INTRODUÇÃO
A cocaína é um alcalóide extraído da planta Erythroxylum coca. É uma droga de uso generalizado e o mais potente estimulante de origem natural, com efeito estimulante do sistema nervoso central e anestésico.2 É bem absorvida pelo contacto com as mucosas e as suas propriedades vasoconstritoras aumentam a absorção e retardam o seu pico de efeito.3 A lesão renal secundária à rabdomiólise, assim como a sua acção cardiotóxica, constituem os efeitos adversos mais frequentes, que podem ser fatais.
Apresentamos o caso de um doente com vários dos efeitos nocivos decorrentes de overdose de cocaína.
CASO CLÍNICO
Homem de 29 anos, com lesão renal aguda, acidose metabólica, rabdomiólise grave e hepatite aguda, após o consumo de bebidas alcoólicas, cocaína e heroína injectáveis. Apresentava-se agitado, sudorético, com pupilas mióticas, desidratado e com palidez cutânea, temperatura auricular de 37,4ºC, TA de 63/43mmHg, frequência cardíaca de 130bpm, com diminuição da força muscular no membro inferior direito (grau 2), com pé pendente; sem outras alterações ao exame, nomeadamente neurológicas, abdominais ou na auscultação cardiopulmonar.
A gasometria arterial mostrou: pH – 7,04, pO2 – 109,7 mmHg, pCO2 – 19,5 mmHg, bicarbonato – 5,2 mmol/L, saturação O2 – 95,7 %, lactatos – 10,96 mmol/L, K+ – 8,5 mmol/L. Iniciou terapêutica com gluconato de cálcio, bicarbonato e perfusão de soro glicosado com insulina. As restantes análises revelaram: hemoglobina – 17,8 g/dL, leucócitos – 21,8x103/μL, plaquetas – 250x103/μL, protrombinémia – 43 %, aPTT – 44,5 seg. (controlo - 28,0 seg.), creatininemia – 3,74 mg/dL, azoto ureico sérico – 32 mg/dL, AST – 9199 U/L, ALT – 4683 U/L, GGT – 402 U/L, fosfatase alcalina sérica – 141 U/L, CK – >85340 U/L, CKMB – 2971,6 U/L, mioglobina – >10864 U/L, troponina I – 21,61 U/L, LDH – 7106 U/L; natremia e calcemia normais. O ECG evidenciava ritmo sinusal com ondas T espiculadas e inversão das ondas T em DII, DIII e aVF. A radiografia do tórax apresentava hipotransparência nas bases e a ecografia abdominal e renal não mostrou alterações.
Por manutenção da acidose e hipercaliémia refractárias associadas a anúria, iniciou hemodiálise. Houve melhoria da acidémia, no entanto manteve hipotensão arterial sem resposta à reposição volémica, tendo iniciado dopamina. O estudo toxicológico para pesquisa de cocaína, opióides e canabinóides só foi possível mais de 12 horas após a admissão, pela impossibilidade de colheita de amostra de urina por anúria (a pesquisa foi negativa).
Necessitou de suporte dopaminérgico durante 5 dias e de hemodiálise durante 2 semanas. Apresentou boa evolução clínica e analítica, com recuperação total da função renal, mantendo o défice neurológico. A ecografia e a ressonância magnética evidenciaram edema dos músculos da coxa e ao longo do trajecto do nervo ciático, sem lesão radicular ou das miofibrilas. A electromiografia mostrou lesão sensitivo-motora aguda e grave do plexo lombosagrado direito. Iniciou programa de reabilitação física.
Observou-se progressiva descida da hemoglobina - anemia normocrómica/normocítica ao 4º dia - até um valor mínimo de 7,8 g/dL, sem sinais de instabilidade hemodinâmica e com ferro sérico – 31 μg/mL, ferritina sérica – 857 ng/dL, capacidade total de fixação ferro – 297 μg/mL, saturação da transferrina – 10%, vitamina B12 e ácido fólico normais. Verificou-se incompatibilidade para transfusão por aglutinação in vitro. A investigação etiológica revelou teste de Coombs directo e indirecto positivos e restante estudo negativo. Houve estabilização do valor de hemoglobina, com posterior subida progressiva. Ao 27º dia objectivou-se atrito pericárdico de novo, sem outras alterações ao exame ou queixas associadas. O ecocardiograma mostrou: ventrículo esquerdo dilatado com depressão acentuada da função sistólica global (fracção de ejecção de 37%) e derrame pericárdico circunferencial de volume moderado com espessamento pericárdico posterior. Pela miopericardite aguda iniciou terapêutica com Ibuprofeno, com melhoria clínica.
O restante estudo revelou hepatite B com intensa replicação viral, sem outras alterações, nomeadamente serologias para a hepatite C e VIH negativas. A biopsia hepática mostrou sinais de hepatite crónica com fibrose portal moderada, pelo que iniciou entecavir.
Teve alta ao 55º dia, mantendo o programa de reabilitação física, com recuperação quase total da lesão neurológica. Houve normalização do hemograma e da enzimologia hepática e posteriormente negativação do ADN-VHB, negativação do AgHBe e seroconversão do AgHBs. Suspendeu Entecavir, mantendo-se em abstinência do consumo de drogas e com sinais ecocardiográficos de disfunção sistólica, com fracção de ejecção de 39%.
DISCUSSÃO
A cocaína e o álcool possuem efeitos sinérgicos e aditivos. O álcool altera a metabolização da cocaína, levando à formação do cocaetileno, um metabolito com uma semivida superior à desta, contribuindo para a elevada mortalidade observada nestes indivíduos.4
A rabdomiólise reflecte a lesão das células musculares, e neste caso foi devida à toxicidade directa da cocaína e dos seus metabolitos, à isquémia secundária ao seu efeito vasoconstritor2 e a imobilização prolongada poderá também ter contribuído. A rabdomiólise é um efeito menos frequente da heroína.
Para além da rabdomiólise, contribuíram para a lesão renal a vasoconstrição induzida pela cocaína e a hipotensão.2
A hepatotoxicidade da cocaína resulta da acção dos seus metabolitos e é dose e tempo dependente.5 O fígado é especialmente resistente a esta toxicidade, sendo necessária uma susceptibilidade genética ou a presença de outros cofactores, como o consumo de álcool e infecções virais crónicas.6 Neste caso foi detectada uma hepatite B, com intensa replicação viral, provavelmente por reactivação em contexto de imunodepressão por doença aguda grave. Neste doente, a lesão hepática foi seguramente multifactorial: isquémia pela vasoconstrição induzida pela cocaína, isquémia secundária à hipotensão e lesão directa da cocaína, dos seus metabolitos, da heroína e do vírus.
Os efeitos cardiotóxicos da cocaína surgem com o seu uso agudo ou crónico e na ausência de doença cardíaca prévia.2 As principais complicações são a isquémia e enfarte, miocardiopatia dilatada, miocardite e arritmias. A miocardiopatia resulta da hipertensão arterial e do vasoespasmo das artérias coronárias. Pensa-se que a miocardite é uma complicação da toxicidade directa da cocaína e por mecanismos de hipersensibilidade.2,4 A cocaína e o álcool são também responsáveis por disfunção mitocondrial e stress oxidativo, que culminam na morte celular, nomeadamente dos cardiomiócitos.8
Admitimos a hipótese de o teste de Coombs positivo, condicionando incompatibilidade para transfusão por aglutinação in vitro, ter sido induzido pelas substâncias consumidas. No entanto, existem poucos dados na literatura que permitam consubstanciar esta afirmação, sobretudo no que se refere à cocaína.
A lesão neurológica resultou do efeito mecânico pela imobilização e consequente compressão do nervo ciático e da toxicidade da heroína e cocaína, esta última sobretudo pelo seu efeito de vasoconstritor.1,7
CONCLUSÕES
A intoxicação aguda por cocaína é grave e potencialmente letal. O seu consumo agudo e crónico está associado a inúmeros efeitos deletérios, afectando múltiplos órgãos, como no caso apresentado. Os seus efeitos apresentam variações intra e interindividuais, dependentes da dose, da via de administração, do estado nutricional, do sexo, da combinação com outras substâncias ou da exposição prévia a esta.
BIBLIOGRAFIA
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