CASO CLINICO
Doente do sexo feminino, 38 anos, raça negra, internada para esclarecimento etiológico de derrame pleural a direita. Tratava-se de uma doente com antecedentes pessoais de traco drepanocitico, sem outros antecedentes medico-cirurgicos conhecidos. Fumadora (carga tabagica estimada em 10 UMA); G3 P2 (interrupção de gravidez por diagnostico intrauterino de drepanocitose); restantes gravidezes e partos sem complicações. Não fazia qualquer medicação em ambulatório; sem alergias conhecidas.
A 28/8/2013 recorreu ao Servico de Urgencia por queixas persistentes, com 2 meses de evolução, de astenia e cansaço. Referia também tosse com expectoração escassa e perda ponderal nos ultimos 2 meses, nao quantificada, que associou a periodo de maior ansiedade. Sem outras queixas constitucionais. Salientava-se ainda uma vinda ao Serviço de Urgencia cerca de um mês antes por queixas compativeis com gastroenterite aguda (GEA); na altura realizou teleradiografia do abdómen com evidência de nível hidroaéreo ao nivel das ansas intestinais, que se interpretou no contexto de GEA, sem derrame pleural aparente (Fig.1).
Também sem precisar o momento exacto, referia poucas semanas antes da vinda a urgencia, queda da própria altura, com traumatismo toracico, para o qual não procurou assistência médica. Da restante avaliação de órgãos e sistemas, destacavam-se também queixas de dismenorreia intensa, motivo pelo qual já tinha realizado em regime de ambulatorio, ecografia pélvica suprapubica e endovaginal que não teriam alterações significativas.
No Serviço de Urgência, apresentava-se vígil, eupneica, hemodinamicamente estável, apirética, com diminuição do murmúrio vesicular no hemotórax direito. Realizou teleradiografia do tórax que demonstrou volumoso derrame pleural a direita, com desvio mediastínico (Fig.2); sem alterações significativas do ponto de vista laboratorial. A doente foi entao internada no Servico de Medicina Interna com o diagnóstico já citado.
Neste serviço, foi submetida a tomografia axial computorizada que confirmou derrame pleural volumoso, tendo-se procedido a drenagem torácica com apoio da cirurgia, com saida de líquido pleural sero-hemático. Como complicações desta intervenção, destacamos pneumotórax e contusão pulmonar homolateral, sem repercussao clinica (Fig.3). Verificou-se resolução do derrame e do pneumotorax, sendo removida drenagem ao 5º dia. Da avaliação complementar realizada para esclarecimento etiológico destacam-se os resultados dos seguintes exames:
- hemograma sem alterações (hemoglobina estável entre 11.5-12.5; plaquetas dentro da normalidade);
- coagulação normal;
- velocidade de sedimentacao 22 mm/h;
- hormona estimuladora da tiroide dentro do valor de referencia;
- factor reumatoide e anticorpo antinuclear negativos;
- serologias virais negativas;
- hemoculturas e exame cultural do liquido pleural em aerobiose estéreis;
- exame directo micobacteriologico do suco gástrico e liquido pleural negativos; teste de amplificacao dos acidos nucleicos no suco gástrico e líquido pleural tambem negativos;
- exame citoquimico de liquido pleural compativel com exsudado; exame anatomo-patologico negativo para celulas neoplásicas, salientando-se células mesoteliais reactivas e alguns linfocitos polimorfonucleares;
- exame micobacteriologico de sangue periferico e liquido pleural revelou-se posteriormente negativo tambem;
- tomografia computarizada abdomino-pélvica (Fig.4) com sinais de ascite; lesões focais infiltrativas sugestivas de carcinomatose peritoneal e com infiltração de ansas jejunais; lesão infiltrativa da parede abdominal na regiao inguinal direita.
- endoscopia digestiva alta com erosões do antro gástrico e exame anatomo-patologico compatível com infecção por Helicobacter pylori;
- colonoscopia sem alterações;
- ecografia pelvica endovaginal e suprapubica com quistos ovaricos de conteudo puro; liquido ascítico não puro.
No seguimento do resultado da tomografia computorizada abdomino-pélvica, procedeu-se a punção aspirativa e biopsia da lesão infiltrativa da parede abdominal; o resultado anatomo-patologico foi compativel com endometriose. A 10/9 a doente foi submetida a laparoscopia diagnóstica: intra-operatoriamente, as alterações objectivadas eram sugestivas de implantes de endometriose que se excisaram e foram enviados para exame anatomo-patologico – mais uma vez o resultado foi compativel com endometriose.
Perante este diagnóstico e reaparecimento do derrame com as mesmas características na altura de novo ciclo menstrual admitimos, como etiologia mais provável, endometriose torácica. A doente foi então avaliada pela Cirurgia Cardiotorácica e pela Ginecologia, tendo iniciado com sucesso terapeutica supressora hormonal. De momento encontra-se em menopausa precoce quimica, sem nova recidiva de derrame, mantendo-se em aberto a hipotese de uma intervencao cirurgica com intuito curativo.
DISCUSSAO
Os autores apresentam este caso clínico não só pela raridade desta entidade nosológica mas em particular pelo desafio diagnóstico que representa. A endometriose define-se como a presença de tecido endometrial fora da cavidade uterina. O crescimento e manutenção dos implantes de endométrio é estrogénio-dependente pelo que atinge apenas mulheres em idade reprodutiva ou sob terapêutica hormonal de substituição. Normalmente envolve estruturas da cavidade pélvica - ovários, fundo de saco de Douglas, ligamentos largos, ligamentos utero–sagrados, mas, de forma mais rara, pode atingir restante abdómen, pele, cérebro ou torax1. A forma pélvica desta entidade afecta cerca de 10-15% das mulheres em idade fértil, sendo a forma torácica muito mais rara, com uma idade média de apresentação 35anos, mas podendo ocorrer dos 15 aos 54 anos, normalmente cerca de 5 anos após as primeiras manifestações de endometriose pélvica2.
A explicação mais plausível para a patogénese desta entidade envolve a passagem de tecido endometrial da cavidade abdominal para o tórax através de soluções de continuidade ao nível do diafragma (mais frequentes ao nível da hemicupula direita, sendo as manifestações torácicas mais comuns à direita também) para além da possibilidade de existir microembolização através das veias pélvicas3,4.
O pneumotórax catamenial é a forma de apresentação mais comum ocorrendo em cerca de 73% das doentes (responsável por até 5% dos casos de pneumotorax espontâneo), seguido do hemotórax em 14%, hemoptises 7% e nódulos pulmonares 6%1. Estas manifestações surgem cerca de 24-48h após o início da menstruação. Grande maioria das doentes apresenta dor torácica, com cerca de um terço a revelar também algum cansaço fácil e dispneia.
Os exames complementares de diagnóstico são geralmente inespecíficos pelo que o diagnóstico deve ser de exclusão, tendo em conta a história clínica e a natureza catamenial dos sintomas4-5. Deve ser feito diagnóstico diferencial com outras causas de pneumotórax, hemotórax ou hemoptises como por exemplo a tuberculose, neoplasia, tromboembolismo pulmonar, doenças auto-imunes ou traumatismo. O doseamento de CA-125 pode estar elevado, sem que esse aumento seja especifico, a telerradiografia de torax é na grande maioria dos casos normal, podendo a tomografia computorizada (TC) revelar implantes de endometriose ao nível da pleura e parênquima pulmonar. A ressonância magnética é o exame de eleição para demonstração dos focos de endometriose caracterizando-se pela presença de lesões hiperdensas em T2 que aumentam de tamanho e de captação de contraste durante o período menstrual. Por fim, o diagnóstico histológico poderá ser realizado através de broncofibroscopia ou biópsia guiada por TC5.
O tratamento consiste, numa primeira fase, na resolução das manifestações clinicas (pneumotórax, hemotórax e hemoptises) seguida da supressão hormonal dos focos de endometriose, através de contraceptivos orais, progesterona, danazol ou agonistas da hormona libertadora da gonadotropina, estes últimos com menores efeitos adversos. Dependendo da idade da doente, do seu desejo ou não de engravidar, bem como dos efeitos adversos da medicação e recorrência da sintomatologia, poderão ser tentadas abordagens cirúrgicas que passam pela excisão dos implantes de endometriose, pleurodese química, reparação das fenestrações diafragmáticas ou ainda histerectomia com anexectomia bilateral6-7.
Concluindo, trata-se de uma patologia rara com um diagnóstico difícil, devendo ser considerada perante doentes do sexo feminino, em idade fértil, com hemoptises cíclicas, hemotórax recidivante ou pneumotórax espontâneo a direita. O diagnóstico é essencialmente presuntivo e o tratamento, embora inicialmente médico, poderá passar por intervenções cirúrgicas.
Figura I

Teleradiografia do abdómen revelando niveis hidroaéreos ao nível das ansas intestinais.
Figura II

Teleradiografia do torax revelando volumoso derrame pleural direito.
Figura III

Tomografia computorizada do torax: antes e depois da drenagem do derrame.
Figura IV

Tomografia axial computorizada abdomino-pélvica (a seta indica a lesão infiltrativa da regiao inguinal direita)
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