Caso clínico
Homem de 61 anos, com antecedentes de cardiopatia isquémica, hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2, dislipidemia, recorre ao serviço de urgência por quadro, após acordar, de disartria e hemiparésia direita. A ressonância magnética encefálica (RMN-E) (figura 1) revelou pequenas lesões vasculares isquémicas recentes em topografia temporal posterior esquerda, coroa radiada, centro oval e palidocapsular à direita. Foi internado para estudo. A angioressonância, o ecodoppler dos vasos do pescoço e transcraniano não documentaram alterações relevantes. O electrocardiograma apresentou ritmo sinusal. Durante o internamento manteve-se subfebril, sem foco evidente de infecção e com proteína c reactiva elevada (PCR), pelo que realizou ecocardiograma transesofágico (ETE) que demonstrou vegetação na face ventricular da válvula aórtica com 11 mm. Verificou-se presença de gengivorragias pelo que se admitiu bacteriémia com provável foco na cavidade oral e endocardite infecciosa (EI). Após colheita de três hemoculturas em aerobiose e anaerobiose iniciou antibioterapia empírica com gentamicina e ampicilina por via endovenosa. Sob antibioterapia manteve apirexia, mas apresentou PCR persistentemente elevada e pró-calcitonina baixa. Após uma semana de incubação não se identificou nenhum agente bacteriano, pelo que se admitiu estar-se perante endocardite com culturas negativas. Prolongou-se o tempo de incubação e completou-se o estudo com serologias para o vírus imunodeficiência humana, sífilis, Chlamydia, Legionella, Brucella, Bartonella e Coxiella burnetti e estudo de auto-imunidade, que foram negativos. A tomografia computorizada (TC) toracoabdominopélvica (figura 2) revelou lesões infiltrativas pancreáticas com características invasivas loco-regionais e também à distância, nomeadamente hepáticas e pulmonares. A biópsia hepática confirmou metástase hepática de adenocarcinoma produtor de muco compatível com origem pancreática, positivo para citoqueratinas 7 e 20 e negativo para TTF1. Admitiu-se AVC isquémico por ETNB associada a adenocarcinoma do pâncreas em estadio IV. A antibioterapia foi suspensa após 5 semanas, tendo sido iniciado enoxaparina subcutânea 120mg/dia e terapêutica paliativa com gencitabina 1900mg/semana. O doente faleceu aos 2 meses de terapia paliativa, não tendo sido realizado autópsia.
Discussão
A endocardite trombótica não bacteriana (ETNB) foi descrita pela primeira vez em 1888 por Zeigler1, que introduziu o termo tromboendocardite para descrever a deposição de fibrina nas válvulas cardíacas. Em 1936 surge o termo ETNB com Gross e Friedberg2.
A ETNB é uma causa de embolização sistémica, caracterizada pela presença de vegetações fibrinoplaquetárias assépticas, sobretudo na face auricular da válvula mitral e na face ventricular da válvula aórtica. A disfunção valvular é rara; contudo pode ocorrer devido a deficiente coaptação ou mesmo a destruição dos folhetos valvulares. Microscopicamente as lesões de ETNB são constituídas por trombos de plaquetas e fibrina sem evidência de reacção inflamatória3. A ENBT afecta sobretudo doentes da quarta à oitava décadas de vida1. Associa-se com frequência a doença maligna, sobretudo ao adenocarcinoma e ao linfoma, mas também a doenças cronicamente debilitantes como a doença auto-imune, a tuberculose ou o síndrome de imunodeficiência adquirida4. No entanto, estão também descritos casos associados a processos agudos, como sépsis, queimadura, trauma por catéter venoso central, envenenamento após mordedura de víbora, intoxicação medicamentosa e efeito tardio da radioterapia. As manifestações clínicas major da ETNB resultam sobretudo de fenómenos tromboembólicos (presentes em até 42% dos casos). Estas vegetações desprendem-se facilmente devido à escassa reacção inflamatória. A embolização arterial envolve com maior frequência o baço, o rim e as extremidades; no entanto a maior morbimortalidade está associada ao atingimento do cérebro e das coronárias3. A descoberta de lesões típicas de ENBT na autópsia, em doentes sem qualquer suspeita clínica, faz acreditar que muitos desses eventos embólicos sejam assintomáticos. A sua incidência é desconhecida. A análise de uma série de autópsias revelou 10 casos de ETNB em 1640 adultos, verificando-se uma prevalência de 1,25% nos pacientes com cancro e de 0,2% na população em geral. O tipo histológico mais frequentemente encontrado foi o adenocarcinoma (2,7% versus 0,47%; p<0.05), sobretudo o pancreático quando comparado com outros adenocarcinomas (10,34% versus 1,55%, p< 0,05)5.
O progresso nas técnicas ecocardiográficas permitiu o diagnóstico antemortem e a antecipação das complicações nestes doentes. As vegetações de ETNB são tipicamente pequenas, inferiores a 1cm de diâmetro e com bordos irregulares. O ETE tem maior sensibilidade do que o ecocardiograma transtorácico na detecção de vegetações, sobretudo quando inferiores a 5 mm de diâmetro (90%). Um estudo prospectivo de ETE em 200 doentes portadores de neoplasia detectou vegetações valvulares em 19% dos doentes no grupo de estudo (n=38), enquanto no grupo controlo apenas 2% (n=2). As válvulas cardíacas esquerdas foram as mais afectadas (sobretudo a mitral). O tromboembolismo ocorreu em 11% no grupo de estudo. No grupo dos doentes com vegetações valvulares (n=38) os fenómenos embólicos ocorreram em 24%, ao contrário do restante grupo (n=162) que ocorreu apenas em 8%6.
Os mecanismos patofisiológicas da ETNB não estão totalmente esclarecidos. No entanto, várias hipóteses foram formuladas após o estudo histopatológico das vegetações em seres humanos e em animais. Os elevados níveis de factor de necrose tumoral e de interleucina 1 podem provocar lesão do endotélio valvular levando à formação de trombo. Estudos genéticos mostraram que o oncogene MET aumenta a actividade dos genes do inibidor do activador do plasminogéneo tipo 1 e da ciclooxigenase 2, contribuindo também para a formação do trombo7. Circunstâncias hemodinâmicas, como o fluxo turbulento ao longo das margens valvulares ou antecedente de valvulopatia, também têm sido apontados como factores de risco para ETNB8.
O diagnóstico diferencial com EI é obrigatório (quadro I), pois o tratamento das duas entidades é substancialmente diferente, com a anticoagulação obrigatória na ETNB. A ausência de marcadores séricos, o pequeno tamanho das vegetações e a sua friabilidade, com consequente facilidade de embolização, dificultam sobremaneira o diagnóstico de ETNB. Para além disso, a possibilidade de presença de ENBT em contexto de febre e de infecção, poderá atrasar o diagnóstico insistindo na terapêutica antibiótica, que não resolve o caso.
A RMN-E com difusão, para além de apresentar sensibilidade e especificidade superiores à TC para detecção de lesões isquémicas embólicas, auxilia na diferenciação entre EI e ETNB nos casos de embolização cerebral. Enquanto na ETNB as lesões isquémicas são múltiplas, de diversos tamanhos e dispersas por todo o parênquima cerebral, na EI as lesões são únicas e resultam em enfartes focais. O padrão típico de ETNB resulta provavelmente da fraca organização celular da vegetação, com consequente facilidade em se fragmentar e embolizar9.
O tratamento da ETNB constitui um desafio clínico. Consiste na terapêutica antitumoral da neoplasia subjacente e anticoagulação sistémica ad aeternum. Infelizmente, na maioria dos casos, a neoplasia está metastizada à data do diagnóstico e a terapêutica é apenas paliativa. A terapêutica anticoagulante mais eficaz na prevenção da recorrência do tromboembolismo tem sido a heparina não fraccionada10. A enoxaparina de baixo peso molecular também tem sido utilizada para o efeito; no entanto a experiência com a sua utilização é mais limitada. Acredita-se que a coagulopatia trombótica na neoplasia não está associada a factores dependentes da vitamina K e, deste modo, a utilização de varfarina não está indicada nestes casos11. A cirurgia deverá ser considerada nos casos de disfunção valvular grave, insuficiência cardíaca congestiva e tromboembolismo recorrente, apesar da anticoagulação. A excisão cirúrgica das vegetações, com ou sem substituição valvular, provou ser eficaz em casos selecionados12.
Quadro I
Quadro I- Diferenças entre endocardite trombótica não bacteriana e endocardite infecciosa.
ETNB | EI | |
Febre | - | + |
Sopro cardíaco | - | + |
Leucocitose | - | + |
PCR | -/+ | + |
Hemoculturas/serologias | - | + |
Ecocardiograma | Vegetações com menos de 1cm de diâmetro, forma irregular. Abcesso e disfunção valvular são raros. | Massa móvel, tamanho variável, localizado na superfície auricular das válvulas aurículo-ventriculares ou superfície aórtica da válvula aórtica. Abcesso e disfunção valvular são comuns. |
RMN-E com difusão | Múltiplas lesões de diferentes tamanhos disseminadas pelo parênquima cerebral. | Lesão única, enfarte territorial ou múltiplas lesões punctiformes disseminadas pelo parênquima cerebral. |
Legenda: EI: endocardite infecciosa, ETNB- endocardite trombótica não bacteriana; PCR:proteina C reactiva; RMN-E ressonância magnética encefálica; +: presente, - : ausente. Quadro adaptado da referência 12.
Figura I

Ressonância magnética encefálica: lesões vasculares isquémicas recentes em topografia pré-central à esquerda, corticais e subcorticais e temporal posterior.
Figura II

Tomografia computorizada abdominal: Fígado com dimensões moderadamente aumentadas com múltiplas lesões nodulares confluentes de ambos os lobos de segura natureza secundária. Pâncreas com duas lesões nodulares, neoplásicas, parcialmente quisticas respectivamente na cabeça (20mm) e na cauda (7x7 cm).
BIBLIOGRAFIA
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