Introdução:
A Doença de Still do Adulto (DSA) é uma doença rara, multissistémica, auto-inflamatória e de etiologia ainda não esclarecida. Estão envolvidas na fisiopatologia, numerosos intervenientes como ativação do sistema imune inato, células Natural Killer e citoquinas inflamatórias, mas não se identificaram anticorpos específicos da doença. Vários estudos [1,2] reconheceram fatores genéticos (antigénio HLA) como predisponentes e agentes infeciosos como possíveis desencadeantes dos quais destacam-se vírus (Parvovirus B19, Influenza, Virus da Hepatite B e C) e bactérias intracelulares (Chlamydia Pneumoniae, Mycoplasma Pneumoniae, Yersinia). Acrescentendo à dificuldade diagnóstica, podem estar associadas diversas patologias ao DSA como tumores sólidos (mama e pulmão) e linfomas. A complicação mais grave é relativa as manifestações da síndrome de ativação macrofágica. O prognóstico costuma ser favorável. Diferenciam-se 3 fenótipos: uma forma monocíclica com um episodio sistémico isolado, uma policíclica com recorrência dos episódios sistémicos com período de semanas ou meses de remissão e uma forma articular crónica mais frequentes nas mulheres.
Sendo as principais manifestações pouco específicas (febre, artralgias, odinofagia, eritema cutâneo e síndrome constitucional) e partilhadas por numerosas patologias, coloca-se o diagnóstico de DSA após exclusão de causas infeciosas, autoimunes e neoplásicas, tornando o seu reconhecimento difícil. Existem 2 classificações de critérios diagnósticos: classificação de Yamaguchi (tabela 1) e de Fautrel (tabela 2)
Associa-se à DAS, a tríade de sintomas seguinte: febre > 39ºC, exantema de cor salmão evanescente após a febre e artralgias inflamatórias.
Relatam-se 2 casos de DAS, optando por compará-los head to head, nos diversos aspetos.
1) Avaliação clínica
Caso 1
Doente masculino, caucasiano, internado em 2009, com 24 anos, por quadro de edemas dos membros inferiores, eritema maculopapular fixo pruriginoso das pernas, astenia, anorexia e artralgias bilaterais e simétricas não migratórias sem sinais de sinovite, interessando as articulações metacarpofalângicas, interfalângicas proximais, dos punhos, metatarsofalângicas e dos tornozelos, de padrão inflamatório, com 15 dias de evolução.
Referia, como antecedentes, vários episódios de síndrome febril, com necessidade de internamento:
- Em fevereiro de 2002, iniciou febre e foi medicado com nitrofurantoina por suspeita de infeção urinária. Desenvolveu uma pneumonia eosinofílica secundária ao antibiótico, necessitando da transferência para unidade de cuidados intensivos e ventilação mecânica.
- Em março de 2003, foi internado por febre alta (39.6ºC) e edemas dos membros inferiores, tendo sido detetados hepatoesplenomegalia e derrame pericárdico. Fez anti-inflamatórios não esteróides e antibióticos, com resolução do quadro, sem obter um diagnóstico certo. Durante este episódio, realizou uma biopsia óssea, que não revelou alterações significativas.
- Em abril de 2003, apresentou recidiva da febre, mantendo derrame pericárdico. Fez prova terapêutica com tuberculostáticos tendo alta com o diagnóstico de pericardite tuberculosa.
- Em janeiro de 2008, apresentou novamente febre, acompanhada de vómitos e ficou sob antibióticos por pneumonia.
- Em março de 2008 voltou a ter febre, com odinofagia e vómitos, tendo sido medicado com naproxeno, sem melhoria clínica.
No internamento de 2009, apresentava sinais vitais normais, sem alterações da auscultação cardíaca ou pulmonar, um abdómen sem massas ou organomegalias, sem adenopatias periféricas, sem sinais meníngeos e um exame ORL sem alterações. Apresentava edema duro das pernas até aos joelhos, com eritema maculopapular.
Ao 6º dia de internamento, surgiu febre alta >39ºC de predomínio verpertino, odinofagia e eritema cor salmão, que aparecia apenas durante os picos febris.
Caso 2
O 2º doente era também masculino de raça caucasiana, com 47 anos de idade, quando foi internado, em 2011, para estudo de um quadro de febre (38ºC com alguns picos >39ºC), sem padrão especifico, suores, astenia, anorexia, emagrecimento e mialgias, com 15 dias de evolução.
Antes do internamento, fora medicado com antibióticos, por suspeita de uma pneumonia atípica, sem melhoria clínica.
Nos antecedentes pessoais destacava-se um internamento, 15 anos antes, por febre de causa não esclarecida.
Objetivamente, não apresentava alterações da auscultação cardiopulmonar, palpação abdominal e avaliação ORL. Não tinha sinais meníngeos, adenopatias periféricas palpáveis, sinovite ou lesões cutâneas.
2) Avaliação analítica (tabelas 3 e 4)
Nos 2 doentes verificou-se um quadro biológico inflamatório, com leucocitose, neutrofilia e aumento da Velocidade de Sedimentação (VS) e da Proteína C Reativa (PCR).
Não se observaram alterações da função renal, do sedimento urinário, do ionograma sérico, da função tiroideia, da eletroforese das proteínas séricas, da ficha lipídica e das enzimas musculares ou da lactato desidrogenase (LDH).
A ferritina estava normal no 1º doente e elevada no 2º (570 ng/mL).
No 2º doente, houve elevação das transaminases para valores superiores a 6 vezes o normal.
Nos 2 doentes foram realizados, de forma exaustiva, exames para despiste de causa infeciosa, com hemoculturas repetidas, urocultura, cultura do líquido cefalorraquidiano, serologias víricas (VIH, Hepatite A, B, C, CMV, EBV) e bacterianas (Rickettsia, Leptospira, Brucella, Treponema).
A prova da tuberculina foi negativa nos 2 doentes.
O resultado dos ANAs, ANCAs e Fator Reumatoide também se revelou negativo em ambos.
O nível sérico de enzima de conversão da angiotensina (SACE) foi normal nos 2.
3) Avaliação imagiológica (fig. 1 e 2)
O 1º doente realizou tomografia axial computorizada (TAC) toraco-abdominopélvica que revelou fibrose pulmonar sequelar, hepatoesplenomegalia discreta e adenopatias infracentimétricas a nível axilar, submandibular e retro-crural.
O 2º doente apresentou, na TAC, adenopatias hilares bilaterais, áreas de fibrose no lobo médio, nos segmentos basais do lobo inferior direito e esquerdo e esplenomegalia discreta.
4) Avaliação histológica
No 1º doente efetuou-se uma biópsia cutânea, que revelou infiltrado pericapilar, na derme alta, de células linfocitárias, sem imagens de vasculopatia ou leucocitoclasia.
No 2º doente, a biópsia hepática mostrou infiltrado linfocitário ligeiro e atividade inflamatória. O medulograma revelou aspetos compatíveis com medula reativa com aumento dos neutrófilos.
5) Abordagem diagnóstica e terapêutica no internamento
O 1º doente foi medicado empiricamente ao 6º dia com piperacilina/tazobactam, por suspeita de infeção nosocomial, suspensa, após 5 dias de tratamento, por manter febre. Fez, seguidamente, prova terapêutica com naproxeno sem obtenção de apirexia. No 10º dia, iniciou corticosteroides, ficando apirético no final desse dia, com melhoria da sintomatologia.
Do ponto de vista analítico, observou-se redução e posterior normalização da VS e da PCR.
Neste doente, foi excluído a priori etiologia infeciosa pela não resposta aos antibióticos, negatividade dos exames microbiológicos e melhoria com corticoterapia. A patologia linfomatosa nesse internamento não foi excluída com medulograma (já tinha realizado este estudo previamente).
Não cumpria critérios diagnósticos de lúpus. Apresentava 6 critérios da classificação da artrite reumatoide ACR-EULAR 2010, fazendo passá-lo num subtipo AR da DSA descrito na literatura [3]. Neste subgrupo, a tendência é apresentar ferritina normal e não aumentada como é expectável na DSA, o que pode explicar a ferritina normal deste doente.
Identificou-se recentemente [4], várias apresentações cutâneas atípicas (angioedema, urticaria, eritema generalizado persistente, etc..). O edema e eritema dos membros inferiores neste caso foi interpretado como sendo uma dessas manifestações atípicas descritas. Na bibliografia [5], foi identificado um caso com manifestação cutânea na forma de placas e pápulas persistentes, eritema linear associado a edema palpebral e infiltrado linfocítico na biopsia cutânea semelhante ao resultado do doente.
O doente cumpria 8 critérios diagnósticos (4 major) de Yamaguchi e 7 critérios (5 major) diagnósticos de Fautrel.
O 2º doente iniciou doxiciclina por suspeita de Leptospirose, que foi suspensa por manter febre e restante sintomatologia. Iniciou corticosteroides, com obtenção de apirexia no dia seguinte e melhoria rápida dos sintomas constitucionais e das mialgias.
Observou-se normalização da VS, da PCR e das transaminases.
Por apresentar diabetes mellituscortico-induzida e miopatia aos corticoides, foi reduzida a dose, associando metotrexato na dose de 15mg/semana.
Subsistiu neste doente a hipótese diagnostica de sarcoidose que também poderia explicar os sintomas exceto as mialgias. Contrariando esse diagnóstico, não se identificou aumento da SACE, do cálcio sérico ou urinário, diminuição da DLCO, alterações da broncofibroscopia e de lavado bronco-alveolar.
O doente cumpria 6 critérios diagnósticos de Yamaguchi com 2 major e 3 critérios de Fautrel com 2 major.
6) Evolução após a alta
O 1º doente cumpriu 1 ano de corticoterapia. Houve recidiva da febre, com a redução da dose, tendo sido necessário voltar ao patamar anterior. Após desmame lento, mantém-se sem tratamento. Até à data não apresentou mais sintomas, mantendo seguimento em Consulta Externa de Medicina Interna.
O 2º doente esteve medicado com metotrexato durante 1 ano, que descontinuou sem necessidade de retoma. Realizou TAC toraco-abdominal que revelou ausência de adenopatias e hepatoesplenomegalia e presença de pequenas áreas de fibrose residual. Embora a patologia intersticial pulmonar não é a manifestação mais frequente da DSA, já forma identificados casos semelhantes [6] com evolução para fibrose pulmonar. Mantém-se assintomático até à data, mantendo seguimento na Consulta Externa de Doenças Autoimunes.
Discussão:
A bibliografia [1,2] mais recente sobre DSA destaca não haver predomínio do sexo feminino como se pensava, facto que se verifica aqui. São ambos homens, o que não tem significado estatístico dado serem apenas 2 casos.
Descreve-se também uma distribuição bimodal, com um pico entre 15-25 anos, no qual se encaixaria o 1º doente, e outro entre os 36-46, onde entraria o 2º.
O nosso 1º caso enquadra-se claramente no fenótipo policíclico da doença. O 2º será provavelmente um caso de padrão monocíclico, sendo que os episódios se distanciam por mais de dois anos.
O tempo entre diagnóstico dos doentes e redação deste artigo (4 e 6 anos respetivamente) permite, com alguma segurança, eliminar outras hipóteses diagnósticas uma vez que os doentes permanecem assintomáticos.
Estes casos permitiram-nos refletir sobre diagnóstico diferencial da síndrome febril de causa indeterminada.
Chamamos a atenção para a necessidade da hipótese de DSA ser equacionada no adulto jovem, podendo esta ser uma doença não tão rara como descrito, se a sua possibilidade for considerada.Quadro I
CLASSIFICAÇÃO DOS CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS DE YAMAGUCHI
Critérios major | - Febre ≥ 39ºC pelo menos durante 1 semana -Artralgias ou artrite com mais de 2 semanas de evolução - Erupção cutânea típica - Leucocitose ≥10 000 com ≥80% de neutrófilos |
Critérios minor | - Odinofagia - Adenopatias significativas recentes - Hepato ou esplenomegalia - Citolise ou colestase hepáticas - ANA e FR negativos |
Exclusão de doenças infeciosas, malignas ou autoimunes | |
Diagnóstico se ≥ 5 critérios com 2 critérios major |
Quadro II
CLASSIFICAÇÃO DOS CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS DE FAUTREL
Critérios Major | - Picos febris ≥39ºC - Artralgias - Eritema evanescente - Faringite - Neutrófilos ≥80% - Ferritina glicosilada ≤ 20% |
Critérios Minor | - Eritema maculopapular - Leucocitose ≥ 10000 |
Diagnótico se ≥ 4 critérios ou 3 critérios major + 2 minor |
Quadro III
VALORES ANALITICOS DO DOENTE Nº1
D1 | D6 | D12 | 2010 | 2011 | 2012 | |
Leucócitos (x10^3) | 8.9 | 10.4 | 15.9 | 9.0 | 8.8 | 7.7 |
Neutrófilos (x10^3) | 5.8 | 8.8 | 10.8 | 5.4 | 5.2 | 4.2 |
Linfócitos (x10^3) | 1.8 | 0.7 | 3.9 | 2.2 | 2.4 | 2.4 |
Hb (g/dL) | 14.1 | 12.9 | 13.4 | 17.7 | 16.7 | 16.4 |
Plaquetas (x10^3) | 241 | 211 | 422 | 229 | 223 | 234 |
Bilirrubina( mg/dL) | 1.31 | 0.82 | 0.8 | 1.84 | 2.36 | 2 1.23 |
VS(mm/H) | 22 | 71 | 18 | 1 | 1 | 2 |
PCR (mg/dL) | 4 | 18 | 1.5 | 0.17 | 1.1 | |
Procalcitonina(ng/mL) | 0.11 | 0.2 | ||||
CK (UI/L) | 27 | 7 | 115 | 111 |
Quadro IV
VALORES ANALITICOS DO DOENTE Nº2
D2 | D15 | D30 | 03/01/2012 | |
Leucócitos (x10^3) | 11,24 | 12.34 | 11.56 | 6.66 |
Neutrófilos (x10^3) % | 10,12 90% | 10.5 | 9.8 | 4.51 |
Linfócitos (x10^3) | 0,67 | 1.07 | 1.29 | 1.71 |
Hb / Volume corpuscular médio g/dL/fl | 12,9/86,4 | 11.4/86.2 | 12.8/87.4 | 15.3/89.7 |
Plaquetas (x10^3) | 233 | 367 | 216 | 323 |
VS (mm/H) | >140 | 134 | 60 | 36 |
PCR (mg/dL) | 20,5 | 7,1 | 0,7 | 0,2 |
GOT/GPT (UI/L) | 76/93 | 79/379 | 17/71 | 23/29 |
FA/GGT (UI/L) | 79/126 | 168/176 | 74/59 | 73/13 |
LDH (UI/L) | 630 | 239 | 225 | |
Bilirrubina (mg/dL) | 0.65 | 0.33 | 0.49 |
Figura I

IMAGEM EM PLANO TRANSVERSAL DE TAC TORÁCICA DE DOENTE Nº1
Figura II

IMAGEM EM PLANO CORONAL DE TAC TORÁCICA DE DOENTE Nº2
Figura III

IMAGEM EM PLANO TRANSVERSAL DE TAC TORÁCICA DE DOENTE º2
BIBLIOGRAFIA
Bibliografia:
[1] Gerfaud-Valentin M, Jamilloux Y, Iwaz J, Sève P. Adult-onset Still´s disease. Autoimmunity Reviews 2014; 13: 708–722.
[2] Gerfaud-Valentina M, ,Sève P, Hot A, Broussolle C, Jamilloux Y. Pathophysiology, subtypes, and treatments of adult-onset Still’s disease: An update. La Revue de Médecine Interne 2015; 36:319–327.
[3] Ichida H, Kawaguchi Y, Sugiura T, Takagi K, Yasuhiro K, Gono T, et al. Disease Presenting With Erosive Arthritis: Association With Low Levels of Ferritin and Interleukin-18. Arthritis Care & Research Vol 2014; 66, 642–646.
[4] Michailidou D, Shin J, Forde I, Gopalratnam K, Cohen P, DeGirolamo A. Typical evanescent and atypical persistent polymorphic cutaneous rash in an adult Brazilian with Still’s disease: a case report and review of the literature. Autoimmun Highlights 2015; 6:39–46.
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[7] Cagatay Y, Gul A, Cagatay A, Kamali S, Karadeniz A, InancM, et al. Adult-onset Still´s disease. Int J Clin Pract 2009; 63:1050–1055.[8] Pouchot J, Sampalis JS, Beaudet F, Carette S, Décary F, Salusinsky-SternbachM, et al. Adult Still´s disease: manifestations, disease course, and outcome in 62 patients. Medicine (Baltimore) 1991; 70:118–136.
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[11] Efthimiou P,Paik P K, Bielory L. Diagnosis and management of adult onset Still’s disease. Ann Rheum Dis 2006; 65:564–572.