Introdução
A hipocaliémia é um distúrbio eletrolítico definido pela concentração sérica de potássio (K+S) inferior a 3,6 mmol/L 1. Em condições fisiológicas os níveis plasmáticos de potássio são mantidos entre 3,6 e 5 mmol/L e a sua regulação é determinada principalmente pela excreção renal 2. A hipocaliémia pode resultar do défice de ingestão, aumento das perdas renais ou extra-renais (causa mais frequente) e pela redistribuição do espaço extracelular para o espaço intracelular 2, 3, 4. Na maioria dos casos a causa é evidente pela história clínica 3.
Nas perturbações alimentares a hipocaliémia é o distúrbio eletrolítico mais comum, secundária ao abuso de laxantes ou diuréticos e aos vómitos 5. O abuso de laxantes conduz à acidose metabólica hiperclorémica, sendo uma causa menos frequente de hipocaliémia 3. A hipocaliémia associada à alcalose metabólica de etiologia não evidente tem como principais causas: vómitos sub-reptícios, abuso de diuréticos, Síndrome de Bartter (SB) e Síndrome de Gitelman (SG) 3.
O diagnóstico diferencial de cada uma destas situações clínicas é complexo, obrigando ao reconhecimento de subtis diferenças laboratoriais entre cada patologia, constituindo assim um importante desafio diagnóstico.
Após exclusão das causas mais frequentes, o abuso de diuréticos deve ser considerado, especialmente em mulheres jovens, sem hipertensão e com alguma perturbação da imagem corporal 3.
Caso clínico
Doente do sexo feminino, de 55 anos de idade, com antecedentes pessoais de: depressão major com seguimento em consulta de Psiquiatria, diabetes mellitus tipo 2 insulino-tratada sem aparentes complicações de orgão alvo, hipertensão arterial essencial controlada, doença pulmonar obstrutiva crónica tabágica, com seguimento em consulta de Medicina Interna.
No último ano apresentou três internamentos por hipocaliémia. No primeiro, a causa foi atribuída ao uso de metolazona. Nos internamentos subsequentes a hipocaliémia foi atribuída ao uso de laxantes e à diurese osmótica por glicosúria persistente, no contexto de diabetes mellitus não controlada, atingindo-se adequado controle glicémico e normalização da caliémia.
Seis dias após o último internamento, a doente é internada no Serviço de Nefrologia, por astenia e cansaço fácil. Encontrava-se medicada com: espironolactona 50mg/dia, cloreto de potássio 1200mg/dia, omeprazol 20mg/dia, telmisartan 20mg/dia, alprazolam 0,5mg/dia, insulina mixtard 30 (18+14 unidades), fluoxetina 40mg/dia, mirtazapina 30mg/dia, ciamemazina 100mg/dia, metformina 1700mg/dia, sitagliptina 50mg/dia, salmeterol 50mcg/fluticasona 250mcg 2inalações/dia. Negava toma de outros diuréticos ou laxantes, vómitos, diarreia ou alterações do débito urinário.
Ao exame objetivo apresentava pressão arterial de 121/77mmHg, frequência cardíaca 74bpm, peso 71,3Kg e restante exame objectivo sem alterações a referir. A avaliação laboratorial demonstrava hipocaliémia com K+S 2,5mmol/L, hipoclorémia com cloro sérico (CL-S) 92mmol/L e alcalose metabólica (pH 7,52, pCO2 41,4mmHg, bicarbonato 33mmol/L). A urina ocasional revelava: pH 7, densidade 1,012, sem glicosúria, potássio urinário (K+U) aumentado (39mmol/L) e cloro urinário (Cl-U) aumentado (54mmol/L). A função renal era normal (creatinina sérica 0,7mg/dL). Eletrocardiograma: ritmo sinusal, aplanamento das ondas T nas derivações precordiais, QT 480ms
Dada a recorrência e cronicidade do quadro e encontrando-se a doente estável, não foi iniciada reposição de potássio e foram suspensos alguns dos fármacos com efeito na caliémia (telmisartran, espironolatona, cloreto de potássio oral e salmeterol) por forma a não influenciar a investigação do quadro clínico.
Foi realizada uma avaliação laboratorial diária do ionograma sérico e urinário (Tabela I e Figura 1). Ao 3º dia de internamento, após colheita de urina 24h, foi iniciada reposição de potássio (por via oral e depois por via intra-venosa).
Durante o internamento a doente não apresentava sinais de desidratação, com a pressão arterial mínima de 93/64mmHg e máxima de 138/82mmHg, peso mínimo de 70kg e débito urinário normal. Na maioria dos dias manteve hipocaliémia e hipoclorémia, alcalose metabólica, K+U e Cl-U inadequadamente aumentados (K+U>20mmol/L e Cl-U>20mmol/L) (Tabela 1 e Figura 1). A excreção urinária aumentada de potássio e cloro foi persistente ao longo do internamento, mas com oscilações acentuadas. A avaliação do K+U em 24h e do rácio K+U/creatinina urinária (CrU) confirmava a excreção urinária aumentada. Foram documentados episódios de vómitos alimentares, referidos pela doente, como intolerância à dieta hospitalar.
A excreção urinária de magnésio em 24h encontrava-se aumentada, 40,5mg/24h ( >24mg/24h) com a diminuição sérica a verificar-se mais tarde no internamento, apesar da fracção de excreção ser normal. Não foram encontradas alterações na excreção urinária de cálcio (135mg/24h) (Tabela 1).
Sete dias após suspensão de telmisartan foi avaliado o eixo-renina-angiotensina-aldosterona: aldosterona sérica 7,2 ng/dl (1-16 ng/dL); atividade plasmática da renina 27,67 ug/mL/hora (0,37-3,84 ug/mL/hora ). O cortisol sérico, o cortisol urinário e a função tiroideia revelaram-se normais.
Na presença de hipocaliémia e hipoclorémia por perda renal, alcalose metabólica, normotensão e hiperaldosteronismo secundário o diagnóstico diferencial considerado foi: SB/SG ou abuso de diuréticos. Por apresentar um quadro clínico com início no último ano e antecedentes de depressão major, foi considerada como mais provável a hipótese de toma sub-reptícia de diuréticos, que justificaria a variação encontrada no ionograma sérico e urinário. Dada a negação da toma de diuréticos durante todo o internamento, foi efectuada a pesquisa de diuréticos numa amostra de urina (8º dia de internamento, Figura 1), pelo Laboratório de Análises de Dopagem do Instituto do Desporto de Portugal, e identificada a presença de 2330 ng/mL furosemida, valor compatível com toma recente.
Em colaboração com a psiquiatria, a doente foi confrontada com os resultados analíticos ao 15º dia de internamento, admitindo o consumo de furosemida e metolazona, com intuito de diminuir o peso. Foram explicados os riscos associados ao seu comportamento. Teve alta clínica referenciada à consulta de psiquiatria, com ajuste da medicação psiquiátrica (foi associado lorazepam 2,5mg/dia, flurazepam 30mg/dia, topiramato 100mg/dia e suspensa a mirtazapina). Dada a possibilidade de recorrência do quadro, foi mantida a reposição de potássio com cloreto de potássio oral (3600mg/dia - 48meq/dia) e referenciada à consulta de nefrologia.
Discussão
Na maioria dos casos, a causa de hipocaliémia é evidente a partir da história clínica e de uma avaliação analítica básica. No entanto, por vezes é necessário implementar uma investigação criteriosa e sistemática para estabelecer o diagnóstico etiológico deste distúrbio eletrolítico.
Na presença de hipocaliémia, após a exclusão das causas frequentes, deve ser avaliada a excreção urinária de potássio. O K+U em urina 24h é o exame padrão na avaliação da excreção urinária: K+U <15 meq/dia aponta para causa extra-renal e K+U >15 meq/dia para causa renal 3. Também pode ser utilizado o rácio K+U/CrU mmol/g na urina ocasional 6,7 (Figura 2).
Na presença de K+U inadequadamente aumentado, pressão arterial normal ou baixa e alcalose metabólica, como o caso da nossa doente, devem ser considerados os seguintes diagnósticos: vómitos sub-reptícios, abuso de diuréticos e SB ou SG 3.
Nos vómitos, a alcalose metabólica hipoclorémica leva a excreção urinária aumentada de potássio, devido à bicarbonatúria e ao hiperaldosteronismo secundário (causado pela depleção de volume), com Cl-U baixo 3,6. A presença de Cl-U aumentado aponta para as restantes causas 3,8.
No abuso de diuréticos observa-se aumento da excreção urinária de sódio, potássio e cloro associada a alcalose metabólica. Efeito semelhante é encontrado no SB e SG, sendo o principal diagnóstico diferencial 3,9. A presença de marcadas variações no ionograma urinário de dia para dia, é uma pista importante, que sugere a utilização de diuréticos 3.
Os SB e SG são doenças genéticas com defeito na reabsorção de sódio e cloro ao nível da ansa de Henle e porção inicial do tubo contornado distal, respetivamente. Os sintomas surgem na infância ou início da idade adulta e são semelhantes ao efeito dos diuréticos de ansa no SB e tiazídicos no SG. A excreção cálcio urinário (Ca2+U) é normal/aumentada no SB e diminuída no SG 10, 11.
Neste caso, a excreção urinária de cloro e potássio inadequadamente aumentada, confinou o diagnóstico diferencial a abuso de diuréticos, SB e SG. Os SB e SG pareciam menos prováveis dada a faixa etária da doente, história familiar irrelevante e sintomas de aparecimento recente. As oscilações encontradas no ionograma urinário poderiam ser explicadas pela toma intermitente de diuréticos. A reposição de potássio e cloro ao longo do internamento, apenas permitiu a correcção da caliémia e da clorémia no 12º dia de internamento, quando se verificou uma diminuição da excreção urinária de potássio e cloro, sugerindo a redução ou suspensão do uso de diuréticos nesse período. O aumento do K+U no dia seguinte poderia indicar novo abuso de diuréticos. Dada a persistente negação de toma de diuréticos, a sua identificação na urina, foi a única forma de confirmar o diagnóstico.
Os diuréticos de ansa aumentam a excreção de Ca2+U e os tiazidicos diminuem 12. Neste caso a excreção de cálcio foi normal, provavelmente pelo consumo de ambos.
Adicionalmente, os vómitos alimentares poderiam explicar a menor excreção urinária de cloro em relação ao aumento da excreção urinária de potássio observada no 5º e 15º dias de internamento. A depleção de volume associada ao abuso de diuréticos e vómitos condicionou o hiperaldosteronismo secundário documentado.
Apesar da utilização de diuréticos ser uma das causas mais frequentes de hipocaliémia com alcalose metabólica, o seu diagnóstico é difícil em doentes que ocultam a sua utilização. A pesquisa de diuréticos na urina revelou-se um teste essencial para um diagnóstico fundamentado.
Quadro I
Resultados laboratoriais séricos e urinários ao longo do internamento
Parâmetro | Valores referência | D1 | D2 | D3 | D4 | D5 | D6 | D8 | D9 | D10 | D12 | D15 |
Na+S | 136 - 145 mmol/L | 136,0 | 136,0 | 137,0 | 136,0 | 136,0 | 136,0 | 138,0 | 141,0 | 140,0 | 143,0 | 135,0 |
K+S | 3,5 - 5,10 mmol/L | 2,5 | 2,6 | 2,6 | 2,5 | 2,9 | 2,4 | 2,5 | 3,0 | 3,0 | 4,1 | 3,4 |
Cl-S | 98 - 107 mmol/L | 92,0 | 94,0 | 95,0 | 90,0 | 96,0 | 93,0 | 97,0 | 102,0 | 100,0 | - | 97,0 |
Na+U | mmol/L | 100,0 | 64,0 | 74,0 | 78,0 | 34,0 | 50,0 | 19,0 | 18,0 | 50,0 | 28,0 | 17,0 |
FE Na+ | 0,8 - 1,2 % | 0,74 | 0,47 | 0,93 | 1,37 | 0,7 | 0,9 | 0,3 | 0,2 | 0,8 | 0,2 | 0,74 |
K+U | < 20 mmol/L * | 39,0 | 39,0 | 17,0 | 19,0 | 28,0 | 46,0 | 35,0 | 40,0 | 38,0 | 11,0 | 64,0 |
K+U/ CrU | < 13 mmol/g * | 48,8 | 55,7 | 42,5 | 61,3 | 93,3 | 131,4 | 125,0 | 75,5 | 135,7 | 16,2 | 98,5 |
Cl-U | < 20 mmol/L † | 54,0 | 92,0 | 81,0 | 78,0 | 53,0 | 95,0 | 48,0 | 50,0 | 89,0 | 21,0 | 32,0 |
FE Cl- | 0,8 - 1,2 % | 0,59 | 0,98 | 1,47 | 2,07 | 1,6 | 2,4 | 1,2 | 0,6 | 2,1 | 0,2 | 0,59 |
Mg2+S | 1,8 - 2,4 mg/dL | - | 1,9 | 1,8 | - | - | - | 1,5 | 1,4 | 2,1 | 1,8 | 1,9 |
Ca2+S | 8,5 - 10,1 mg/dL | - | 9,1 | 9,5 | - | - | - | - | - | 9,0 | - | 9,8 |
FE Mg2+ | < 3% ‡ | - | - | 1,97 | - | - | - | 0,7 | - | - | - | - |
Ca2+U/ CrU | < 0,14 mg/mg¶ | - | 0,02 | 0,13 | - | - | - | - | - | 0,01 | - | 0,1 |
Ph | 7,35 - 7,45 | 7,52 | - | - | 7,50 | - | - | - | - | - | - | - |
pCO2 | 35 - 45 mmHg | 41,4 | - | - | 47 | - | - | - | - | - | - | - |
Bicarbonato | 22 - 26 mmol/L | 33,0 | - | - | 34 | - | - | - | - | - | - | - |
* se hipocaliémia; † se hipoclorémia e habitualmente inferior a 10mmol/L na presença de vómitos; ‡ se hipomagnesémia; ¶ dieta normal. Na+S – sódio sérico, K+S – potássio sérico, Cl-S – cloro sérico; Mg2+S – magnésio sérico, Ca2+S – cálcio sérico, Na+U – sódio urinário, K+U – potássio urinário, Cl-U – cloro urinário, FE Na+ – fracção de excreção de sódio, FE Cl- fracção de excreção de cloro, K+U/CrU – rácio potássio urinário/creatinina urinária; FE Mg2+ - fracção de excreção de magnésio; pCO2 – pressão parcial de CO2; D1 - 1º dia de internamento
Figura I

Variação dos resultados laboratoriais séricos e urinários ao longo do internamento de acordo com as reposições iónicas e perdas gastro-intestinais
Figura II

Algoritmo diagnóstico de hipocaliémia
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Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.
Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.
Correspondência: Liliana Cunha, email: liliana.goncalves.cunha@gmail.com, Serviço de Nefrologia, Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca.