INTRODUÇÃO
Os tumores do intestino delgado representam cerca de 5% das neoplasias do trato gastrointestinal.1,2 Dentro destes, o adenocarcinoma assume-se como o subtipo histológico mais comum (representa 40% destes), sendo a idade média de diagnóstico a sexta década de vida.3 O segmento mais frequentemente afetado é o duodeno (55-82%), seguido do jejuno (11-25%).3
Os sintomas são tipicamente tardios e inespecíficos, sendo o mais frequente a dor abdominal (66%)3, no contexto de oclusão (principalmente se a localização do tumor for jejunal ou ileal) ou a hemorragia gastrointestinal. Pelo atraso no diagnóstico, quando este é feito frequentemente já há invasão linfática ou metástases síncronas (90% já estão em fase T3 ou T4).4
O diagnóstico é histológico, e o prognóstico é mau, sendo a sobrevivência aos 5 anos de 14-33%.5 A única terapêutica curativa é a resseção completa, com margens livres de doença.6
No caso clínico seguidamente apresentado, destaca-se a raridade dos sintomas como apresentação de um tumor intestinal e a relativa inocência do exame objetivo, assim como o papel da enteroscopia de duplo balão no diagnóstico desta patologia.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 67 anos, observada no Serviço de Urgência (SU) do Hospital de S.Pedro, em Vila Real, em Abril de 2015, encaminhada pelo Médico de Família, por um quadro arrastado de vómitos alimentares tardios com 4 meses de evolução. Estes não teriam cedido às medidas instituídas pelo Médico Assistente em ambulatório. Negava alterações do trânsito gastrointestinal, nomeadamente diarreia, obstipação ou perdas hemáticas macroscópicas. Negava também febre. Associava perda de peso importante, cerca de 10kg (15% do peso habitual), desde o início do quadro. Já tinha recorrido ao SU do Hospital de Lamego, tendo feito terapêutica sintomática (succinato de oxazepam+dimeticone, lansoprazol e metoclopramida), sem melhoria objetivada. Em relação aos antecedentes pessoais, referia hipertensão arterial com 23 anos de evolução, história de enxaquecas e síndrome vertiginoso com 20 anos de evolução (estando medicada habitualmente com trimetazidina, medicação que abandonara desde o início do quadro); como antecedentes cirúrgicos, tinha colocado prótese do joelho esquerdo 3 anos antes e, nos antecedentes obstétricos, 5 partos eutócicos.
Ao exame objetivo, era de salientar: pele e mucosas descoradas e hidratadas; abdómen mole, depressível e indolor, sem sinais de irritação peritoneal, sem massas ou organomegálias palpáveis, ruídos hidroaéreos presentes e mantidos; apresentava uma cicatriz infraumbilical relativa a cesariana anterior. Analiticamente, apresentava anemia microcítica hipocrómica (Hb 10,31 g/dL; VCM 67 fL; CHCM 20,5 pg), com reservas de ferro significativamente diminuídas (ferritina de 5 ng/ml) e fosfatase alcalina elevada (119U/L). As provas de função hepática eram normais. Já efetuara no ambulatório endoscopia digestiva alta e colonoscopia, que não tinham revelado alterações.
Ainda no Serviço de Urgência foi realizada TC abdominal, que revelou “marcada distensão das ansas de jejuno proximal com espessamento parietal sem evidente causa obstrutiva. Pequena quantidade de liquido na escavação pélvica. Sem gás livre. Vasos mesentéricos permeáveis. O fígado apresenta sinais de infiltração esteatósica difusa. Veia porta permeável. Sem dilatação das vias biliares(...)”
Foi internada, pela persistência dos vómitos que impossibilitava a alimentação oral, e para completar estudo da anemia. Realizou endoscopia digestiva alta (EDA), que revelou “jejuno proximal dilatado com áreas de mucosa despapilada”, mas a biópsia jejunal proximal mostrou apenas inflamação inespecífica. Foi instituída dieta sem lactose, que resultou em melhoria do quadro de vómitos. Efetuou trânsito gastroduodenal, onde não foi possível a progressão completa, devido a obstrução ao nível do jejuno proximal, tendo sido relatada “distensão e espessamento mucoso de ansa jejunal proximal localizando-se no flanco esquerdo”.
Por não estar esclarecida a etiologia das alterações visualizadas na TC abdominal, realizou enteroscopia de duplo balão no Hospital de São João, que veio a identificar “lesão circunferencial, vegetante e estenosante, friável e dura ao toque, não transponível, no jejuno proximal” (Fig. 1). Nos outros segmentos do intestino delgado não apresentava qualquer lesão. O estudo anatomopatológico revelou um adenocarcinoma.
Durante o internamento, fez fluidoterapia e, pela anemia ferropénica, iniciou reposição com ferro intravenoso. Cumpriu também medicação antiemética, inicialmente intravenosa e posteriormente oral, verificando-se tolerância a dieta mole. Teve alta do serviço de Medicina, mantendo medicação antiemética, após observação por Cirurgia que marcou cirurgia prioritária.
A doente recorreu ao Serviço de Urgência, 20 dias depois, por dores abdominais localizadas ao epigastro, e vómitos alimentares. Foi submetida a intervenção cirúrgica com enterectomia segmentar, seguida de anastomose jejuno-jejunal. O estudo da peça operatória revelou um adenocarcinoma moderadamente diferenciado do jejuno, com 2 cm de diametro, e invadindo a subserosa. Não havia invasao vascular linfática ou venosa, nem metástases nos 18 ganglios linfáticos regionais analisados. O tumor foi então estadiado com pT3 G2 N0 Mx.
A doente apresentou boa recuperação no pós-operatório e mantém-se em vigilância em ambulatório, tendo sido decidido em consulta de Grupo Oncológico de Cirugia não realizar terapêutica adjuvante.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
O caso clínico reporta-se a uma doente de 67 anos, com antecedentes de síndrome vertiginoso, e sem antecedentes pessoais de doença inflamatória intestinal, ou história familiar de carcinoma ou polipose colo-retal, intestinal, ou de carcinoma da área ginecológica, que desenvolve um quadro de vómitos e náuseas, e em que é posteriormente detetado um adenocarcinoma do jejuno proximal.
Este é um tumor raro, tendo sido reportada na população francesa feminina uma frequência de 0,1/100000 habitantes.6 Globalmente, na Europa, a incidência é de 3500 novos casos por ano, sendo responsável por 1100 mortes/ano.7 É mais frequente no sexo masculino, e por volta da sexta década de vida.2
Embora inicialmente assintomáticos, com a evolução da doença surgem vários sintomas a nível gastrointestinal. Os sintomas mais frequentes como apresentação desde tumor são a dor abdominal, no contexto de oclusão3, associados a perda de peso. Os vómitos, náuseas e hemorragia gastrointestinal são menos frequentes.
O diagnóstico é muitas vezes tardio (sendo o atraso diagnóstico médio de 8 meses)4, quer devido aos sintomas inespecíficos, quer devido à inacessibilidade do intestino delgado para investigação. É frequente haver anemia de perdas crónicas. A sensibilidade da EDA é baixa - cerca de 31%. A TC abdominal tem uma sensibilidade de 57%, e portanto não deve ser usada isoladamente para diagnóstico desta patologia. O trânsito baritado é o melhor teste para detetar alterações da mucosa endoluminal, embora a sua sensibilidade seja só de 30-50%.3 A cápsula endoscópica é o exame mais sensível para diagnóstico de tumores do intestino delgado, mas está contraindicada se houver suspeição de obstrução, pelo risco de compactação da cápsula. Atualmente, considera-se que a cápsula endoscópica em combinação com técnicas endoscópicas terapêuticas constituem o método ideal para o diagnóstico precoce.8
O prognóstico é mau, com uma sobrevivência média de 19 meses, e uma sobrevivência aos 5 anos inferior a 30%.6 No entanto, após resseção cirúrgica, este número sobe para 40-65%.3
Segundo as guidelines da Thesaurus National de Cancerologie Digestive, o tratamento curativo passa obrigatoriamente pela excisão cirúrgica do tumor, assim como dos ganglios linfáticos e mesentério adjacentes. A resseção curativa destes tumores é possível em 50% dos casos.3 No entanto, como são frequentemente detetados em estadios avançados, a taxa de recorrência é alta (cerca de 50%), com metástases linfáticas, hepáticas ou pulmonares.
O caso é relevante pela raridade dos sintomas descritos como apresentação de um tumor intestinal, e pela ausência quer de dor abominal ou outros sinais de irritação peritoneal, quer de oclusão. Também a localização deste tumor é rara, uma vez que os adenocarcinomas afetam mais frequentemente o duodeno. De realçar, também, o papel da enteroscopia de duplo balão no diagnóstico das neoplasias do intestino delgado.
Agradecimentos
Os autores gostariam de agradecer ao Serviço de Cirurgia e de Gastroenterologia do Hospital de Vila Real, pela sua colaboração na elaboração deste manuscrito.
Figura I

adenocarcinoma do jejuno proximal
BIBLIOGRAFIA
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