Introdução:
Define-se como crioglobulinemia, a presença na circulação sanguínea de crioglobulinas, isto é, proteínas plasmáticas que precipitam a temperaturas inferiores a 37ºC e dissolvem com o aquecimento 1,2,4. As crioglobulinas, descritas pela primeira vez em 1933 por Wintrobe e Buell1, podem ser classificadas em três subgrupos: tipo I (imunoglobulinas monoclonais, geralmente IgM), tipo II (imunoglobulinas mono ou policlonais de tipo IgM) e tipo III (imunoglobulinas policlonais de tipo IgG) (figura 1).
A crioglobulinemia pode ser idiopática ou estar associada a doenças auto-imunes, malignas ou infeciosas. As crioglobulinas tipo I (10 a 15% do total das crioglobulinas), estão presentes em associação a doenças linfoproliferativas como a Macroglobulinemia Waldenstrom ou o Mieloma Múltiplo7. Podem provocar síndrome de resposta inflamatória sistémica, com manifestações vasculares induzidos pelo frio ou, em casos raros, sintomas por hiperviscosidade sanguínea. Em geral, associam-se a manifestações cutâneas, mas também podem causar sintomas reumatológicos (artralgias ou artrite), envolvimento renal, dos nervos periféricos ou sistema nervoso central, atingimento pulmonar, do miocárdio ou gastrointestinal3,8.
Apenas 6 a 10% dos doentes com crioglobulinemia apresentam Mieloma Múltiplo. Esta baixa incidência traduz-se num reduzido número de casos clínicos desta associação publicados até à data, o que limita o conhecimento científico desta entidade e dificulta a fundamentação do melhor tratamento para este tipo de doentes1,5,6.
Caso clínico:
Apresenta-se o caso de um homem de 59 anos, sem antecedentes patológicos de relevo. Assintomático até Junho de 2015, altura em que inicia um quadro insidioso de tosse produtiva, sem febre e sem outros sintomas associados. Por manter as mesmas queixas respiratórias, com um mês de evolução, e epistáxis, recorreu ao médico família. Foi assumido o diagnóstico de Traqueobronquite aguda e medicado com amoxicilina/clavulanato empiricamente. Dois dias após a toma do antibiótico, surgiu um eritema maculopapular pruriginoso, na região dorso lombar e gemelar bilateralmente. Por este motivo, o doente recorreu ao serviço de urgência, onde o quadro clínico foi interpretado como reação alérgica aos beta-lactâmicos. Teve alta clínica medicado com anti-histamínico e com indicação para suspender o antibiótico, tendo apresentado melhoria clínica.
Cinco meses volvidos, em Dezembro do mesmo ano, volta ao médico assistente por queixas de rinorreia crónica, astenia, anorexia e perda ponderal de 10kg em três meses. Em associação, referia uma clínica de acrocianose dolorosa com a exposição ao frio e úlceras digitais. O médico assistente solicitou um estudo analítico que documentou a presença de crioglobulinas em circulação, anemia normocrómica normocítica (Hb 10g/dL) e trombocitose (514000 plaquetas/uL). Neste contexto foi referenciado para a consulta externa de medicina interna e posteriormente internado para estudo.
Durante o período de internamento, o doente apresentou fenómenos de Raynaud, durante higiene matinal e queixas de lombalgia intensa, que limitava a sua mobilidade. Ao exame físico de referir, a presenta de púrpura palpável na região gemelar, mais marcada no membro inferior esquerdo.
Para realização da leitura do estudo analítico foi necessário o pré-aquecimento da amostra, pois o sangue coagulava com facilidade a baixa temperatura. Das análises laboratoriais (tabela 2) salientava-se: anemia normocrómica normocítica (Hb 9.40g/dL), défice de ferro (ferro 32 ug/dL, saturação de transferrina de 11%) e vitamina B12 142 pg/mL, trombocitose 514000/uL, elevação da fosfatase alcalina 93 U/L, desidrogenase láctica 240 U/L e hipoalbuminemia 2.22g/dL. O doseamento do cálcio ionizado e fósforo foi normal. O estudo virológico e imunológico, nomeadamente HIV, HBV, HCV, EBV e CMV, foram negativos. Foi documentado diminuição do complemento C4 (<5mg/dL), elevação da IgG 2228mg/dL e cadeias leves Kappa 20200mg/L. A velocidade de sedimentação não foi possível determinar, dada a elevada viscosidade da amostra. Foi objetivado crioglobulinas em circulação (titulação 32), cuja imunoeletroforese documentou a presença de crioglobulinas IgG monoclonal cadeias Kappa (3.5g/dL). Foi confirmada por imunofixação o padrão de gamopatia monoclonal do tipo IgG cadeias leves Kappa. Foi realizado a investigação da presença de lesões líticas a nível do esqueleto (figura 1). A nível da coluna vertebral, nomeadamente D7, D9 e L2, apresentava múltiplas lesões líticas associadas a fratura dos respetivos corpos vertebrais. O mielograma mostrou a presença de 64% de plasmócitos. O FISH foi negativo para a translocação (4;14) e deleção do cromossoma 17. Uma vez confirmado o diagnóstico de Mieloma Múltiplo IgG-Kappa, foi orientado para a consulta de hematoncologia, tendo iniciado tratamento com bortezomibe, talidomida e dexametasona, com boa resposta clínica e tolerância. Atualmente, encontra-se no 8ºciclo do tratamento, com resposta parcial muito boa.
Discussão
A crioglobulinemia trata-se de uma desordem rara, cuja verdadeira prevalência ainda é desconhecida.
O caso clínico descrito apresenta uma manifestação rara de mieloma múltiplo, a crioglobulinemia tipo I. Refere-se a um tipo crioglobulinas mais raro, correspondendo a cerca de 10 a 15% do total das crioglobulinas e descrito em 6 a 10% dos casos em associação a mieloma múltiplo1,4.
Na crioglobulinemia tipo 1, a maioria dos doentes é assintomática, mas quando sintomáticos, é comum a presença de sinais relacionados ao síndrome de hiperviscosidade e /ou fenómenos trombóticos como a isquemia digital ou fenómeno de Raynaud.
O doente em questão apresentava acrocianose dolorosa provocada pelo frio, associada a purpura palpável nos membros inferiores e úlceras digitais (quadro típico da crioglobulinemia). Uma vez objetivado esta entidade clínica, é importante caracterizá-la e identificar possíveis entidades clinicas associadas. No caso apresentado foi realizada a investigação da desordem hematológica associada, o Mieloma Múltiplo.
O tratamento destas duas entidades em associação não é consensual, nem está bem definido. Nos raros casos descritos na literatura existente, o tratamento realizado é idêntico ao aplicado aos demais casos de Mieloma Múltiplo e inclui fase de indução com bortezomibe ou lenalidomibe1. O bortezomibe é um inibidor proteossómico seletivo, com efeito anti tumoral e anti angiogénico, que mostrou ser útil nos doentes com manifestações de vasculite1. A plásmaferese pode ser considerada quando as manifestações da crioglobulinemia são graves e incapacitantes1.
No doente descrito, fez-se terapêutica de indução com bortezomibe, talidomida e dexametasona (terapêutica de 1º linha). Não realizou plásmaferese, uma vez que a sintomatologia apresentada (manifestações vasculíticas) não era incapacitante na data do diagnóstico.
A par do tratamento quimioterápico, é importante o tratamento dos vários sintomas associados a esta entidade clínica. De referir o tratamento das dores ósseas com analgésicos e bisfosfonatos. Este grupo farmacológico mostrou a redução da reabsorção óssea, estimulação da atividade osteoblástica, assim como inibição do recrutamento e promove a apoptose de osteoclastos. O tratamento da anemia multifatorial, por défice de ferro e vitamina B12, bem como infiltração plasmocitária da medula óssea e lesão renal, com a suplementação vitamínica e eritropoietina, é importante para melhoria da qualidade de vida do doente.
Este caso clínico documenta a associação de duas entidades clínicas raras, com grande impacto na morbimortalidade dos doentes, com limitada informação na literatura a cerca de qual o melhor tratamento a ser realizado.
Figura I

Tipos de crioglobulinemia (+ e > indica a frequência de ocorrência (adaptado do UpToDate “Classification of Cryoglobulins”))
Figura II

Tabela 2- Resultados laboratoriais durante o internamento
Figura III

Proteinograma
Figura IV

Lesões líticas na calote craniana e vértebras dorso-lombares.
BIBLIOGRAFIA
Referências bibliográficas:
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5. Soranobu Ninomiya, et al, IgG Type Multiple Myeloma and Concurrent IgA Type Monoclonal Gammopathy of Undetermined Significance Complicatedby Necrotizing Skin Ulcers due to Type I Cryoglobulinemia, J Clin Exp Hematopathol. 2010; 50 (1): 71-74
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8. Nicolas Kluger, Jérôme Sirvente, Valérie Rigau, Bernard Guillot, Extensive thrombotic purpura revealing multiple myeloma associated-type I cryoglobulinemia, Br J Hematol. 2011;154:1