Introdução
A rabdomiólise é definida como uma síndrome clínico-laboratorial decorrente da lise das células do músculo esquelético , com a libertação de substâncias intracelulares para a circulação (1) . A apresentação clínica é muitas vezes subtil, cursando com sintomatologia inespecífica, sendo necessário um elevado índice de suspeição diagnóstica. O quadro decorre frequentemente com sintomas constitucionais, como sensação de mal-estar geral, náuseas e vómitos. A sintomatologia diretamente relacionada com o sistema muscular ( mialgias, fraqueza, rigidez e contracturas musculares ) verifica-se em apenas 50% dos casos . A etiologia da rabdomiólise é multifatorial, estando habitualmente relacionada com situações traumáticas, actividade física extenuante, crises convulsivas, quadros infeciosos e consumo de fármacos, álcool e substâncias ilícitas. O diagnóstico e a terapêutica precoces são fundamentais para prevenir a progressão para insuficiência renal aguda. A rabdomiólise induzida por fármacos constitui um facto bem conhecido da prática clínica,com especial relevo para os inibidores da hidroxi-metil-CoA-redutase, os neurolépticos , os inibidores da recaptação da serotonina e alguns anestésicos. A farmacopeia não convencional, largamente disponível no mercado, e amplamente consumida nos países industrializadaos, integra uma grande variedade de produtos , frequentemente tomados em simultâneo com os fármacos de síntese, sobre os quais a medicina convencional pouca informação dispõe. A despeito da sua origem natural , o consumo de produtos pretensamente terapêuticos que circulam à margem das regras de farmacovigilância apresenta múltiplos riscos amplamente documentados na literatura, sendo arabdomiólise um dos efeitos adversos atribuídos a este tipo de substâncias.
Caso Clínico Doente do sexo masculino, 27 anos, funcionário de empresa de segurança, sem antecedentes patológicos relevantes , com prática desportiva amadora regular . Recorre ao Serviço de Urgência por quadro de mialgias, dores abdominais tipo cólica , náuseas e vómitos , com cerca de 6 horas de evolução. Negava outras queixas nomeadamente febre , alterações do trânsito intestinal, ou modificação da cor da urina. Não tinha efectuado esforço físico significativo nos últimos dias , nomeadamente em âmbito desportivo, negando também qualquer traumatismo .Não fazia medicação regular , referindo ter tomado durante o último mês um suplemento alimentar com finalidade de “ tonificação muscular” apresentado sob a forma mista,de tisana e de cápsulas,comercialmente designado por “ LIPO SET”. Referia hábitos alcoólicos sociais , negando toxicofilias.Ao exame objectivo apresentava-se vígil, consciente e orientado. Eupneico e apirético. Pele e mucosas coradas e hidratadas. Escleróticas anictéricas. Auscultação pulmonar-murmúrio vesicular mantido sem ruídos adventícios. Auscultação cardíaca - tons puros, ritmo regular; FC-65 ppm. Abdómen mole e depressível ligeiramente doloroso à palpação generalizada, sem defesa. Bloomberg negativo; Murphy renal e vesicular negativos. Sem hepato-esplenomegalia palpáveis. Sem edemas dos membros inferiores Das análises efetuadas destacava-se:Hb 13.8 g/dL ; Leucocitos 6.400/ 75%N ; plaquetas 205000;CK 67.655 UI/L ;AST 1123 UI/L; ALT 375 UI/L; LDH 920 UI/L;Mioglobina 127 µg /L ( VN-10- 45 µg /L);Creat 0.8 mg/dL;Sódio -130 mmol/L; Potássio - 4.2 mmo/L;PCR 0.87 mg/dL; INR 1.06 ;APTT 11.3 s. Urina II com hemoglobina 0,6 mg/dl, sem alteraçõs do sedimento urinário, nomeadamente cilindrúria.Apesar da inspecificidade do quadro clínico,os dados laboratoriais confirmaram o diagnóstico de rabdomiólise, tendo-se instituído as medidas terapêuticas de hidratação e de protecção renal adequadas. A acentuada elevação de AST e ALT foi enquadrada no contexto de lise muscular, em concordância com os valores de CK ,Mioglobina e DLH, tendo-se , contudo, excluído infeção concomitante pelos vírus de hepatite A, B ,C, EBV e CMV , cujas serologias foram negativas. A ecografia hepatobiliar não mostrou alterações da ecoestrutura hepática ou do calibre das vias biliares. A evolução clínica careterizou-se por regressão progressiva dos valores de CK, AST, ALT e DLH, que se encontravam praticamente normalizadas ao 6º dia de internamento. A reavaliação analitica efetuada em consulta externa, 3 meses após alta, mostrou ausência de quaisquer sintomas e normalização completa dos parâmetros laboratoriais.
Discussão O recurso a produtos naturais com finalidade terapêutica constitui uma prática instalada e crescente nos países desenvolvidos nas últimas décadas. Só na União Europeia o mercado de suplementos alimentares atingiu no ano de 2009, o valor de 7 biliões de Euros (2) . A composição destes produtos é muito variada, incluído mais de quatro centenas de ingredientes, entre vitaminas, próbióticos, aminoácidos, enzimas e extractos de plantas (2) . São habitualmente disponibilizados sob a forma de infusões ou de comprimidos, estando o seu consumo frequentemente relacionado com o controlo da obesidade , a modelação muscular , o bem estar físico ou pretensos objetivos “desintoxicantes”. O estatuto de “produto natural” confere a estes preparados uma falsa imagem de segurança ,porque são de venda livre e podem ser adquiridos sem qualquer restrição, nomedamente através da Internet. Não são, contudo isentos de efeitos adversos,estando claramente documentados na literatura vários casos de rabdomiólise secundária ao seu consumo (3, 4, 5, 6, 7). Na composição do suplemento identificado no presente caso constam para além da L-Carnitina, as espécies botânicas Cassia senna, Alisma orientalis , Nelumbo Sp , Camellia sinensis, Citri reticulatae, Salvia miltiorrhiza, Cassia grandis e Hordeum vulgare. A escassez de dados credíveis sobre a constituição química da maioria dos chamados “ produtos naturais“, o insuficiente conhecimento das suas eventuais ações farmacológicas, e a frequente omissão dos seus potenciais efeitos adversos tornam particularmente difícil a determinação de critérios de imputabilidade, em caso de suspeita de toxicidade. No caso apresentado , admitiu-se uma correlação causa- efeito apoiada na literatura e na relação temporal entre a toma do produto e a instalação do quadro de rabdomiólise, após terem sido excluídas as outras causas de lesão muscular aguda, nomeadamente de etiologia mecânica, medicamentosa ou infeciosa. Um dos mecanismos desencadeantes de rabdomiólise induzida por fármacos e substâncias ilícitas parece ser a isquémia muscular (8). De acordo com a literatura, a maioria dos suplementos alimentares, habitualmente de origem vegetal, implicados em situações de rabdomiólise, contêm teores elevados de efedrina e de sinefrina , cujo efeito vasoconstritor poderia induzir isquémia transitória do músculo estriado (5, 6). Os extractos de Citri reticulatae , um dos constituintes da suplemento “LIPO SET” contêm substâncias simpaticomiméticas, nomeadamentea sinefrina (9) que poderiam, por essa via, ter constituído o fator determinante do quadrode rabdomiólise.
BIBLIOGRAFIA
1.Rosa, NG; Silva G, Teixeira A et al. Rabdomiólise. Acta Méd Port. 2005; 18: 271-282
2. EU Regulations on Food Supplements, Health foods, herbal medicines. http://export.gov/europeanunion/static/MR162
3. See comment in PubMed Commons belowHaller C, Kearney T, Bent S, Ko R, Benowitz N, Olson K. Dietary supplement adverse events: report of a one-year poison center surveillance project. J Med Toxicol. 2008 Jun;4(2):84-92
4.See comment in PubMed Commons belowScroggie DA, Harris M, Sakai L. Rhabdomyolysis associated with nutritional supplement use. J Clin Rheumatol. 2000 Dec; 6(6):328-32
5.Stahl CE, Borlongan CV, Szerlip M, Szerlip. No pain, no gain-exercise-induced rhabdomyolysis associated with the performance enhancer herbal supplement ephedra. Med Sci Monit. 2006 Sep; 12(9):CS81-4.
6.Burke J, Seda G, Allen D, Knee TS. A case of severe exercise-induced rhabdomyolysis associated with a weight-loss dietary supplement. Mil Med. 2007 Jun;172(6):656-8
7.Elsayed RK, Glisson JK, Minor. Rhabdomyolysis associated with the use of a mislabeled acai berry dietary supplement. Am J Med Sci. 2011 Dec; 342(6):535-8.
8.Welte T, Bohnert M , Pollak S.Prevalence of rhabdomyolysis in drug deaths. Forensic Science International. 2004; 139 : 21–5
9.Chan E, Tan M, Xin Ji et al.Interactions between traditional Chinese medicines and Western Therapeutics. Current Opinion in Drug Discovery & Development. 2010; 13(1):50-65