Introdução
A lesão hepática induzida por fármacos (drug-induced liver injury – DILI, na sigla em inglês) é das causas mais comuns de alteração das provas hepáticas, podendo mesmo provocar insuficiência hepática aguda. Pode ocorrer como uma reação idiossincrática ou como toxicidade intrínseca e expectável de determinado fármaco.1
A lesão hepática pode desenvolver-se dias ou meses após a introdução do fármaco e a alteração das provas hepáticas pode assumir um padrão de lesão predominantemente hepatocelular, colestático ou misto.2
Na abordagem dos doentes com alteração das provas hepáticas, a história farmacológica detalhada é fundamental, incluindo o consumo de suplementos dietéticos ou outros produtos de ervanária.
Caso Clínico
Os autores descrevem o caso de uma doente de 44 anos, casada e doméstica, sem antecedentes pessoais de relevo, exceto sintomas de refluxo gastro-esofágico com cerca de dois meses de evolução, para os quais estava medicada com pantoprazol 20 mg/dia desde o mesmo período. Adicionalmente estava medicada com anticoncecional oral (Gynera®) desde longa data.
Em junho de 2013 recorreu ao Centro de Saúde por icterícia da pele e das mucosas constatada desde o dia anterior. Teve um episódio de vómito alimentar. Negava dor abdominal, febre, anorexia ou alteração das características macroscópicas das fezes, sendo a urina mais escura do que seria habitual. Negava consumo de bebidas alcoólicas, chás ou outros produtos de ervanária, comportamento sexual de risco, exposição ocupacional ou acidental a qualquer produto tóxico e viagens recentes.
Foi enviada ao Serviço de Urgência, encontrando-se orientada e colaborante, sem evidência de encefalopatia, com marcada icterícia da pele e das mucosas, temperatura auricular 37.5ºC, normotensa e normocárdica, sem sinais de dificuldade respiratória, sem alterações da auscultação cardíaca e pulmonar; a palpação abdominal não identificou massas ou organomegalias e não tinha sinais de irritação peritoneal. Não apresentava adenomegalias palpáveis, edemas periféricos ou exantema cutâneo.
Analiticamente apresentava elevação das provas hepáticas: aspartato aminotransferase 1116 U/L, alanina aminotransferase 1526 U/L, gama-glutamiltranspeptidase 113 U/L, fosfatase alcalina 157 U/L, bilirrubina total 10.2 mg/dL, bilirrubina direta 7.7 mg/dL. A albumina era normal (3.9 g/dL). O hemograma completo não tinha alterações (hemoglobina 14.6 g/dL, 7800 leucócitos/µL, 350000 plaquetas/µL) e o tempo de protrombina era de 18.3 segundos (taxa de protrombina 62%, INR 1.4). É de salientar que em análises efetuadas cerca de 6 meses antes deste episódio não havia alteração das provas hepáticas.
A análise de urina apresentava bilirrubinúria (3+) sem outras alterações.
Perante o quadro de hepatite aguda, a doente foi internada no Serviço de Medicina Interna para investigação, sendo suspenso de imediato o pantoprazol.
A ecografia abdominal mostrou fígado com morfologia e dimensões conservadas, com ligeira alteração difusa da textura sugerindo hepatopatia parenquimatosa, sem evidência de obstrução da árvore biliar. O estudo doppler mostrou normal permeabilidade e calibre do eixo espleno-portal, veia porta e seus ramos, veia cava inferior, veias supra‑hepáticas, tronco celíaco e artéria mesentérica superior.
As serologias para os vírus da hepatite A, hepatite B, hepatite C, imunodeficiência humana, das inclusões citomegálicas e Epstein-Barr foram negativas.
O estudo autoimune, que incluiu anticorpos anti-nucleares, anti-músculo liso, anti-LKM (anti‑liver, kidney microsome antibodies) e anti-mitocondriais, foi negativo.
Os doseamentos da ceruloplasmina sérica e do cobre urinário foram normais.
Optou-se por realização de biópsia hepática transjugular que revelou a presença de hepatócitos tumefactos, microesteatose e colestase intra-hepatocitária; infiltrado inflamatório de predomínio mononuclear nos espaços porta, de densidade moderada, sem lesão de ductos biliares; lesões necro-inflamatórias dispersas na interface epitélio-mesenquimatosa e focais em localização intra-lobular.
Na investigação efetuada não se identificou outro agente etiológico possível para a lesão hepática para além do pantoprazol.
A doente evoluiu com rápida melhoria clínica e diminuição progressiva das enzimas hepáticas e com normalização das provas de coagulação. Teve alta cerca de duas semanas depois, assintomática, com indicação de evicção do pantoprazol e medicada com antagonista dos recetores H2 da histamina. Mantém seguimento na consulta de Medicina Interna, assintomática, e com normalidade analítica sustentada.
Discussão
Os fármacos constituem uma das principais causas de hepatite aguda. A revisão da história farmacológica é de grande importância, já que são muitos os fármacos que podem produzir lesão hepática.3 Mesmo fármacos com segurança comprovada podem induzir hepatite aguda.
O pantoprazol é um inibidor da bomba de protões (IBP), usado no tratamento da doença ulcerosa péptica, doença do refluxo gastro‑esofágico, lesões gastrointestinais induzidas pelos anti-inflamatórios não esteroides, síndrome de Zollinger-Ellison, dispepsia e erradicação (em associação com antibióticos) da Helicobacter pylori.4
Os IBP são fármacos reconhecidamente seguros e habitualmente bem tolerados. Os efeitos adversos mais frequentemente relatados são náuseas, diarreia, dor abdominal e cefaleias.4 Existem relatos de casos clínicos de hepatite aguda secundária ao omeprazol5-6, ao lansoprazol3,7 e ao pantoprazol8,9.
É difícil estabelecer se a hepatotoxicidade relacionada com os IBP é um efeito de classe farmacológica devido à estrutura básica benzimidazólica partilhada por estes fármacos. Não foi descrita hepatotoxicidade cruzada entre os diversos IBP, pelo que a administração de outro fármaco da mesma classe após hepatotoxidade de um deles poderá ser considerada, sob vigilância apertada.7
O seu mecanismo de hepatotoxicidade permanece desconhecido, mas a ausência de efeito dependente da dose e o início tardio da disfunção hepática, apontam para uma reação de idiossincrasia.7
No caso apresentado, a ausência de lesão hepática previamente à introdução do pantoprazol, a relação temporal entre o aparecimento de lesão hepática e a exposição de novo ao pantoprazol, bem como a melhoria verificada após suspensão do mesmo, apontam para uma possível relação de causalidade. Esta relação é reforçada pelo facto de terem sido excluídas outras potenciais causas de hepatite aguda. Os achados anatomopatológicos não são específicos de DILI, no entanto também não favorecem outras causas.
Não existem marcadores específicos para o diagnóstico de DILI, pelo que o seu diagnóstico é habitualmente clínico. Diversas escalas foram desenvolvidas numa tentativa de avaliar a causalidade de determinado fármaco e a DILI com base em critérios objetivos. São exemplos dessas escalas a Roussel-Uclaf Causality Assessment Method10 e a Escala Clínica de Maria & Victorino11. No presente caso clínico, a relação de causalidade entre o pantoprazol e a lesão hepática é classificada como altamente provável pela primeira escala e como provável pela segunda.
A suspeição clínica precoce é fundamental nos casos de DILI uma vez que a suspensão do fármaco implicado habitualmente leva à reversão da lesão hepática e é a atitude terapêutica mais importante. Poucas terapêuticas específicas mostraram ser benéficas em ensaios clínicos, com exceção da N-acetilcisteína, em especial na hepatite tóxica por paracetamol, estando também demonstrado o seu benefício em hepatites agudas de outras causas.12
Com este caso os autores alertam para a possibilidade de fármacos frequentemente utilizados na prática clínica poderem ser uma causa, embora rara, de hepatite aguda.
BIBLIOGRAFIA
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11 - Maria VAJ, Victorino RMM. Development and validation of a clinical scale for the diagnosis of drug-induced hepatitis. Hepatology 1997; 26: 664-9.
12 - Lee WM, Hynan LS, Rossaro L, Fontana RJ, Stravitz RT, Larson AM, et al. Intravenous N-acetylcysteine improves transplant-free survival in early stage non-acetaminophen acute liver failure. Gastroenterology 2009;137(3):856-64