Introdução:A Arterite de Takayasu (AT) é uma doença inflamatória crónica dos grandes vasos, envolvendo a artéria aorta e os seus ramos principais, que provoca estenose, oclusão ou formação de aneurismas da parede arterial.1,2Apesar de atingir indivíduos de todas as raças e áreas geográficas, a sua incidência é maior nos países do leste asiático3,4, afetando predominantemente mulheres com idade inferior a 40 anos. A clínica é inespecífica e varia com o local anatómico envolvido, podendo incluir sintomas sistémicos, dor ou claudicação dos membros, sintomas gastrointestinais ou neurológicos.1,2,5 Sendo assim, é necessário um elevado índice de suspeição clínica para que seja estabelecido o seu diagnóstico. Os eventos cerebrovasculares são uma complicação grave e influenciam de forma negativa a evolução da doença.6As manifestações neurológicas surgem em cerca de 50% dos doentes e o acidente vascular cerebral (AVC), apesar de ser uma manifestação inicial pouco frequente, tem uma prevalência de cerca de 10 a 20% no decurso da doença7,8, associando-se a elevada mortalidade e morbilidade. O AVC hemorrágico como manifestação da AT é raro. Os autores descrevem o caso de uma doente jovem que se apresenta com uma hemorragia cerebral, como manifestação inicial de uma AT. Salienta-se a importância desde caso pela sua raridade e pela escassez de casos publicados na literatura.
Caso clínico:Os autores apresentam o caso de uma doente do sexo feminino, de 27 anos, natural e residente na ilha das Flores, sem antecedentes pessoais ou familiares relevantes. Recorreu ao Serviço de Urgência por cefaleia holocraneana, com 5 dias de evolução, associada a vómitos. Cerca de 3 meses antes, havia iniciado um quadro de astenia, perda ponderal não quantificada e claudicação dos membros. Durante este mesmo período apresentou episódios recorrentes de dor abdominal difusa e de enfartamento pós-prandial. De referir episódio autolimitado de parésia do membro superior esquerdo, cerca de um mês antes. Ao exame objetivo, apresentava-se com febre, hipertensa e com desorientação temporo-espacial. A auscultação cardíaca era rítmica e apresentava um sopro sistólico grau III/VI audível no bordo esquerdo do esterno e com irradiação à carótida esquerda. Não apresentava outras alterações de relevo à observação. Por quadro de agitação psicomotora foi sedada e ventilada mecanicamente, e admitida na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI). Do estudo analítico realizado (Tabela 1) salienta-se anemia normocítica normocrómica ligeira, discreta elevação da Velocidade de sedimentação (VS) e da Proteína C reactiva (PCR) e ANCA-MPO e ANA`s por imunofluorescência positivos. A Tomografia computorizada (TC) de crânio (Fig. 1) mostrou múltiplas hemorragias intra-parenquimatosas e hemorragia subaracnoideia (HSA). O Ecocardiograma transesofágico documentou Insuficiência aórtica ligeira e o Eco-Doppler carotídeo excluiu lesões hemodinamicamente significativas. A Fundoscopia foi normal. A doente realizou angio-TC cerebral que mostrou vasculite generalizada com nodularidade das artérias intracranianas, mais evidente ao nível das artérias vertebrais, tronco basilar e ramo das artérias carótidas. A angio-TC tóraco-abdómino-pélvica identificou múltiplos espessamentos parietais arteriais concêntricos, com redução do lúmen da aorta de forma descontínua, e com envolvimento de alguns dos seus ramos principais - tronco celíaco, artéria mesentérica superior e artérias renais (Fig. 2) - e das artérias pulmonares (Fig. 3). Foi ainda documentada circulação colateral (Fig. 4). Foi estabelecido o diagnóstico de AT com base nos critérios do American College of Reumatology (ACR) e com base nos critérios publicados por Sharma et al.2Iniciou metilprednisolona 1 mg/kg/dia e apresentou evolução clínica favorável, tendo tido alta da UCI ao 29º dia de internamento.
Discussão:Os sintomas neurológicos associados à AT são descritos num reduzido número de doentes.8Apesar da hemorragia parenquimatosa e da rotura de aneurisma serem as principais causas de morte nos doentes com AT, o AVC hemorrágico é raro quando comparado com o AVC isquémico.9A relação entre a formação de aneurismas cerebrais e a AT não está bem definida, mas existem fatores que parecem estar na origem da sua formação, tais como a instabilidade hemodinâmica, a destruição imune e a necrose da lâmina elástica e a hipertensão arterial (HTA). Apesar disso, a incidência de aneurismas não parece ser maior nos doentes com esta patologia.6,10 Os eventos cerebrovasculares são geralmente precedidos de sintomas constitucionais, tal como descrito neste caso, e a PCR e a VS estão elevadas em cerca de dois terços dos doentes, na fase aguda. A HTA, a anemia e a insuficiência renal são complicações frequentes da AT que surgem nos estadios mais avançados da doença.9 A HTA é explicada pela estenose marcada de ambas as artérias renais e pela instabilidade hemodinâmica inerente ao processo de vasculite inflamatória, e o angor intestinal está associado à estenose da artéria mesentérica superior. A circulação colateral documentada traduz a fase crónica da doença.A positividade do ANCA-MPO coloca como diagnóstico diferencial a vasculite associada ao ANCA, e neste caso, com envolvimentos dos grandes vasos, o que surge mais frequentemente em doentes com Granulomatose com poliangite ou Poliangite microscópica.11 No caso apresentado, e apesar de não ter sido efetuada biópsia dirigida para avaliação dos pequenos vasos, a doente não cumpre critérios clínicos de diagnóstico de vasculite de pequenos vasos12, e tem envolvimento da artéria pulmonar, achado que não foi documentado em doentes com vasculite associada a ANCA com envolvimento dos grandes vasos. Por outro lado, está descrito que a vasculite de grandes vasos pode preceder a vasculite de pequenos vasos ou ocorrer na sua ausência.11 Nestas circunstâncias, e apesar da positividade do ANCA não ser uma característica das vasculites de grandes vasos, a doente cumpre critérios de diagnóstico para Arterite de Takayasu. A existência de uma Vasculite associada a ANCA com envolvimento dos grandes vasos há que ter em consideração ao longo da evolução da doença.Os autores concluíram trata-se de uma AT estadio V (P+), desconhecendo-se o envolvimento das artérias coronárias (C+). A pertinência deste caso prende-se com a sua raridade e apresentação inicial invulgar. A colocação desta hipótese de diagnóstico, como causa da hemorragia cerebral, permitiu um diagnóstico breve e um início precoce da corticoterapia, o que poderá ter influenciado a boa evolução clínica inicial objetivada.
Quadro I
Estudo analítico realizado
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Parâmetro analítico | Valor | Valor de Referência | Parâmetro analítico | Valor | Valor de Referência |
Hemoglobina (g/dL) | 11,0 | 12,0-15,5 | Microalbuminúria (mg/L) | 0,1 | 1,5-20 |
Plaquetas (/uL) | 409000 | 150000-430000 | ANCA-MPO (IU/mL) | 12,0 | <2,0 |
Leucócitos (/uL) | 15180 | 7200-1100 | ANCA-PR3 | negativo | - |
Eosinófilos (/uL) | 70 | 40-600 | ANA´s por imunofluorescência | 1/320 | <1/160 |
Ureia (mg/dL) | 27 | 0-50 | Ac anti-cardiolipina IgM/IgG | negativo | - |
Creatinina (mg/dL) | 0,63 | 0,6-1,0 | Ac anti-beta2 glicoproteína IgM/IgG | negativo | - |
Proteína C reactiva (mg/dL) | 8,3 | 0-0,3 | Anticorpo anti-dsDNA | negativo | - |
Velocidade de sedimentação (mm) | 39 | 0-20 | Anticoagulante lúpico | negativo | - |
Tempos de coagulação – aPTT e TP | normais | - | Anticorpo anti-SM | negativo | - |
Albumina (g/dL) | 2,5 | 3,4-5,0 | Complemento C3 (mg/dL) | 123 | 90-180 |
Electroforese das proteínas | normal | - | Complemento C4 (mg/dL) | 22 | 10-40 |
TSH (uIU/mL) | 0,14 | 0,35-4,94 | Serologias VIH/VHA/VHB/VHC | negativas | - |
T4 livre (ng/dL) | 1,03 | 0,7-1,48 | RPR | negativo | - |
aPTT – tempo de tromboplastina parcial activada; TP – tempo de protrombina; RPR - Rapid plasma reagin; TSH – hormona estimulante da tiroide; T4 – tiroxina; VIH – vírus da imunodeficiência humana; VHA – vírus da hepatite A; VHB – vírus da hepatite B; VHC: vírus da hepatite C; ANCA – anticorpo anti-citoplasma de neutrófilo; MPO – mieloperoxidade; PR3 – proteinase; ANA - anticorpos anti-nucleares; Ac – anticorpos; Ig – imunoglobulina; dsDNA – DNA de pula hélice; SM – Smith.
Figura I

Cortes axiais de Tomografia computorizada craneo-encefálica mostrando hemorragia intra-parenquimatosa (a) e subaracnoideia (b).
Figura II

Reformatações sagitais (a,b,c) e MIP (Maximum Intensity Projection) coronal (d) de angio-TC mostrando (a) redução do calibre ao longo de toda a extensão da aorta de forma descontínua, (b) estenose do segmento proximal da artéria mesentérica superior, (c) estenose na origem do tronco celíaco e (d) presença de duas artérias renais esquerdas e três artérias renais direitas, com estenose proximal.
Figura III

Reformatação transversal de angio-TC mostrando estenose das artérias pulmonares.
Figura IV

Reformatação VR (Volume rendering) de angio-TC mostrando repermeabilização da artéria mesentérica superior (AMS) com colateralização (setas rectas) proveniente da artéria mesentérica inferior (AMI). É possível evidenciar ainda estenose proximal das artérias renais esquerdas e direitas (setas curvas).
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