INTRODUÇÃO
O Síndrome Neurológico Pós-Malária (SNPM) foi descrito pela primeira vez em 1996 por Nguyen e seus colaboradores. É caracterizado pelo aparecimento de sintomas neuro-psiquiátricos, nos dois meses após uma infecção sintomática de malária por Plasmodium falciparum (PF), tratada de forma eficaz.1 A ausência de parasitas no sangue periférico distingue-o da malária cerebral.
Até 2009 tinham sido reportados 36 casos na literatura, envolvendo indivíduos residentes em áreas endémicas e, mais recentemente, visitantes dessas regiões que não efectuaram a profilaxia indicada.2 Em Portugal há um único caso reportado na Acta Médica Portuguesa.3
O SNPM manifesta-se através da alteração do estado de consciência em 77% dos casos; confusão mental em 66%; febre em 50%; convulsões generalizadas em 33%; afasia em 28%; tremor em 23%; psicose em 17%; mioclonias em 11%; e cefaleias e ataxia, ambos em 8% dos casos.1,2,4 Este síndrome é descrito apenas após malária por PF, não havendo casos reportados após malária por outras espécies.
A sua prevalência em doentes com malária é de 0.12%, e é 300 vezes mais comum após uma infecção complicada por malária.1 Ocorre mais em indivíduos do sexo masculino, e é três vezes mais frequente em adultos do que em crianças.1, 2, 5
CASO CLÍNICO
Descreve-se o caso de uma doente de 48 anos, natural e residente em Angola, internada em Fevereiro de 2011 por Malária não complicada a PF. Cumpriu terapêutica com quinino endovenoso, durante 7 dias, tendo alta ao 8º dia com parasitémia negativa. Dois dias após a alta iniciou um quadro de tonturas, vertigens, vómitos, discurso lentificado e alterações da marcha, que persistiram após terapêutica sintomática. Foi admitida em Portugal, 1 mês depois, apresentando: lentificação do discurso, dismetria bilateral na prova dedo-nariz, disdiadococinésia, Sinal de Romberg positivo e ataxia da marcha. Do estudo efectuado destaca-se: Pesquisa de PF no sangue periférico negativa; Ressonância magnética crânio-encefálica (RNM-CE) com moderada atrofia cortical cerebral e cerebelosa difusa, com lesões multifocais da substância branca. As Serologias realizadas revelaram-se todas negativas, nomeadamente: Vírus de Imunodeficiência Humana 1 e 2 (VIH), Sífilis: VDRL e TPHA, Herpes Simplex 1 e 2 (HSV), Varicela Zoster, Citomegalovirus (CMV), Epstein Barr (EBV), Toxaplasma, Brucelose (Teste de Huddleson e Rosa Bengala), Coxsackie, Echovirus, Anticorpos anti- Borrelia burgdorferi; Anticorpos anti-Coxiella burnetii; Hepatites A, B e C; Anticorpos anti-Adenoviruis e Anti-Chlamydia pneumoniae. Foi realizado uma punção lombar (PL) e a análise do líquor (LCR) revelou apenas proteinorráquia (59.4 mg/dL; n.v. 15-45 mg/dL). Hemoculturas, Culturas do LCR e Urocultura revelaram-se negativas. Após a exclusão de outra causa infecciosa, admitiu-se a hipótese de SNPM. Iniciou-se tratamento com Metilprednisolona em alta dose - 1g/dia durante 3 dias, tendo-se verificado resolução completa dos défices, após 1 semana.
O segundo caso refere-se a um doente, de 31 anos, a trabalhar há 3 anos na Guiné-Equatorial, sem realizar profilaxia para infecção por PF. Foi internado em Portugal, em Dezembro de 2011, por Malária não complicada a PF. Cumpriu 7 dias de tratamento oral com sulfato de quinino e doxiciclina. Catorze dias após a alta inicia um quadro de agitação psico-motora, confusão mental, convulsões e alucinações visuais. Dos exames realizados destaca-se: Pesquisa de PF no sangue periférico negativa; Tomografia computorizada crânio-encefálica (TC-CE) sem imagens com significado patológico no parênquima cerebral, cerebeloso ou intra-craniana. Realizou PL e o LCR revelou: 5 células/mm3; glicose 73 mg/dL (n.v. 40-70 mg/dL) e proteinorráquia (160 mg/dL; n.v. 15 – 45 mg/dL). O doente foi internado por suspeita de meningite, tendo iniciado antibioterapia empírica com Cefotaxime endovenoso, 2g de 6/6h. A antibioterapia foi suspensa após 3 dias, na sequência de cultura do LCR negativa. Do restante estudo destaca-se: RNM-CE revelou hipersinal sub-cortical na vertente superior da vala sílvica direita, sem edema. O Electroencefalograma (EEG) revelou encefalopatia difusa. Todos os testes serológicos revelaram-se negativos: VIH 1 e 2; Sifilis: VDRL e TPHA; CMV; HSV 1 e 2; EBV; Toxoplasma; Coxsackie; Echovirus; Hepatites A, B e C; Adenovirus; Influenza; Parainfluenza; Mycoplasma pneumoniae; Ricketsia conorii e Leptospira. As Hemoculturas e Urocultura foram negativas. Admitiu-se a hipótese de SNPM e foi iniciado Prednisolona 150mg/dia, durante 1 semana, com completa resolução do quadro.
DISCUSSÃO / CONCLUSÃO
Após recuperação completa de uma infecção por malária podem ocorrer várias complicações neurológicas, entre as quais: Ataxia cerebelosa de início tardio (ACIT); Encefalomielite disseminada aguda (EMDA), e Polineuropatia desmielinizante inflamatória aguda (PDIA).2,3 Alguns autores acreditam que o SNPM é uma variante dessas complicações. No entanto, algumas discrepâncias favorecem a distinção do SNPM como uma entidade isolada. Neste sentido, destaca-se que a EMDA ocorre mais em crianças, os doentes apresentam invariavelmente alterações na RNM-CE e as sequelas neurológicas podem permanecer a longo prazo. Referir igualmente que a ACIT pode ocorrer em doentes com parasitémia positiva, e a sua resolução acontece após administração de anti-maláricos. 3, 5, 6
A patogénese do SNPM mantém-se ainda desconhecida, mas evidências sugerem um mecanismo imunológico subjacente. Em doentes com malária severa verifica-se um aumento de citocinas inflamatórias no LCR e no plasma (Factor de necrose tumoral- alfa e Interleucinas 2 e 6).6,7 Estas citocinas podem permanecer em circulação mesmo após a erradicação do parasita e, nos doentes com SNPM estão presentes em maior concentração quando comparado com concentrações medidas no período de convalescença. 4, 7, 8 O tempo observado entre a disfunção neurológica após erradicação do parasita e a resposta ao tratamento com esteróides suportam esta hipótese.
No SNPM não existe investigação específica, sendo o seu diagnóstico essencialmente de exclusão. Contudo, determinados exames complementares, juntamente com o contexto epidemiológico e a clinica fazem-nos chegar mais facilmente ao diagnóstico. Nos casos reportados, o LCR geralmente revela pleocitose linfocitáira e proteinorráquia, a TC e a RNM crânio-encefálicas mostram-se frequentemente sem alterações ou então revelam alterações inespecíficas - hipersinal em vários locais do cérebro. O EEG revela actividade lenta e desorganizada, alterações consistentes com encefalopatia ligeira a severa. 2, 3, 4, 5, 8, 9
Este síndrome é uma entidade auto-limitada e não requer tratamento específico. Nos casos mais graves, os corticosteróides em altas doses evitam a sua progressão. Após a recuperação não se verificam sequelas neurológicas a longo prazo. 1,3,4,5,8,9
Os autores reportam dois casos do mesmo síndrome, com apresentações diferentes, pretendendo, com isso, chamar a atenção para as várias vertentes desta complicação rara. Estes casos tornam-se atípicos por ocorrerem após episódio de malária não complicada.
Por se tratar de um síndrome pouco frequente, os estudos disponíveis são escassos. Não obstante, verifica-se que os casos mais graves respondem a altas doses de corticosteróides. Acresce, ao já exposto, a ausência de uma recomendação clara acerca das doses de corticosteróides a utilizar. Os autores optaram por esquemas terapêuticos distintos, sendo que, em ambos, se observou desfecho favorável.
Destaca-se, igualmente, a importância da distinção do SNPM de uma recaída de malária, ressalvando que no síndrome descrito existe um intervalo entre a cura da malária e o início dos sintomas e a parisitémia é sempre negativa.
BIBLIOGRAFIA
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