Introdução
A rinorreia por fístula de líquido cefalorraquidiano (LCR) é uma apresentação extremamente rara no âmbito da prática clínica.1 No entanto, uma vez presente torna-se essencial esclarecer a sua etiologia mais provável. A fístula de LCR pode ser classificada como traumática, iatrogénica e espontânea/idiopática.1 As causas traumáticas constituem a maioria e incluem tanto lesões faciais contusas como penetrantes. Das causas iatrogénicas fazem parte as intervenções cirúrgicas. Já a elevação da pressão intracraniana (PIC) é considerada uma das causas espontâneas, muito menos frequentes.2,3 Nestes casos, a pressão exercida sobre as estruturas ósseas do crâneo resulta em remodelação óssea e estreitamento, formando um defeito adquirido. A duramáter pode herniar através desse defeito formando um meningocelo. Se o defeito for extenso, o parênquima cerebral também pode herniar, denominando-se encefalocelo.
Caso clínico
Doente de 52 anos, género masculino, recorreu ao Serviço de Urgência (SU) por discurso repetitivo e incoerente com quatro meses de evolução e agravamento na última semana. O doente referia alucinações visuais e alterações olfativas, queixando-se de uma sensação persistente de mau odor. Acrescentava distúrbios comportamentais, tais como irritabilidade, labilidade emocional e negligência com a higiene diária. Mantinha uma rinorreia diária à direita, com dez meses de evolução, que exacerbava com os movimentos da cabeça, por vezes havendo “saída de líquido suficiente para molhar a roupa da cama”-sic, e que não cedia a terapêutica anti-histamínica. Concomitantemente, referia ainda cefaleias holocraneanas, intermitentes, pulsáteis, com segundos de duração, que agravavam com a tosse, sem fatores de alívio, sem relação com ortostatismo ou decúbito. Negava náuseas, vómitos, foto-fonofobia, rigidez de nuca. Negava alterações do estado de consciência ou da memória. Sem vertigens, tonturas, convulsões ou alterações da linguagem ou da marcha. Negava ansiedade, no entanto referia humor deprimido por contexto familiar. Sem registo de febre. Os seus antecedentes pessoais incluíam hipertensão arterial, hábitos tabágicos mantidos (60 unidades maço ano) e vindas anteriores ao SU com queixas semelhantes. Foi diagnosticado inicialmente com rinite alérgica e tratado com corticoesteróides nasais. Os seguintes diagnósticos incluíam tanto a psicose afetiva como a depressão, tendo tido alta com indicação de realizar terapêutica antidepressiva. Da medicação habitual fazia parte losartan 100mg. Trabalhava numa fábrica de tecidos. O doente não tinha antecedentes traumáticos, cirúrgicos, patológicos ou familiares de relevo.
À chegada ao SU apresentava-se consciente, colaborante e orientado; hipertenso (135/102 mmHg) e apirético; o índice de massa corporal correspondia a 37 kg/m2. A auscultação cardio-pulmonar e exploração abdominal eram normais. Sem galactorreia. Ao exame neurológico não apresentava défices focais. Não tinha sinais meníngeos. À rinoscopia não eram evidentes fístulas nem desvio do septo nasal. Não tinha dor à palpação dos seios perinasais. Ao testar o olfato, pedindo ao doente para identificar vários cheiros sem visualizar o objeto correspondente, este não era capaz de os correlacionar corretamente. Dos exames complementares realizados, não existiam alterações analíticas. Por se tratar de um doente com várias vindas anteriores ao SU e dada a clínica apresentada, foi realizada uma tomografia computorizada crâneo-encefálica (TC-CE) que revelou “solução de continuidade óssea entre a base craniana frontal direita e a órbita, suspeitando-se de cefalocelo” (Fig. 1-2). Neste seguimento, a ressonância magnética nuclear crâneo-encefálica (RMN-CE) confirmou a existência de “procidência meningoencefálica na região medial da órbita direita e células etmoidais homolaterais adjacentes” (Fig. 3-4). Como prova adicional, foi pedido um electroencefalograma que não tinha alterações.
Após a confirmação diagnóstica, o doente foi submetido a intervenção neurocirúrgica com reparação da solução de continuidade dural e do andar anterior, assim como cranialização dos seios frontais. No período posterior à cirurgia houve remissão completa da clínica descrita. O doente não referiu novos episódios de rinorreia, cefaleia, alterações do discurso, comportamento, visão ou olfato. Em TC-CE posterior não havia evidência de alterações parenquimatosas (Fig. 5).
Discussão
A cefaleia é considerada como sendo a manifestação mais frequente da fístula de LCR, podendo estar associada a sintomas adicionais, tais como, rigidez de nuca, náuseas, vómitos, diplopia, tonturas, alterações da audição, fotofobia, dor a nível interescapular, parestesias faciais, galactorreia, parkinsonismo, ataxia, encefalopatia, demência frontotemporal, distúrbios da marcha, comportamento inapropriado ou coreia4,5,6,7. A rinorreia é uma manifestação bastante mais rara da fístula de LCR que pelo seu carácter atípico nem sempre é considerada no diagnóstico diferencial em situações de urgência, principalmente quando a sua causa é espontânea/idiopática como a descrita.7 No caso clínico apresentado o doente referia rinorreia unilateral persistente com uma evolução prolongada, sintoma que foi previamente tratado com terapêutica dirigida a um provável distúrbio alérgico ou psiquiátrico. Apesar do diagnóstico tardio, neste caso específico não foram descritas complicações após o tratamento neurocirúrgico. No entanto, a fístula de LCR pode conduzir a situações potencialmente fatais (meningite, abcesso cerebral, pneumencéfalo)1,8, mas evitáveis se o seu reconhecimento for realizado precocemente e se o seu tratamento for previamente dirigido.
Figura I

Corte coronal de TC-CE, demonstrando a solução de continuidade entre a base craniana frontal direita e a órbita homolateral.
Figura II

Corte axial de TC-CE, demonstrando a solução de continuidade entre a base craniana frontal direita e a órbita homolateral.
Figura III

Corte coronal de RMN-CE demonstrando a procidência meningoencefálica na região medial da órbita direita e células etmoidais homolaterais adjacentes.
Figura IV

Corte axial de RMN-CE demonstrando a procidência meningoencefálica na região medial da órbita direita e células etmoidais homolaterais adjacentes.
Figura V

Corte axial de TC-CE posterior demonstrando lesão clástica córtico-subcortical frontobasal direita com descontinuidade da parede medial da órbita direita através da qual faz procidência uma banda de tecido mole composto por tecidos de reparação cirúrgica.
BIBLIOGRAFIA
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