espasmo muscular. (1) Ao exame físico, o doente pode apresentar deformidades da coluna, sensibilidade espinhal aumentada, diminuição da amplitude de movimentos e contractura muscular paravertebral. (1,5)
Analiticamente, a velocidade de sedimentação eritrocitária (VS) está elevada em mais de 90% dos casos (1) e a proteína C reactiva (PCR) está elevada na maioria dos casos. (1,2,5,8) A anemia pode estar presente em 70% dos casos e a leucocitose em 1/3 a ½ dos doentes. (1)
A identificação do agente microbiológico é importante para a escolha da terapêutica adequada. (1,9) As hemoculturas são métodos custo-efectivos para a identificação do patógeno, sendo positivas em 40 a 70% dos doentes. (1,2,5) A biópsia guiada por tomografia axial computorizada (TAC) deve ser reservada para os casos em que as hemoculturas são negativas; o espécime obtido deve ser submetido a cultura e exame histológico.(1,5)Podem ainda ser realizadas serologias ou técnicas de diagnóstico molecular (Polimerase Chain Reaction). (1,7)
Relativamente aos exames imagiológicos, a radiografia simples do segmento da coluna envolvido é frequentemente normal nas fases precoces da doença.(5)A ressonância magnética nuclear (RMN) é o exame de escolha pela sua elevada sensibilidade e especificidade, permitindo o diagnóstico precoce da doença e fornecendo informações acerca do espaço epidural e paravertebral envolvido. (1,2,5,6) A TAC é útil para guiar as biópsias da coluna vertebral. (1,3,4)
O tratamento conservador consiste na antibioterapia, fisioterapia e imobilização do segmento da coluna vertebral atingido. (1) Os analgésicos opióides e o repouso no leito ajudam no manuseio da dor. (5) Não existem estudos randomizados que indiquem qual o antibiótico, a via de administração ou o tempo de tratamento adequados. (1,2,5) Nos doentes estáveis, deve aguardar-se o resultado das culturas para iniciar o tratamento (2,5); caso estas sejam negativas, deve ser instituída terapêutica empírica dirigida aos agentes etiológicos mais comuns. (5) A antibioterapia deve iniciar-se por via parentérica (1,5), mantendo-se esta via durante um mínimo de 6 semanas. (5) Não está bem estabelecido o papel da manutenção da antibioterapia oral. (1) A resposta à terapia é melhor avaliada através da evolução clínica e medições seriadas da PCR e/ou VS (1), sendo os exames imagiológicos mais úteis em doentes com estado clínico equívoco ou pior no fim do tratamento. (5) A cirurgia é reservada para doentes com défice neurológico significativo por compressão medular, casos de deformidade significativa da coluna vertebral, de abcesso clinicamente significativo (com sépsis), casos refractários ao tratamento médico, para casos de etiologia obscura e com possível processo maligno associado ou para quando se pretende o diagnóstico bacteriológico e a biópsia fechada é negativa ou pouco segura. (2,4,8) A complicação mais temida da espondilodiscite é a incapacidade devida a défice neurológico residual ou dor severa, que podem ocorrer em 1/3 dos doentes. (1) A mortalidade é inferior a 5%. (1,5)
Caso Clínico
Doente do género masculino, 63 anos de idade, recorreu ao Serviço de Urgência (SU) por cervicalgia com 4 semanas de evolução e agravamento progressivo. O quadro teve início após cirurgia por descolamento da retina e período de repouso prolongado em decúbito ventral. Negou queixas respiratórias, gastrointestinais, genitourinárias ou outras. Tinha já recorrido ao SU pelo mesmo motivo, sendo medicado com maleato de flupirtina, ibuprofeno, diazepam e metamizol em sos, sem alívio sintomático. Como antecedentes referiu cirurgia a hérnia inguinal esquerda e direita, hemorragia digestiva alta por divertículo duodenal sangrante e cirurgia a catarata do olho esquerdo. Encontrava-se também medicado com colírios oftálmicos de fosfato de dexametasona e ofloxacina e com gel oftálmico de ofloxacina. Negou hábitos tabágicos; referiu o consumo de 28 gramas de álcool por dia. O doente era motorista de profissão, residia em meio rural, numa moradia com boas condições higieno-sanitárias.
Ao exame objectivo encontrava-se apirético, normotenso, sem alterações à auscultação cardiopulmonar. Apresentava dor intensa à mobilização cervical e contractura da musculatura cervical e interescapular. A força muscular estava mantida e simétrica, não tinha défices sensitivos e os reflexos osteotendinosos eram vivos e simétricos.
Analiticamente apresentava PCR 91,40 mg/L e VS 67 mm/1h. Hemograma, provas de função hepática e renal sem alterações.
Realizou radiografia da coluna cervical, sem alterações. Foi solicitada TAC da coluna cervical que revelou aspectos sugestivos de espondilodiscite. Realizou RMN da coluna cervical que confirmou este diagnóstico (Figura 1). Deste modo, a conjugação dos dados clínicos, analíticos e imagiológicos permitiu estabelecer o diagnóstico de espondilodiscite cervical.
Colheu hemoculturas, urocultura e realizou prova de Mantoux e serologias para Brucella, Mycobacterium tuberculosis e Coxiella burnetii. Iniciou antibioterapia empírica endovenosa com meropenem, para além de terapêutica analgésica e imobilização cervical com colar. O doente foi observado pela Neurocirurgia, mas não tinha, nessa altura, indicação para intervenção cirúrgica. Foi transferido para o Serviço de Medicina, onde, devido a toxidermia, o meropenem foi substituído por gentamicina e ampicilina endovenosas. Ao longo do internamento, o doente manteve-se apirético, hemodinamicamente estável, com melhoria progressiva das queixas álgicas, sem défices sensitivos ou motores. Verificou-se melhoria progressiva dos parâmetros analíticos inflamatórios (PCR de 5,88 mg/L e VS de20 mm/1h à data da alta). Apenas uma hemocultura foi positiva para Staphylococcus epidermidis, o que foi interpretado como contaminação. Os restantes estudos foram negativos. O doente teve alta após 6 semanas de antibioterapia endovenosa, medicado com ácido fusídico, diazepam, paracetamol+tramadol em sos e pantoprazol. Foi orientado para a consulta externa.
Um mês depois realizou RMN da coluna cervical, que revelou nítida melhoria imagiológica (Figura 2), tendo alta da consulta de Neurocirurgia com indicação de remover colar cervical progressivamente. Suspendeu ácido fusídico ao fim de 3 meses de tratamento. Mantém seguimento em consulta de Medicina, apresentando remissão completa da cervicalgia.
Discussão
Neste caso, os sintomas referidos pelo doente e os achados ao exame objectivo, em conjunto com uma VS e PCR elevadas e com as alterações descritas na RMN, permitiram estabelecer o diagnóstico de espondilodiscite. Apesar de o doente se encontrar estável, optou-se por iniciar antibioterapia empírica de largo espectro previamente ao resultado da investigação etiológica. Pela coincidência temporal do início dos sintomas com o pós-operatório de cirurgia oftalmológica, colocou-se a hipótese de ter ocorrido disseminação hematogénea na sequência dessa cirurgia ou de uma cateterização vascular realizada nesse contexto. Deste modo, optou-se pelo meropenem, dado este ser um antibiótico de largo espectro, que cobre cocos e bacilos Gram positivos e negativos, aeróbios e anaeróbios, indicado em infecções nosocomiais. O meropenem foi suspenso por toxidermia, mantendo-se uma antibioterapia de largo espectro. O agente causal não foi identificado, porém, atendendo à boa evolução clínica e analítica e à localização cervical da espondilodiscite, optou-se pela não realização de biópsia e pela manutenção da terapêutica, tendo o doente cumprido 6 semanas de antibioterapia parentérica. Apesar de não existir indicação formal para tal, optou-se por manter antibioterapia oral após a alta. O colar cervical, colocado não por instabilidade cervical, mas para alívio da dor e contractura muscular, foi retirado progressivamente, de acordo com o alívio destes sintomas, inicialmente em períodos diurnos crescentes e, posteriormente, no período nocturno.
O diagnóstico e a terapêutica precoces, bem como a avaliação e acompanhamento multidisciplinar do doente, foram essenciais para a evolução favorável do caso. A localização cervical da espondilodiscite, não só é a mais rara, como implica especial atenção na abordagem terapêutica pelo maior risco de complicações neurológicas.
Figura I

RMN realizada aquando do diagnóstico: redução do espaço C6-C7, de predomínio posterior, com ligeira irregularidade das plataformas somáticas, algum edema da esponjosa dos 2 corpos vertebrais, e processo tecidual vertebral e paravertebral a este nível, com realce acentuado após gadolínio, (...) com foco de realce envolvendo a plataforma superior de C7 e o disco. (...) extensão deste processo para canal vertebral, a condicionar discreto efeito de massa sobre a medula (...) sem edema medular relevante. A extensão foraminal deste processo condiciona compromisso radicular, bilateralmente. Componente tecidual perivertebral anterior exuberante (...).
Figura II

RMN realizada um mês após a alta hospitalar: sinais de nítida melhoria imagiológica, sem compressão medular evidenciável. Diminuição da altura do disco, bem como do realce discal e dos corpos vertebrais C6-C7. Melhoria do processo inflamatório pré-vertebral.
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