Introdução: A pan-uveíte e a retinite são condições raras que podem causar perda permanente de visão, sendo verdadeiros desafios diagnósticos e terapêuticos. Nos doentes imunocomprometidos as causas mais frequentes são as doenças infecciosas (p. ex. tuberculose, sífilis, toxoplasmose, citomegalovirus, herpes simplex vírus, doença de Lyme e fungos) e o linfoma ocular e nos doentes imunocompetentes às causas descritas acrescem doenças auto-imunes e doenças do tecido conjuntivo (sarcoidose, artrite reumatóide, espondilartrites e arterite de células gigantes)1. O diagnóstico da etiologia subjacente à pan-uveíte baseia-se no reconhecimento de padrões, apurados pela anamnese, exame objectivo (com exame oftalmológico completo) e exames complementares de diagnóstico, nomeadamente avaliação analítica e imagiológica2,3. Os casos de pan-uveíte secundários a doenças infecciosas, quando associados a neurite ou retinite, são particularmente alarmantes, causando perda rápida e progressiva de visão, impondo uma intervenção terapêutica correcta e expedita. Por vezes, quando a terapêutica dirigida não é iniciada precocemente, a inflamação pode estender-se ao olho contra-lateral causando cegueira, que pode ser temporária ou permanente4.
Caso clínico: Uma doente de 70 anos, portuguesa, caucasiana, recorreu ao serviço de urgência por perda súbita de visão do olho esquerdo e cefaleia temporal homolateral. Referia ainda emagrecimento de seis quilos em dois meses e epigastralgias com cerca de 3 meses de evolução. Negava hábitos de risco, nomeadamente parceiros sexuais múltiplos ou relações desprotegidas. O exame objectivo não revelou alterações; à observação oftalmológica, descrita acuidade visual de 6/10 no olho esquerdo e de 8/10 no olho direito assim como edema do disco óptico e da mácula no olho esquerdo, não sendo referida qualquer alteração no olho direito. Colocou-se a possibilidade diagnóstica de neuropatia óptica arterítica e perante a hipótese de arterite de células gigantes com envolvimento ocular, iniciou terapêutica com corticosteróides, realizou biopsia de artéria temporal que foi negativa e foi enviada à consulta de doenças autoimunes, na qual se constatou agravamento do quadro com diminuição da acuidade visual em ambos os olhos. A observação oftalmológica confirmou o agravamento com uma acuidade visual de 1/10 no olho direito, 3/10 no olho esquerdo. Bilateralmente apresentava reacção celular na câmara anterior (fenómeno de Tyndall), vitrite e edema macular (figura I), sem aparente vasculite ou hemorragias. A tomografia de coerência óptica confirmou o edema macular mais exuberante à direita (figura II) e a angiografia fluoresceínica revelou placas de coroidite bilateralmente, aparentemente com vasculite mas sem hemorragia (figura III). Perante o quadro de pan-uveíte não granulomatosa bilateral, a doente foi internada. Analiticamente, o hemograma não revelou alterações, a velocidade de sedimentação era elevada (56 mm), as serologias para toxoplasmose, citomegalovirus, varicela-zoster vírus, herpes simplex, hepatite B e C e vírus da imunodeficiência humana foram negativas, a electroforese de proteínas era normal, o doseamento da enzima conversora da angiotensina foi normal e o estudo autoimune realizado (ANA, anti-dsDNA, anti-SSA, anti-SSB,FR, anti-CCP2, ANCA) foi negativo, a pesquisa do antigénio HLA-B27 foi positiva e verificou-se anergia na prova de Mantoux. Foi excluída paraneoplasia (tomografia axial computorizada de corpo e mamografia sem alterações e endoscopia digestiva alta com gastropatia erosiva, biópsias compatíveis com gastrite crónica moderada não atrófica com erosões multifocais). O VDRL foi positivo (título 1/128), confirmado por TP-HA (título 1/20480), sendo admitida sífilis oftalmológica com pan-uveíte bilateral. Foi realizada RMN-CE que não evidenciou alterações e punção lombar que revelou pleocitose (28 células, predomínio de mononucleados), hiperproteinorráquia, sendo o VDRL e testes de hemaglutinação para treponema pallidum negativos no liquor. Considerou-se tratar-se de neurossífilis provável e a doente foi medicada com penicilina benzatina (18 milhões de unidades endovenosa por dia durante 14 dias), e foi realizada diminuição progressiva da corticoterapia sistémica previamente instituída. Verificou-se melhoria progressiva da visão e normalização dos parâmetros inflamatórios com a instituição da antibioterapia, A reavaliação oftalmológica apurou acuidade visual de 5/10 no olho direito e 8/10 no olho esquerdo, diminuição da vitrite mantendo edema difuso da retina, de predomínio no olho direito (figura IV). Repetiu punção lombar que não demonstrou alterações (5 células, sem predomínio, proteinorráquia normal). Melhorada, teve alta, mantendo seguimento em consulta de oftalmologia e medicina interna.
Discussão: Segundo os dados da Organização Mundial da Saúde, após diminuição da incidência de novos casos de sífilis, verificada no início do século XX com a descoberta da penicilina, tem surgido um novo aumento, estimado em cerca de 12 milhões de novos casos por ano, maioritariamente em doentes com infecção a HIV5,6. As manifestações oftalmológicas da sífilis são também mais frequentes nos imunocomprometidos (36% versus 14% nos imunocompetentes) e surgem em qualquer fase da doença2. O Treponema pallidum ou “grande simulador”, mimetiza qualquer patologia com envolvimento ocular, causando retinite focal, papilite, irite, precipitados queráticos, periflebite, vitrite, corioretinite, neurite óptica, vasculite e descolamento da retina2,7,8. A uveíte posterior é a manifestação mais comum, seguida da panuveíte e da uveíte do segmento anterior/intermédio9. Muitos doentes com sífilis ocular têm envolvimento simultâneo do sistema nervoso central e a exclusão de neurossífilis é mandatória, com realização de punção lombar para análise das características do liquor e doseamento de VDRL e TP-HA. A terapêutica preconizada na sífilis oftalmológica é semelhante à da neurossífilis (18-24 milhões unidades de penicilina cristalina endovenosa por dia, 10-14 dias), devendo ser realizada mesmo quando o envolvimento do sistema nervoso central não é confirmado4,10. No caso descrito, foram inicialmente consideradas as possibilidades diagnósticas de arterite de células gigantes ou panuveíte paraneoplásica. O exame oftalmológico inicial sugeriu artrite de células gigantes e a tentativa de confirmar essa hipótese com exames complementares e prova terapêutica atrasaram a investigação complementar e inicio precoce da terapêutica. Face ao agravamento clínico, foram consideradas outras possíveis etiologias para a panuveíte, e após serologia sanguínea positiva para T. pallidum e manifestação inicial oftalmológica, foi confirmado o diagnóstico de neurossífilis provável com recurso à punção lombar e análise das características do liquor. A doente apresentou os 4 critérios de neurossífilis provável (figura V). A sifilis é uma doença reemergente com múltiplas formas de apresentação, devendo ser considerada no diagnóstico diferencial das afecções oculares para confirmar ou excluir esta patologia, evitar iatrogenias e permitir o inicio precoce da terapêutica preconizada.
Figura I

Retinografia olho direito (à direita) e do olho esquerdo (à esquerda): reacção celular na câmara anterior (fenómeno de Tyndall), vitrite e edema macular, sem aparente vasculite ou hemorragias.
Figura II

Tomografia de coerência óptica do olho direito (à esquerda) e do olho esquerdo (à direita): edema macular mais exuberante no olho direito.
Figura III

Angiografia fluresceínica do olho direito (em cima) e olho esquerdo (em baixo): placas de coroidite bilateralmente, aparentemente com vasculite mas sem hemorragia.
Figura IV

Tomografia de coerência óptica do olho direito (à esquerda) e do olho esquerdo (à direita), após 14 dias de antibioterapia: manutenção de edema difuso da retina, de predomínio no olho direito.
Figura V

Critérios de diagnóstico de neurossifilis10; o quadro clínico do doente enquadra-se numa neurossifilis provável, apresentado TPHA positivo no soro, VDRL negativo no liquor, pleocitose e proteinorráquia no liquor e sífilis oftalmológica.
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