Introdução:
A incidência da encefalite varia com a região e a população estudada, mas estima-se que seja de 0.7 a 12.6 por cada 100.000 adultos1. O Vírus Herpes Simplex (VHS) é um alfaherpesvírus neurotrópico humano que tem a capacidade de permanecer latente nos gânglios sensoriais, de invadir e se replicar no sistema nervoso central2, sendo a causa mais frequente de encefalite viral nos países industrializados com 90% dos casos devido a VHS tipo 13. Dos doentes com encefalite por VHS estima-se que um terço seja consequência da infecção primária, ocorrendo os restantes dois terços na presença de anticorpos pré-existentes4. Sabe-se hoje que a investigação precoce e tratamento adequado permitem reduzir a mortalidade de mais de 70% para 20-30%3 mas, apesar disso, apenas 40% dos doentes retomam a sua actividade normal ou apresentam disfunção minor e, na ausência de tratamento antivírico, essa percentagem desce para menos de 2,5% dos casos4.
A encefalite por VHS tem sido descrita na grávida, mas na literatura menos de 3 dezenas de casos foram relatados entre 1972 e 2013 e, portanto, pouco é conhecido acerca da apresentação e prognóstico nesta população específica.
Caso Clínico:
Mulher de 24 anos, Gesta2/Para1 com parto eutócico. O primeiro filho era do sexo feminino, actualmente com 7 anos e saudável, salientando-se contudo episódio de encefalite meningocócica três meses antes da admissão da mãe com subsequente realização de profilaxia a todos os conviventes.
A doente tinha história prévia de meningoencefalite aos 3 anos de idade, interpretada como meningoencefalite herpética pelas características do liquor bem como pelas alterações detectadas na tomografia axial computarizada craneo-encefálica (TAC CE) que mostrou lesão hiperdensa insular esquerda, e no electroencefalograma (EEG) com surtos de ondas lentas, amplas, incidindo nas derivações temporais. Após este episódio foi-lhe diagnosticado epilepsia sequelar, controlada na gravidez com lamotrigina 100 mg 2id.
Apresentou-se no Serviço de Urgência com idade gestacional de 36 semanas, por cefaleia associada a febre com três dias de evolução, sem outros sintomas. À admissão estava febril (39ºC de temperatura auricular), taquicardica (125 bpm com pulso amplo e regular) e com estabilidade hemodinâmica (PAM de 75mmHg). No exame neurológico pontuava 15 pontos na Escala de Coma de Glasgow e apresentava rigidez terminal da nuca com Kernig e Brudzinski negativos.
Da investigação realizada apresentava hemograma e bioquímica (incluindo função renal e hepática) sem alterações, excepto elevação da proteína C reactiva de 19 mg/L (normal < 5 mg/L), não apresentava proteinúria e as serologias para VIH foram negativas. Foi efectuada uma TAC CE que não mostrou alterações relevantes e a doente prosseguiu a investigação com estudo do líquido céfalo-raquídeo (LCR) que revelou 236 leucócitos (dos quais 189 eram polimorfonucleares, 33 linfócitos e 14 monócitos), proteínas 0,41 (0,00 - 0,45) g/L e glicose 0,54 g/L (glicemia capilar 84 mg/dL). Perante os achados descritos foi assumida menigoencefalite bacteriana e iniciado tratamento com ampicilina, cefotaxima e dexametasona. A doente foi admitida em Unidade de Cuidados Intermédios mas apresentou agravamento clínico progressivo com alteração do estado de consciência e prostração associado a crises convulsivas pelo que foi instituída terapêutica antiepiléptica com fenitoína e levetiracetam. Decidido, perante esta evolução, cesariana electiva 24 horas após a admissão. O recém-nascido era do sexo feminino, com 2210g; Apgar 6/8/9 e com exame neurológico normal ao nascimento.
Pela manutenção do quadro neurológico foi realizada nova punção lombar (ao segundo dia após admissão) com pleocitose de 290 células (29 polimorfonucleares e 261 monócitos), proteínas 0.39 (0,00 - 0,45) g/L, glicose 0.64 g/L (glicemia capilar 135mg/dL), pelo que foi associado aciclovir (10 mg/kg 8/8 horas) à terapêutica inicial. O EEG realizado ao terceiro dia de internamento revelou ondas lentas, teta e delta, de localização e predomínio variáveis, sem actividade paroxística. A doente prosseguiu o estudo com a realização de uma ressonância magnética encefálica (RME) que mostrou hipersinal T2 e T2/FLAIR no córtex temporal, ínsula e cíngulo direitos, hipersinal do córtex insular e giro para-hipocampal esquerdos, aspectos sugestivos de encefalite herpética (fig.1-3), confirmado a posteriori pelaPolymerase chain reaction no LCR que foi positiva para VHS tipo 1 (negativa para citomegalovírus; enterovírus; vírus Epstein-Barr; vírus Herpes 6, VHS tipo 2 e vírus varicella-zoster).
Pela possibiliadde de se tratar de uma meningoencefalite recorrente (episódio prévio na infância) foi pedido estudo imunológico (com anticorpos anti-neurónios (IF e IB), anticorpos anti-gangliosideos (IgG e IgM), anti-MAG e anticorpos anti-canais de potássio) que foi normal.
Face aos resultados citados, foi suspensa terapêutica antimicrobiana e corticóide (ao quarto dia de internamento) e decidida manutenção de aciclovir endovenoso em monoterapia que cumpriu por 21 dias. O EEG feito ao décimo segundo dia de internamento mostrou actividade lenta focal anterior bilateral. Apesar de ser ter verificada uma melhoria no estado neurológico a doente manteve um síndrome amnésico e um síndrome disexecutivo, ficando incapaz de autonomia e de cuidar do filho. De facto, a avaliação neuropsicológica seis meses após o internamento mostrou funcionamento cognitivo abaixo do esperado com dificuldades significativas em múltiplos domínios cognitivos, nomeadamente velocidade psicomotora, vísuo-percepção, linguagem (nomeação e fluência verbal), memória verbal e visual e funções executivas avaliadas, com perfil cognitivo sugestivo de disfunção temporal. Ocorreu melhoria funcional gradual e, um ano após o quadro, já cuida do filho e realiza tarefas domésticas sob vigilância. Permanece contudo incapaz de voltar a exercer a sua actividade laboral. A criança encontra-se saudável, sem défices neurológicos aparentes e não apresentou meningoencefalite.
Discussão:
O aumento de estrogénios e da progesterona durante a gravidez (sobretudo no segundo e terceiro trimestre) que ocorrem para prevenir a rejeição do “enxerto fetal”5estão implicados na modulação das alterações imunológicas quer do sistema humoral quer da resposta celular, conferindo um maior risco de infecções e manifestações graves. De facto, na literatura, a maioria das encefalites por VHS identificadas nas grávidas ocorrem no terceiro trimestre como no caso descrito5. Os dados presentes até à data parecem sugerir que a incapacidade de rapidamente gerar uma resposta inata imediata ao vírus traduz-se numa incapacidade de contenção viral.
Apesar disso, não parecem haver diferenças significativas na manifestação inicial entre a população grávida e não grávida. Os sintomas mais frequentes em ambas as populações são a febre, coriza, cefaleia, alteração da cognição ou do estado de consciência alterações na personalidade e no comportamento ou crises epilépticas. Contudo, na gravidez, é necessário exclusão de outras causas mais frequentes para estes sintomas, como trombose venosa cerebral, hiperémese gravídica com distúrbios hidroelectrolíticos associados ou eclâmpsia, aquando da avaliação inicial5.
Apesar dos avanços no diagnóstico desta entidade as sequelas neurológicas associadas à encefalite por VHS permanecem frequentes. Dos estudos efectuados a idade ao diagnóstico e o estado de consciência à admissão parecem ser factores que influem no prognóstico mas que não são modificáveis. Mais recentemente o tempo desde a admissão hospitalar até início da terapêutica com aciclovir foi também identificado como factor prognóstico, estando preconizado o início da terapêutica antivírica, mediante suspeição clínica, inclusive em doentes cujo estudo inicial do LCR seja normal6. No nosso caso o predomínio de polimorfonucleares no LCR, não habitual na fase inicial de uma infecção por vírus do sistema nervoso central, levou ao adiamento do correcto tratamento em 48 horas.
A RME obtida 48 horas após admissão hospitalar mostra alterações em 90% dos doentes7, com as manifestações mais precoces a surgir a nível do giro cingulato e lobo temporal médio. As alterações visíveis na RME são altamente específicas (87.5%) para encefalites por VHS8e tem ainda a vantagem de poderem identificar diagnósticos alternativos.
A possibilidade de recidiva de encefalite por VHS é rara mas está estabelecida na literatura, podendo classificar-se em precoce, devido a tratamento sub-ótimo ou processo imune pós infeccioso, ou tardia com relatos de tempo de latência na literatura que podem chegar aos 8.5 anos9. Apesar de haver história de um episódio prévio de encefalite na infância as limitações técnicas existentes à data não permitiram determinar a etiologia da mesma e, portanto, apesar de possível, a informação actual é demasiado escassa para permitir inferir tratar-se de uma reativação.
O tratamento preconizado é com aciclovir (um análogo dos nucleosídeos) e o seu uso nos doentes com encefalite herpética reduz a mortalidade para menos de 20%3. Como a encefalite herpética é a mais frequente no mundo ocidental e o atraso no tratamento parece influir no prognóstico, a terapêutica deve ser administrada de imediato. Apesar de não existirem guidelines específicas para o tratamento da encefalite na grávida o aciclovir parece ser seguro na gravidez10.
Conclusão:
Nas grávidas que se apresentem com cefaleia, crises convulsivas e alterações do comportamento diagnósticos como a eclâmpsia, a trombose dos seios venosos e alterações metabólicas, mais frequentes nesta população, devem ser excluídos. Apesar disto, a encefalite por VHS é um diagnóstico a ter em conta já que o seu não tratamento pode ter consequências graves. A dose e duração da terapêutica antiviral assim como o modo e altura adequados para o parto devem ser alvo de consideração mas a falta de estudos dirigidos a esta população específica impossibilita a instituição de protocolos de actuação. Assim, sempre que possível, as grávidas devem ser incluídas nos estudos que abordam a etiopatogenia desta doença e os casos clínicos relatados na literatura.
Figura I

Ressonância magnética encefálica - Coronal T2 FSE – extenso hipersinal cortical em topografia temporal mesial, parahipocampal e insular à direita, associando-se obliteração dos sulcos corticais locorregionais.
Figura II

Ressonância magnética encefálica - Sagital T2 FSE – o hipersinal anómalo estende-se até à transição temporo-occipital lateral direita.
Figura III

Ressonância magnética encefálica - Axial T2 FSE – envolvimento adicional da região frontobasal e do giro do cingulo à direita pelo hipersinal anómalo.
BIBLIOGRAFIA
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