Introdução
A Doença de Still do Adulto (DSA) é uma doença inflamatória sistémica, rara, de etiologia desconhecida, cujas principais manifestações incluem febre elevada, exantema maculopapular evanescente, artralgias e odinofagia persistente. O diagnóstico é clínico e implica a exclusão de outras patologias infeciosas, autoimunes e neoplásicas.
Caso Clínico
Mulher de 22 anos, raça negra, natural de Cabo Verde, residente em Portugal há 3 anos, sem antecedentes de relevo, nem medicação habitual. Quadro com 5 meses de evolução, de início insidioso e agravamento progressivo, condicionando limitação funcional importante, caraterizado por poliartralgias simétricas de ritmo inflamatório, inicialmente localizadas aos joelhos, que posteriormente se estenderam aos punhos, articulações metacarpofalangicas (MCF), interfalangicas proximais (IFP) das mãos, e tornozelos. Associadamente, referência a edema, rubor, calor e deformidades osteoarticulares nos dedos das mãos. Apresentava febre diária, vespertina, associada a arrepios de frio e hipersudorese, e exantema eritematoso evanescente nos membros superiores despoletado pela febre. Faziam ainda parte do quadro clínico anorexia, astenia, perda ponderal (14% peso corporal) e odinofagia persistente. Ao exame objetivo apresentava pressão arterial 128/77 mmHg, frequência cardíaca 122 bpm, temperatura auricular 38,4ºC, frequência respiratória 14 cpm, classificando a dor em 8 numa escala de 0 a 10. Salientavam-se mucosas descoradas, múltiplas adenopatias infra e pericentimétricas, não dolorosas, de limites bem definidos, móveis nos planos superficiais e profundos, de consistência duro-elástica, nas cadeias cervicais, occipitais, axilares e inguinais bilateralmente, e orofaringe ruborizada com hipertrofia amigdalina bilateral sem exsudados. Ao exame articular edema, rubor, calor e dor à mobilização ativa e passiva das articulações IFP, MCF e punhos bilateralmente, com interlinha óssea não palpável. (Imagens 1 e 2). Verificava-se edema e rubor dos joelhos, com derrame bilateral e sinal da tecla positivo, e tornozelos bilateralmente.
O estudo analítico revelou anemia, com Hb 7,1 g/dL, VGM 68,5 fL e CHGM 28,6 g/dL; Plaquetas 639000/uL; Leucócitos 18350/uL com 80,8% neutrófilos; ferritina 15275ng/mL; VS 120; PCR 8,39 mg/dL; aspartato aminotransferase 77 U/L; alanina aminotransferase 56 U/L; fosfatase alcalina 107 U/L. Ausentes alterações na radiografia do tórax e eletrocardiograma. A radiografia das mãos revelou achados compatíveis com artrite do tipo inflamatório de localização bilateral e simétrica (Imagem 3). Admitindo a hipótese de DAS, foi necessária a exclusão de outras patologias, nomeadamente infeciosas: resultados negativos para hemoculturas, uroculturas e coproculturas (incluindo micobacteriológico), intradermorreação de Mantoux, IGRA (interferon-gamma release assay) e serologias, à exceção de Parvovírus B19 IgG e IgM positivo; Autoimunes: fator reumatóide (FR), anti-CCP, anticorpos antinucleares (ANA) e anticitoplasma dos neutrófilos negativos; e Neoplásicas, com realização de tomografia computorizada cervicotoracoabdominopélvica que revelou gânglios linfáticos proeminentes, sem características de suspeição, no triângulo posterior do pescoço, região supraclavicular bilateralmente, regiões axilares e inguinais, sem adenopatias mediastínicas ou hilares, e ainda endoscopia digestiva alta, colonoscopia, ecografia mamária e tiroideia sem alterações, e biópsia excisional de gânglio cervical, com estudo anatomopatológico compatível com gânglio reativo, e imunofenotipagem sem alterações relevantes. Atendendo aos critérios de Fautrel para diagnóstico de DAS foi doseada a ferritina glicosilada que era de 5%.
Discussão
A DSA é uma doença inflamatória sistémica de etiologia desconhecida, com incidência de 0,16/100000 pessoas por ano e com distribuição etária bimodal, com picos entre os 15-25 e 36-45 anos 2.
A etiologia permanece incerta, parecendo existir associação com agentes infeciosos (rubéola, parvovírus B19, EBV, CMV, parainfluenza, Coxsackie, VHB e VHC, Mycoplasma, Chlamydia)2.
As principais manifestações incluem a tríade febre, exantema evanescente e artralgias. A febre é elevada, com picos diários ou bidiários, essencialmente vespertinos. O exantema típico consiste numa erupção maculopapular, rosada, despoletada pela febre, localizada ao tronco e região proximal dos membros superiores. As artralgias, presentes em ⅔ dos doentes, atingem preferencialmente os joelhos, pulsos e tornozelos, com possível extensão posterior às pequenas articulações, com padrão simétrico1. Podem ainda fazer parte do quadro clínico faringite não exsudativa, hepatomegalia, linfadenopatias e sintomas constitucionais como astenia, anorexia, mialgias e perda ponderal.
Os achados laboratoriais incluem leucocitose (>15000 leucócitos, com neutrofilia), trombocitose reativa e anemia. Há elevação da PCR, VS e transaminases, e aumento significativo da ferritina. FR e ANA são negativos.
Uma elevação marcada da ferritina parece ser característica, sendo o aumento superior a 5 vezes o normal sugestivo de DSA com sensibilidade de 80% e especificidade de 41%2. Os níveis de ferritina estão relacionados com a atividade da doença, sendo úteis na avaliação da resposta à terapêutica4. A sua fração glicosilada, geralmente de 50-80% em indivíduos saudáveis, tende a estar diminuída em processos inflamatórios, sendo este fenómeno mais relevante na DSA, com uma ferritina glicosilada <20% 5.
A combinação de elevação de ferritina >5 vezes com ferritina glicosilada <20% confere sensibilidade e especificidade para o diagnóstico de DSA de 43% e 93% respetivamente 5.
O diagnóstico é clínico, e na ausência de um marcador definitivo validado, necessita da exclusão exaustiva de outras patologias.
Vários conjuntos de critérios de diagnóstico têm sido propostos, sendo os de Yamagushi mais consensuais, com sensibilidade de 96,2% e especificidade de 92,1% 1. Em 2002 Fautrel propôs um novo conjunto de critérios de diagnóstico, que inclui a ferritina glicosilada, com sensibilidade de 80,6% e especificidade de 98,5%.6 Tabelas 1 e 2
A maioria dos doentes apresenta manifestações leves a moderadas que respondem a antinflamatórios não esteróides (20-25%), mas grande parte irá necessitar de associação de corticóide (resposta terapêutica na ordem dos 95%
7). No caso apresentado, por manutenção das queixas após início de hidroxicloroquina 400mg/dia, naproxeno 500 bid e prednisolona 20mg/dia, houve necessidade de corticoterapia endovenosa (metilprednisolona 1000mg/dia durante 3 dias no internamento), com controlo sintomático, tendo a doente alta clínica sob corticóide oral. Por recorrência dos sintomas, nomeadamente artrite, houve necessidade de introdução de fármacos modificadores da doença (FMD, metotrexato 20mg/semana), e, posteriormente, de agente biológico (infliximab), que ainda mantém, com resolução completa do quadro.
ConclusãoOs autores salientam o desafio do diagnóstico e terapêutica numa entidade pouco frequente, manifestada frequentemente por um quadro de febre de etiologia indeterminada, que requer uma investigação exaustiva para exclusão de outras patologias. O aparecimento de critérios de diagnósticos validados e melhores marcadores serológicos optimizarão o diagnóstico e tratamento.
Figura I

Figura 1 - Ao exame articular edema, rubor, calor e dor à mobilização ativa e passiva das articulações IFP, MCF e punhos bilateralmente, com interlinha óssea não palpável.
Figura II

Figura 2 - Ao exame articular edema, rubor, calor e dor à mobilização ativa e passiva das articulações IFP, MCF e punhos bilateralmente, com interlinha óssea não palpável.
Figura III

Imagem 3 – A radiografia das mãos revelou achados compatíveis com artrite do tipo inflamatório de localização bilateral e simétrica
Figura IV

Tabela 1 – Critérios de Yamagushi (5 ou mais critérios, incluindo 2 critérios major + exclusão de outras patologias)
Figura V

Tabela 2 – Critérios de Fautrel (4 critérios major ou 3 major e 2 minor + exclusão de outras patologias)
BIBLIOGRAFIA
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