Introdução
A Trombastenia de Glanzmann (TG) foi documentada pela primeira vez em 1918 pelo Dr. Eduard Glanzmann(1). É uma doença autossómica recessiva caracterizada por défice na agregação das plaquetas, causada por ausência de Glicoproteínas (GP) IIb e IIIa(2).
Os genes que codificam as referidas GP estão localizados no cromossoma 17q 21-23, e estão já descritas mais de 20 mutações pontuais, deleções, inversões, entre outras(3). Foram também descritas raras formas adquiridas causadas por anticorpos contra a Integrina αIIbβ3(4-8).
Apesar de extremamente rara a nível mundial com incidência reportada de 1/100,000(9), é mais frequente nas populações com casamentos consanguíneos onde a sua frequência pode ser comparável a doenças mais comuns como a de Von Willebrand(1). Apesar de predominarem defeitos específicos em grupos étnicos as mutações são geralmente específicas para cada família(10). Há ligeira predominância no sexo feminino(4) e o diagnóstico é geralmente feito na infância.
A TG classifica-se em Tipo I, Tipo II e Tipo III ou Variante(1) – Quadro 1. Os heterozigóticos assintomáticos expressam 50-60% do complexo, distinguindo-se desta forma do tipo III, e têm testes de função plaquetária normais(1). Não existe relação entre a quantidade de complexo GPIIb/IIIa presente e a gravidade clínica.
A deficiência na função plaquetária tem como consequência um distúrbio hemorrágico de gravidade variável(1): a púrpura cutânea surge geralmente como resultado de trauma minor e é raro ser verdadeiramente espontânea; a epistáxis é mais frequente na infância e geralmente persiste na vida adulta sendo causa frequente de hemorragia clinicamente significativa; a gengivorragia é mais frequente nos casos de má higiene dentária; a menorragia ocorre principalmente com a menarca e por vezes acarreta necessidade de suporte transfusional. A hemorragia gastrointestinal, hematúria, hemartroses e hemorragia intracraneana são pouco frequentes mas potencialmente graves, tal como hemorragia secundária a traumatismo. A frequência das hemorragias graves espontâneas tende a diminuir com a idade(11).
A avaliação diagnóstica das doenças plaquetárias é complexa, mal estandardizada, morosa, o que aliado ao largo espetro de doenças conhecidas – algumas bastante raras – representa um desafio clínico e laboratorial(12). A TG caracteriza-se por: (i) morfologia e contagem plaquetária normais; (ii) prolongamento do tempo de hemorragia (o mais antigo teste de função plaquetária, não recomendado atualmente por ser invasivo, dependente do operador, pouco reprodutível, sensível e específico(12)); (iii) agregação plaquetária ausente na presença de agonistas (Epinefrina, Colagéneo, Ácido araquidónico, Adenosina difosfato/ ADP) e normal em resposta à Ristocetina(1); (iv) ausência do complexo GPIIb/IIIa.
Para a avaliação da agregação plaquetária é utilizado o Platelet Function Analyser-100 (PFA-100). Fornece um resultado final quantitativo que se expressa em termos de “tempo de encerramento” – tempo necessário para que se forme um agregado plaquetário que interrompa o fluxo sanguíneo através do instrumento; sensibilidade de 97%(13).
O exame confirmatório é a Citometria de Fluxo, que quantifica o complexo GP IIb/IIIa através do uso de anticorpos monoclonais. A análise de DNA é o teste mais sensível para detecção do estado de portador mas apenas quando se conhece o defeito, limitando a sua utilidade clínica(1).
Não há cura conhecida para a TG. A hemorragia é a principal preocupação e o tratamento deve ser individualizado consoante a gravidade clínica: medidas de hemostase local (compressão, aplicação tópica de trombina, tamponamento nasal na epistáxis); antifibrinolíticos; transfusão plaquetária, sendo a aloimunização contra HLA e/ou glicoproteínas GPIIb/IIIa uma preocupação importante mas não contraindicação visto o risco ser semelhante ao de qualquer doente transfundido; Fator VII recombinante ativado (rFVIIa), recomendado para profilaxia e tratamento da hemorragia nos doentes com TG e anticorpos para GPIIb/IIIa e/ou HLA, e refractariedade passada ou presente a transfusões plaquetárias (13). No caso de hemorragia aguda grave podem ter de ser necessárias todas as medidas terapêuticas descritas, com especial atenção para o uso do rFVIIa e transfusão plaquetária. O papel do transplante de células hematopoiéticas permanece controverso e o risco-benefício deve ser ponderado individualmente, mas oferece a única abordagem terapêutica a doentes com fenótipo grave(14). A desmopressina não está recomendada dado os resultados controversos(10). No campo da terapêutica genética ainda decorrem trabalhos de investigação(14).
Dada a variabilidade clínica é fundamental o aconselhamento de medidas preventivas: os familiares de indivíduos com TG devem realizar diagnóstico pré-natal quando o genótipo da doença é conhecido(15); evicção de fármacos que afetam a função plaquetária, como Antiinflamatórios não esteróides (AINEs) ou Aspirina; imunização para Hepatite B dado o risco infeccioso na transfusão frequente; contraceptivos orais para controlo da menorragia; revisões dentárias regulares para evitar gengivorragia; suplementos de ferro para anemia ferropénica. Os procedimentos cirúrgicos devem ser planeados com cautela e feita pesquisa prévia de anticorpos antiHLA e antiplaquetários para eventual suporte transfusional. A grávida com TG deve ser acompanhada em consulta de especialidade, e feito um plano de parto cuidadoso que inclua investigação do recém-nascido(14).
A morbilidade e mortalidade globais têm sido difíceis de estimar devido à sua raridade, mas na maior parte dos estudos o prognóstico provou-se favorável(1).
As autoras descrevem em seguida um caso clínico que se salienta, para além da já explicada raridade da patologia, pela sua apresentação atípica, tardia e de doença ligeira, até à data pouco valorizada, e que como tal deve servir de alerta no diagnóstico diferencial da prática clínica.
Caso Clínico
Uma mulher de 46 anos, com antecedentes pessoais de hipertensão arterial e dislipidemia controladas com lisinopril e sinvastatina, respectivamente, foi referenciada à Consulta de Medicina Interna por equimoses desencadeadas por trauma minor, gengivorragias espontâneas frequentes e autolimitadas e menorragias desde jovem. Quando questionada referia equimoses fáceis desde a infância com agravamento com consumo de AINE’s e recurso desde jovem a contraceptivos orais estroprogestativos para controlo da menorragia. Negava complicações hemorrágicas em procedimentos dentários e obstétricos (G3P2), bem como cirurgias anteriores. Negava consanguinidade na família ou história familiar de tendência à hemorragia.
Ao exame objectivo apresentava boa higiene dentária, não sendo objectivada discrasia hemorrágica, linfadenopatias ou hepatoesplenomegália.
Considerando a hipótese diagnóstica de patologia da hemostase foi iniciada a investigação. Da investigação laboratorial inicial salientam-se hemograma e plaquetas normais, e esfregaço de sangue periférico e coagulação sem alterações. A análise da função plaquetária por PFA-100 mostrou um tempo de encerramento prolongado. O estudo de fatores de coagulação VIII e de Von Willebrand (FvW) foi normal. Perante os resultados de alteração de hemostase primária com FvW normal, suspeitou-se de um defeito qualitativo/quantitativo da Glicoproteína IIb/IIIa. Procedeu-se ao estudo de agregação plaquetária que, revelando ausência de agregação plaquetária na presença dos agonistas ADP, Ácido araquidónico, Colagéneo e Epinefrina, e agregação na presença de Ristocetina, foi compatível com Trombastenia de Glanzmann. A confirmação diagnóstica foi efectuada por Citometria de Fluxo, que mostrou diminuição do CD42b, CD41a (MFI 1107) e CD49b, bem como uma expressão normal de CD62P após activação com trombina, e uma ausência de expressão de GPIIb/IIIa (PAC-1) após activação com trombina. Considerou-se não ser necessária a pesquisa de anticorpos contra a Integrina αIIbβ3, para exclusão de eventuais forma adquiridas de TG, visto as descritas até à data resultarem de uma GPIIb/IIIa normal, o que não é o verificado no presente caso.
Tendo em conta as manifestações hemorrágicas minor, foram dados conselhos de prevenção de eventuais complicações: evicção do consumo de AINEs ou Aspirina, hemostase local cuidadosa em pequenos procedimentos cirúrgicos ou feridas, e recurso a suporte transfusional com plaquetas no caso de procedimentos cirúrgicos com risco hemorrágico importante.
Discussão
O presente caso é um exemplo de TG ligeira com manifestações minor desvalorizadas pela doente ao longo da vida. Este facto foi o que levou ao diagnóstico tardio, efectuado apenas na idade adulta contrariamente aos casos habitualmente descritos, e que como tal tem especial relevância pela sua raridade, servindo assim como exemplo para futuras considerações em diagnóstico diferencial(16). A doente referia inclusivé necessidade de anticonceptivos orais para controlo da menorragia, facto também desvalorizado.
A avaliação diagnóstica das doenças plaquetárias não está actualmente bem estandardizada. Na ausência de história familiar específica seguiram-se os passos habituais na suspeita de patologia da hemostase com discrasia hemorrágica cutâneo-mucosa: hemograma com contagem de plaquetas, esfregaço sanguíneo para análise da morfologia plaquetária e tempos de coagulação (tempo de protrombina e tempo de tromboplastina parcial ativada/aPTT). Dada a sua normalidade prosseguiu-se para a análise de função plaquetária (PFA-100) e o doseamento de Factor VIII e FvW, dado que a doença de von Willebrand pode ocorrer na ausência de prolongamento do aPTT. A evidência de tempo de encerramento prolongado confirmando uma alteração de hemostase primária com exclusão de doença de Von Willebrand, consolidou a suspeita de patologia da agregação plaquetária por defeito qualitativo/quantitativo da GPIIb/IIIa. É importante notar que o PFA-100 não é específico nem preditivo de qualquer patologia, sendo de primeira linha em indivíduos com suspeita de patologia plaquetária hereditária(13). Procedeu-se ao estudo de agregação plaquetária que revelou ausência de agregação na presença dos agonistas ADP, Ácido araquidónico, Colagéneo e Epinefrina – dependentes da ligação do fibrinogéneo à plaqueta para agregação –, mantendo-se a agregação com Ristocetina – porque esta estimula a agregação plaquetária através da ligação do FvW ao receptor glicoproteico GPIb (13). Este padrão reflete caracteristicamente a função essencial do complexo GPIIb/IIIa que sofre alterações conformacionais permitindo ligação ao fibrinogéneo: esta ligação é comprometida nas plaquetas da TG porque estas não têm capacidade de agregação por ausência total ou parcial ou alteração qualitativa da GPIIb/IIIa. O resultado necessitava de confirmação com Citometria de Fluxo, que mostrou diminuição do CD42b, CD41a e CD49b confirmando o diagnóstico de Trombastenia de Glanzmann.
Apesar da hipertensão e dislipidemia serem factores de risco trombótico na presença de um síndrome hemorrágico, no presente caso, e contrariamente à grande maioria dos relatos prévios na literatura(11), as manifestações hemorrágicas foram de pouca gravidade e sem interferência significativa no quotidiano da doente. Este facto ilustra a fraca correlação clinico-laboratorial que ocorre na Trombastenia de Glanzmann.
Conclusão
Este caso descreve uma apresentação tardia de uma doença rara, que embora geralmente diagnosticada na infância passou despercebida no contexto da pouca gravidade dos sinais e sintomas, sem repercussão significativa na vida da doente.
Embora actualmente estejam disponíveis fármacos para controlo de hemorragia grave ou refractária, o diagnóstico precoce possibilita a prevenção destas situações através de recomendações gerais como as sugeridas à doente em causa.
Quadro I
Classificação da Trombastenia de Glanzmann
Classificação | Quantidade de Complexo GPIIb/IIIa presente na superfície plaquetária |
Tipo I | < 5% do normal |
Tipo II | 10-20% do normal |
Tipo III ou Variante | Níveis normais, mas proteína disfuncionante |
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