INTRODUÇÃO
O Clostridium difficile (Cd) é o principal causador de diarreia infecciosa hospitalar1. É um bacilo gram positivo anaeróbio transmissível por via oro-fecal e as toxinas A e B são os principais factores de virulência2,3. Desde 2001, o número e a gravidade de casos aumentaram no Canadá, EUA e Europa, principalmente nos idosos. Encontrou-se uma nova estirpe: NAP1 (North American Pulsed Field type 1) ou ribótipo 027 PCR (NAP1/027) caracterizada por maior produção de toxinas, resistência às quinolonas e produção de toxina binária4. Esta toxina binária (A e B conjuntas) aumentará a aderência da bactéria e a perda de líquidos5. Existem outros ribótipos (001, 017, 053, 078 e 106) hiperprodutores de toxinas com morbimortalidade acrescida6.
O principal factor de risco para infecção é a antibioterapia, pela alteração da flora intestinal comensal e menor pressão selectiva sobre o Cd. Fluoroquinolonas, clindamicina, penicilinas e cefalosporinas de espectro alargado possuem o maior risco7. Idade avançada, duração da hospitalização e co-morbilidades graves são outros factores3. A infecção tem vindo a aumentar em indivíduos assintomáticos e sem factores de risco7. O risco de Ir é maior com idade avançada, co-morbilidades graves, uso continuado de antibióticos e consumo de inibidores da bomba de protões (IBP)8.
A vancomicina controla as formas vegetativas durante a recomposição da flora comensal, mas é ineficaz em até 26% dos casos e a taxa de sucesso decai, em cada recorrência9. A elevada taxa de insucesso fez procurar alternativas eficazes. A colestiramina, ao ligar-se às toxinas do Cd, poderá ser um adjuvante da vancomicina, apesar de relatos contraditórios10. Há dados que equipararam a teicoplanina ao metronidazol ou à vancomicina2. Outros trabalhos mostraram menos recorrências nas espécies não-NAP1 com a fidaxomicina11. A rifaximina apresentou alguma vantagem, ao contrário da rifampicina2. Os probióticos com Saccharomyces boulardii associados à vancomicina poderão ser benéficos, mas há risco de fungémia em imunodeprimidos2.
O transplante de fezes (Tf) mostrou resultados encorajadores, mas o estigma cultural e a ausência de estudos aleatorizados limitavam o seu uso. Um trabalho recente provou a superioridade do transplante duodenal em relação à vancomicina. O racional consiste na restauração da flora intestinal, diminuindo as formas vegetativas do Clostridium. Neste trabalho, não houve contacto entre os dadores e os doentes, o que terá diminuído o risco de reinfecção e aumentado a diversidade da flora intestinal dos receptores, observada após o Tf9,12. As vias duodenal e cólica são distintas. A primeira pode conduzir à colonização ineficaz antes da flora atingir o cólon. A segunda, simples e barata, não garante a colonização proximal e a colonoscopia, quando usada, pode conduzir a perfuração12. Uma metanálise mostrou alguns riscos: a transmissão de infecções e os decorrentes da endoscopia (hemorragia, peritonite e enterite), mas sem mortalidade aumentada12. Outro artigo com 7 doentes com Ir, no qual os familiares foram dadores e os doentes auto-administraram os enemas, sugeriu que o Tf domiciliário seria seguro13. Está descrito um risco de doenças autoimunes a prazo14.
Este caso relata a modificação da história natural de uma Ir por Cd.
Definiu-se infecção como diarreia com 3 ou mais dejecções líquidas em 24h e um teste toxicológico positivo nas fezes. A Ir consistiu num ressurgimento da clínica, até 8 semanas, após melhoria com o tratamento adequado. O sucesso terapêutico foi estabelecido como ausência de sintomas durante mais de 8 semanas. A gravidade clínica foi estabelecida pelos critérios da Infectious Diseases Society of America: leucocitose superior ou igual a 15000 cel/uL ou creatinémia igual ou superior a 1,5 vezes o valor basal2.
O CASO:
Apresentamos uma mulher de 81 anos, parcialmente dependente após fractura bilateral do colo do fémur, com cognição preservada. Apresentava uretero-hidronefrose bilateral, gastrite crónica sob IBP, prótese biológica por estenose aórtica grave, fibrilhação auricular hipocoagulada, insuficiência cardíaca não classificável, doença renal crónica de estádio 3A, pancitopenia secundária à toma de antibióticos, carcinoma epidermóide do pulmão (lobectomizada 12 anos antes) e aneurisma da aorta abdominal. Desenvolveu infecções urinárias (ITU) de repetição com toma de vários antibióticos e, mais tarde, Ir por Cd. Por resposta desfavorável, foi submetida a um Tf.
Cerca de 5 meses antes do procedimento, apresentou ITU por agentes multiresistentes (MR): Providencia stuartii e Enterococcus faecium MR e Acinetobacter baumanni complex sensível apenas à colistina, além de Klebsiella pneumoniae e Proteus mirabillis multissensíveis. Tomou antibióticos de espectro alargado, como piperacilina/tazobactam, imipenem, ceftriaxona e colistina. Os agentes multissensíveis foram tratados com ciprofloxacina e amoxicilina com ácido clavulânico (AmC). Neste contexto, apresentou Ir por Cd, estirpe produtora de toxina A. Para a primo-infecção e primeira Ir foi tratada com metronidazol. A doente apresentou mais 4 Ir. Na segunda recorrência, iniciou vancomicina e rifampicina. A terceira recorrência foi grave, tomando teicoplanina, durante 6 dias, mas foi interrompida por pancitopenia agravada. Na quarta recorrência, utilizou-se metronidazol e vancomicina. Ao fim de 4 dias, fez curso de fidaxomicina durante 10 dias, mantendo-se assintomática durante 19 dias. Por nova Ir, fez novamente fidaxomicina, sem melhoria sustentada.
Por ausência de remissão e pela perspectiva de novas ITU, propôs-se o Tf (segundo protocolo por Van Nood et al). Para isso, escolheu-se um dador sem contacto regular com os cuidados de saúde ou a doente e cuja identidade se manteve sob anonimato. Excluiu-se HIV, HTLV 1 e 2, vírus HAV, HBV, HCV, CMV, EBV, VDRL, Strongyloides stercoralis, Entamoeba histolytica, Blastocystis hominis, Dientamoeba fragilis, Cd e outras bactérias enteropatogénicas no dador. Colheu-se uma amostra de fezes, 6 horas antes do procedimento, que foi diluída em 500 mL de soro fisiológico, filtrada e decantada para 1L de soro fisiológico a 17ºC. Introduziu-se 400 mL do sobrenadante no duodeno, através de uma sonda jejunal, por meio de endoscopia digestiva alta (EDA). Houve hemorragia digestiva, dias depois, com provável foco em clip da sonda nasojejunal. Este foi removido por EDA, sem intercorrências ou recidiva. Não houve outras complicações, nomeadamente gastrointestinais. Paralelamente, tratou-se com antibiótico as ITU graves e as restantes com medidas de suporte. Assim, cumpriu vários ciclos de antibioterapia: cotrimoxazol, AmC e ciprofloxacina para Morganela morgani multissensível, Proteus mirabillis MR, Escherichia coli MR e Pseudomonas aeroginosa multissensível. O IBP foi suspenso semanas antes da EDA. Durante 5 meses manteve-se sem infecção por Cd.
Após toma de levofloxacina por infecção respiratória, foi readmitida com nova infecção por Cd (produtora de toxina B, não NAP1), iniciando metronidazol. Por agravamento clínico, começou vancomicina, com melhoria. Foram isolados em urocultura Escherichia coli multissensível e Klebsiella pneumoniae EBSL, mantendo tratamento de suporte exclusivo, com boa resposta clínica. A primeira recidiva (com gravidade) ocorreu 3 semanas depois, começando vancomicina e metronidazol, sem sucesso. Por indisponibilidade de dador, devido a curso recente de antibiótico, manteve terapêutica durante 10 dias e teve alta com pulsos de vancomicina durante um mês, com sucesso terapêutico.
Está assintomática e sob algaliação crónica. As ITU sem gravidade são tratadas apenas com medidas de suporte.
DISCUSSÃO:
Mostramos alguns problemas decorrentes da utilização de antibióticos em idosos.
Até ao Tf, os antibióticos falharam. Os esquemas de vancomicina em pulsos/doses decrescentes e rifaximina podiam ter sido usados, mas não era provável um desfecho diferente, devido às ITU recorrentes. A utilização da rifampicina foi desadequada.
A colonização com agentes MR associada à gravidade das ITU’s implicou a utilização de antibióticos de largo espectro. Estes originaram Ir por Cd e o tratamento para o Cd permitiu selecionar as estirpes MR. A nova estratégia passou por tratar a infecção por Cd e reduzir o risco de recorrência: higiene (lavagem das mãos com água e sabão e isolamento de contacto), suspensão do IBP e tratamento de suporte exclusivo nas ITU sem gravidade. Para evitar cursos de antibioterapia desnecessários, a família contactou a equipa médica, aquando de sintomas de ITU ou febre.
O Tf permitiu a cura e um período de 5 meses sem sintomas, mesmo tomando antibióticos para ITU graves. O consumo de quinolona antecedeu a nova infecção por Cd, que foi curada com os antibióticos clássicos, facto que, aliado à produção de uma toxina diferente, sugere uma outra estirpe de Cd.
O protocolo de van Nood et al incluiu lavagem intestinal e vancomicina 4 a 5 dias antes do Tf. Por motivos de logística, a doente não fez lavagem e cumpriu 2 dias de vancomicina, reforçando a hipótese de que o Tf bastará para tratar a Ir.
Pensamos que esta estratégia foi a melhor, apesar da hemorragia digestiva, provavelmente associada à EDA (não descrita no protocolo original).
O rastreio do dador implica importantes custos. Criar um grupo de dadores, com rastreios de rotina, apresentaria uma melhor relação custo-benefício, principalmente em instituições com grande incidência de Ir.
O estigma cultural ultrapassou-se após disponibilização da literatura médica e com uma atitude desprovida de juízos de valor da equipa prestadora de cuidados.
CONCLUSÃO:
A infecção por Cd está a aumentar, consequência do uso de antibióticos numa população idosa.
Esta mulher, com ITU recorrentes (algumas por agentes MR), tratadas com múltiplos antibióticos, desenvolveu Ir por Cd. A cura sustentada só foi obtida após Tf, permitindo novos cursos de antibioterapia.
O Tf deve ser considerado como tratamento de primeira linha na infecção por Cd. Um grupo de dadores poderá permitir um acesso mais fácil e económico a esta terapêutica.
Quadro I
Tratamento da infecção por Cd
Episódio | Tratamento recomendado |
Infecção inicial (não grave) | Metronidazol, 500 mg, 3 id, po, 10-14 dias |
Infecção complicada ou grave | Vancomicina, 125 mg, 4 id, po, 10-14 dias |
Múltiplas recorrências | Transplante de fezes e esquema oral: Fidaxomicina, 200 mg, 2id, 10 dias ou Vancomicina: - 125 mg p.o 4x/dia durante 7 dias - 125 mg p.o 2x/dia durante 7 dias - 125 mg p.o. 1x/dia durante 7 dias - 125 mg p.o em dias alternados durante 7 dias - 125 mg p.o de 3/3 dias durante 14 dias |
Sem via oral disponível | Metronidazol, 500 mg, 3 id, po, 10-14 dias (ligeira) Metronidazol, 500 mg, 3 id, po, 10-14 dias e Vancomicina, 500 mg, 4 id, po, 10-14 dias (grave) |
Tratamento da infecção por Cd segundo a European Society of Clinical Microbiology and Infectious Diseases
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