Introdução:
A Endocardite Infecciosa (EI) mantem-se como uma doença valvular grave apresentando taxas significativas de mortalidade e morbilidade.1 Nos países industrializados, estima-se que tenha uma incidência anual de 3-9 casos por 100 000 pessoas/ano, sendo mais prevalente no sexo masculino, numa proporção de 2:1.2
São conhecidos vários fatores de risco inerentes a esta entidade clínica, nomeadamente a presença de próteses valvulares ou o uso de drogas endovenosas (UDEV). Não obstante, a realização crescente de procedimentos invasivos, que acarretam risco acrescido de bacteriémia, têm contribuindo para o aumento da EI associada aos cuidados de saúde (até 30% dos casos). Esta tendência reflecte assim uma maior incidência de estafilococos e a uma diminuição de estreptococos orais como agentes responsáveis da doença. 2;3
A embolização séptica periférica é uma complicação possível da EI, que pode ser silenciosa e por isso, nem sempre é diagnosticada numa primeira abordagem destes doentes. Encontra-se presente em cerca de 45-65% dos casos estudados por necrópsia, e deve-se à migração das vegetações cardíacas, sendo o cérebro e o baço as localizações mais frequentes no embolismo do coração esquerdo, e o pulmão nos casos de EI do coração direito. São factores de risco para a embolização séptica periférica a presença de EI de câmaras esquerda (válvula mitral e aórtica), vegetações grandes e com mobilidade acentuada, assim como o isolamento de Sthaphylococcos aureus em exames culturais. 1;4
Caso clínico
Doente do sexo masculino, 47 anos de idade, leucodérmico e de nacionalidade Portuguesa. Recorre ao Serviço de Urgência por quadro de hemiparésia esquerda de instalação súbita e sensação de febre não quantificada há 2 dias. Referência ainda a sudorese e calafrios. Paralelamente degradação do estado geral, com prostração, astenia e adinamia. Sem história de tosse, expectoração ou dispneia, assim como outras queixas de órgão ou sistema.
Como antecedentes pessoais salienta-se: epilepsia e toxicodependência desde há 20 anos, com uso de drogas endovenosas nos últimos 4. Sem antecedentes familiares relevantes. Encontrava-se medicado habitualmente com Carbamazepina 200 mg bid, Topiramato 100 mg 1id e diazepam 10 mg em SOS.
No exame objectivo à entrada apresentava-se: lentificado, emagrecido e febril (38.7ºC), normotenso (123/75 mmHg), com extremidades quentes, sem aumento do tempo de preenchimento capilar; eupneico em ar ambiente, com saturação periférica de oxigénio de 97% sem suporte de oxigénio. Do ponto de vista auscultatório: taquicardia regular (FC 110 bpm), sem sopros audíveis. À auscultação pulmonar era normal, bem como restante exame tóraco-abdominal. Apresentava ponteado purpúrico ao nível do leito ungueal de ambas as mãos e petéquias conjuntivais. Relativamente ao exame neurológico: Glasgow 13, embora pouco colaborante. Ausência de meningismo. Disártrico, sem assimetrias da face. A nível da força muscular salienta-se hemiparésia esquerda de predomínio braquial, grau III/V no membro superior e grau IV/V no membro inferior esquerdo. Apresentava Babinsky positivo à esquerda.
Dos exames complementares de diagnóstico realizados na admissão salienta-se: elevação dos parâmetros inflamatórios com leucocitose (19000 células/µ; neutrofilia 85%) e PCR 20.4 mg/dl. Hemoglobina 15 g/dl e trombocitopenia moderada (58 µ/L ). Creatinina 1.4 mg/dl e LDH 675 U/L. Serologias para HIV negativa; Anti corpo anti HCV positivo. Doseamento de cocaina positivo na urina.
Perante as alterações inicialmente descritas ao exame objectivo, realizou TAC-CE que não evidenciou alterações sugestivas de enfartes ou presença de hemorragia. Realizou de seguida punção lombar, que revelou apenas hiperproteinorráquia (113 mg/dl). O electrocardiograma mostrou uma frequência de 100 batimentos por minuto, em ritmo sinusal.
O doente foi admitido com o provável diagnóstico de acidente vascular cerebral de etiologia a esclarecer, não se podendo descartar nesta fase a hipótese de embolização séptica, sem foco identificável, pelo que colheu sangue para hemoculturas e iniciou empiricamente Ceftriaxone 2 gramas 12/12 horas, Vancomicina 750 miligramas 8/8 horas e Ampicilina 2 gramas 4/4 horas.
O ecocardiograma transtorácico (ETT), realizado menos de 24h após a sua admissão não revelou alterações estruturais, nomeadamente suspeita de vegetações. Por agravamento do seu estado neurológico, foi repetida a TAC-CE às 48h após a sua admissão, que revelou focos de hemorragia intraparenquimatosa bilaterais (Figura 1). Decidiu-se por uma atitude expectante perante as medidas médicas instituídas, assitindo-se contudo a uma melhoria clínica e analítica, com descida inicial dos parâmetros inflamatórios e recuperação parcial dos défices neurológicos descritos. Foram isolados em 3 “sets” de hemoculturas estafilococos aureus metilcilino sensível (SAMS), contudo optou-se por manter a antibioterapia instituida.
Apesar de boa resposta inicial, por volta do 7º dia de internamento, nova deterioração do estado clínico: alteração do estado de consciência (Glasgow 9), aparecimento de febre, (após 3 dias de apiréxia, com valor máximo de 38.7ºC). Ao exame objectivo salienta-se: auscultação cardíaca com sopro sistólico de novo, grau III/VI audível no foco mitral.
Repetiu o ETT (Figura 2), que revelou vegetações a nível da válvula mitral e tricúspide, a maior com 7 mm, acompanhadas de regurgitação grave a nível da mitral. A TAC-TAP mostrou pequenos abcessos pulmonares e hepáticos e presença de enfarte esplénico e renal.
Apesar de suspeição clínica elevada desde a admissão, foi finalmente documentada EI a SAMS em individuo UDEV, com embolização à distância (cérebro, rim, baço, pulmão e fígado). Feito reajuste terapêutico, mantendo-se Vancomicina , e associada Gentamicina 80 miligramas/24 horas.
Do ponto de vista clínico, apesar de todas as medidas médicas optimizadas, constatou-se evolução desfavorável com persistência de febre e elevação de parâmetros inflamatórios. Clinicamente com sinais de Insuficiência Cardíaca Congestiva classe IV/IV de New York Heart Association. Assitiu-se a uma evolução desfavorável do quadro, com evolução em choque refractário a terapêutica, vindo o doente a falecer sem ter sido possível intervenção cirúrgica.
Discussão:
O diagnóstico clinico de EI pode ser complexo, dado que a história clínica varia consoante o seu agente patogénico, e a presença ou ausência de doença cardíaca pré-existente. É comum existir sintomatologia atípica em doentes idosos ou com imunodeficiência.4
É essencial a colheita de hemoculturas de forma adequada, que são positivas em até 85% dos casos, sem esquecer que devem colhidos 3 “sets” em diferentes ocasiões. 4;6;7
Nos restantes 15%, em que não é possível identificar o agente etiológico, devemos ter em consideração a administração prévia de antibioterapia, bem como a suspeita de presença de microorgnismos de crescimento exigente ou bactérias intracelulares cuja identificação depende de testes serológicos ou imunológicas, bem como técnicas de biologia molecular. 5;8
Do ponto de vista etiológico, o estafilococos aureus é o microorganismo responsável pela maioria das formas agudas da doença e prescinde da presença de lesão prévia do endocárdio. Nos UDEV, 60% dos casos devem-se a este agente frequentemente encontrado na pele. 8
O ecocardiograma assume um papel essencial no diagnóstico de EI. Inicialmente poderá realizar-se o Ecocardiograma transtorácico (ETT), que avalia de forma mais rigorosa o estado hemodinâmico do doente, inerente à disfunção valvular presente nesta doença. Este exame é também mais sensível na presença de abcessos a nível da parede anterior da válvula aórtica. Contudo, o ecotransesofágico (ETE) é o exame de eleição, e apresenta uma maior especificidade e sensibilidade, estando recomendado sempre que o ETT for negativo ou inconclusivo, e a suspeição clínica permanecer elevada. 4;6;7;8
A embolização sistémica corresponde a uma complicação da EI, e poderá ser totalmente silenciosa em 20% dos doentes. A sua identifiacação clínica nem sempre é realizada em virtude da não investigação diagnóstica da mesma, o que acontece de forma mais específica com a embolização séptica renal e esplénica. O envolvimento do cérebro, é a manifestação extracardíaca mais severa, assim como a mais frequente, podendo preceder o diagnóstico de EI em 60% dos casos. O espectro das complicações neurológicas incluiu anida: enfarte isquémico com ou sem transformação hemorrágica, acidente isquémico transitório, meningite e encefalopatia, abcesso cerebral, convulsões e mais raramente aneurismas micóticos. A ocorrência destes eventos neurológicos influência de forma negativa o prognóstico. Contudo, após o inicio de antibioterapia, o risco de embolização cerebral diminuiu significativamente, sendo de apenas 6-21%. 2;4;6;8
O envolvimento renal na EI está também associado à embolização à distância, e incluiu em 2/3 dos casos a presença de enfartes renais. Menos frequentemente encontrados são os abcessos a nivel do córtex renal. As características clínicas variam conforme a localização e magnitude do processo, tendo maior repercussão nos casos de embolismo bilateral e na presença de rim único. As oclusões segmentares são geralmente assintomáticas. 1;5
Relativamente à decisão de cirurgia cardíaca nestes doentes, a indicação com intuito preventivo de embolização deverá ter em conta o tamanho e a mobilidade das vegetações (>10-15 mm), a duração de antibioterapia dirigida e a probabilidade de sucesso deste procedimento. O sucesso desta complexa intervenção está associada às co-morbilidades do doente, bem como a sua condição clínica pré e peri-procedimento. 2;7;8
Relata-se caso clínico de EI, em individuo com fatores de risco conhecidos (história de UDEV), que se apresentou como AVC por embolização séptica, apresentando também embolização a nível esplénico, pulmonar e renal, contribuindo para um piro prognóstico do quadro.
Este caso clínico assume particular importância pela relevância do diagnóstico de embolização séptica à distância, dado que a maioria destes eventos são silenciosos, e na sua maioria ocorrem previamente à dmissão hospitalar. O diagnóstico desta complicação na EI tem impacto no prognóstico da doença, pelo que o uso de antibioterapia deve ser inicado precocemente, reduzindo consideravelmente o risco de embolização. 9
Do ponto de vista etiológico, o estafilococos aureus contínua a ser o agente mais comum e temível, estando associado a uma maior número de complicações, e pior “outcome”, pelo que a monitorização destes doentes deve ser rigorosa. 2;4;8Figura I

Focos de hemorragia intraparenquimatosa bilateralmente
Figura II

Presença de vegetações a nível da válvula Mitral
Figura III

Enfartes renais bilateralmente
BIBLIOGRAFIA
Bibliografia:
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7.Baddour et al. Infective Endocarditis: Diagnosis and Management; from http://circ.ahajournals.org/ by guest on May 4, 2015
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9. Prendergast D, Tornos P. Surgery for Infective Endocarditis who and when ?. Prendergast D, Tornos P. http://circ.ahajournals.org. acedido em Junho de 2016