Introdução:
A Salmonella spp é um bacilo gram negativo, anaeróbio facultativo, pertencente à família das Enterobacteriaceace¹. A taxonomia do seu grupo divide-a em Samonella não Typhi e Salmonella Typhi, provocando quadros clínicos distintos¹.
A principal diferença entre estes 2 grupos é que a Salmonella Typhi tem uma maior capacidade de produzir bacteriémias através da penetração da mucosa intestinal até aos tecidos linfoides do íleo (placas de Peyer) alojando-se dentro dos monócitos / macrófagos, usando-os como meio para alcançar a corrente sanguínea produzindo a febre tifóide. No caso das Salmonellas não Typhi a capacidade de produzir bacteriémias em imunocompetentes é menor¹. Em indíviduos sem patologia de base a infeção por Salmonella não Typhi caracteriza-se por quadros gastro-intestinais agudos, benignos e auto-limitados. A penetração da barreira gastrointestinal é rara, ocorrendo em cerca de 5% dos casos². No entanto, graves manifestações extra-intestinais podem ocorrer nos imunocomprometidos¹. Nestes, apresentações atípicas e severas como quadros de bacteriémia / sépsis com atingimento multiorgânico não são raros, podendo ser fatais¹.
Em doentes imunocomprometidos, não existem evidências sobre o aumento da susceptibilidade nem da gravidade da febre tifoide ¹.
Relatamos 4 casos de doentes adultos, do sexo masculino, com infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH), sem terapêutica anti-retroviral (TARV), que apresentaram formas atípicas de infeção por Salmonella não Typhi.
Caso clínico 1
Homem de 34 anos, ex-toxicodependente, antecedentes de infeção VIH e sem seguimento médico. Sem medicação habitual. Recorreu ao serviço de urgência (SU) por quadro de astenia, tosse ligeira não produtiva e dificuldade em deambular com 2 dias de evolução. Objetivamente com febre e um abcesso da face anterior do membro inferior direito. Sem outras alterações ao exame objetivo. Foi documentada a presença de anemia de 7,3 g/dL (13,0 – 18,0 g/dL), leucopenia de 3170/uL (3800 – 10600u/L) e elevação da proteína-C-reativa (PCR) de 5,71mg/dL (0-0,5 mg/dL). Os níveis de CD4⁺ eram de 22céls/μL e carga viral com 1520000 cópias/mL. A telerradiografia (RX) do tórax não tinha alterações pleuro-parenquimatosas agudas. O sedimento urinário não tinha critérios de infeção. Procedeu-se à colheita de hemoculturas e drenagem do abcesso, com envio do pús para estudo microbiológico. Foi internado para tratamento do abcesso. Iniciou antibioterapia empírica com vancomicina e gentamicina e TARV. A microbiologia do pús revelou infeção por Salmonella enteritidis e Staphillococus aureus, também presentes em hemoculturas colhidas na mesma altura, sensíveis a ampicilina, ceftriaxone, cotrimoxazol, gentamicina e oxacilina. Alterada a antibioterapia para tratamento dirigido com ciprofloxacina e sulfametoxazol/trimetroprim que cumpriu durante 2 semanas. Teve alta com resolução do quadro orientado para a consulta de Doenças Infeciosas.
Caso clínico 2
Homem de 44 anos, ex-toxicodependente, com antecedentes de co-infeção por VIH, vírus da hepatite B e vírus da hepatite C; infeção respiratória por Micobacterium xenopi e cirrose hepática compensada. Medicado com rifabutina, etambutol, claritromicina. Após observação em consulta de Doenças Infeciosas, foi internado por febre e sinais inflamatórios do membro inferior direito, restante exame objetivo sem alterações. Analiticamente apresentava uma pancitopenia com 11,5 g/dL de hemoglobina, 2110/uL leucócitos e 109 000/uL plaquetas (150 – 440 000/uL); elevação da PCR (10,24 mg/dL); níveis de CD4⁺ de 6 céls/uL e carga viral de 83100 cópias/mL. Realizou tomografia axial computorizada (TAC) do membro inferior direito que evidenciou volumosa coleção abecedada com 30x20 cm envolvendo todo o fémur e com atingimento do mesmo. Colheu hemoculturas e procedeu-se à drenagem cirúrgica, com envio do exsudado para estudo microbiológico. Iniciou antibioterapia empírica com vancomicina e gentamicina; iniciou TARV. Foi isolada no exsudado uma Salmonella do grupo B sensível a cefotaxina, cotrimoxazol e ciprofloxacina. As hemoculturas revelaram-se negativas. Iniciou antibioterapia dirigida com ciprofloxacina durante 10 semanas, com boa resposta. TAC de controlo às 6 semanas mostrou loca muito discreta, praticamente colapsada (Fig.1).
Caso clínico 3
Homem de 51 anos, antecedentes de infeção VIH adquirida por via sexual, sem seguimento médico, sem medicação habitual. Foi ao SU por quadro de agravamento progressivo do estado geral com astenia, anorexia, tosse produtiva com expetoração purulenta e dispneia, com cerca de 1 semana de evolução. Na auscultação pulmonar apresentava crepitações na base pulmonar direita. Da revisão de aparelhos e sistemas, verificada candidíase oral. Constatada anemia de 7,9 g/dL, linfopenia de 319/uL (1500-6500/uL) e elevação da PCR de 22,8 mg/dL; níveis de CD4⁺ de 16 céls/μl e carga viral de 754000 cópias/mL. No RX do tórax visualizou-se derrame pleural direito de pequeno-médio volume (Fig. 2). A TAC toraco-abdominal mostrou alterações compatíveis com pneumonia necrotizante associada a derrame pleural parapneumónico (Fig. 3). Colheu hemoculturas e exame bacteriológico da expetoração. Foi internado por pneumonia com empiema parapneumónico à direita. Iniciou antibioterapia empírica com amoxicilina + ácido clavulâmico e TARV. As hemoculturas foram positivas para infeção por Salmonella enteritidis, sensível a amoxicilina + ácido clavulânico, ampicilina e cotrimoxazol. Sem isolamentos no exame bacteriológico da expetoração. Manteve a antibioterapia até completar 2 semanas de tratamento. Por ausência de melhoria imagiológica procedeu-se à drenagem cirúrgica, descorticação, do derrame pleural (Fig. 4). Teve alta medicado com linezolide durante 4 semanas, com resolução do quadro. Referenciado para a consulta de Doenças Infeciosas.
Caso clínico 4
Homem, 44 anos, oligofrénico. Enviado à consulta de Doenças Infeciosas por serologia VIH positiva adquirida por via sexual e antecedentes de infeção pelo vírus herpes zooster há cerca de 3 meses. Referia emagrecimento, astenia, anorexia, cefaleias e odinofagia com 6 meses de evolução, febre e tosse com expetoração mucopurulenta com alguns dias de evolução. Objetivamente apresentava microadenopatias cervicais, febre, edema e rubor da orofaringe e sibilância à auscultação pulmonar, sem outras alterações. Internado por síndrome febril. Analiticamente apresentava uma pancitopnenia com 11,0 g/dL de hemoglobina, 2410/uL leucócitos e 53 000 plaquetas, CD4⁺ de 58céls/μl e carga viral de 2650000 cópias/mL. O sedimento urinário, RX do tórax e ecografia abdominal superior estavam normais. Colheu hemoculturas, urocultura e bacteriológico da expetoração. Iniciou antibioterapia empírica com ceftriaxone e TARV. As hemoculturas revelaram-se positivas para Salmonella typhimurim, sensível a cefotaxima, ciprofloxacina e cotrimoxazol. Os restantes exames culturais foram negativos. Completou 7 dias de tratamento com ceftriaxone, Verificando-se melhoria clinica e analítica progressiva. Teve alta referenciado para a consulta de Doenças Infeciosas.
Discussão:
A infeção por Salmonella spp. nos doentes infetados pelo vírus da imunodeficiência humana é mais frequente que na população geral¹. A Salmonella não Typhi é cada vez mais reconhecida como um patogéneo associado a infeções em localizações incomuns e bacteriémias, especialmente em imunocomprometidos².
A incidência de bacteriémia por Salmonella não Typhi nos doentes VIH estima-se ser 20 a 100 vezes superior à incidência em doentes imunocompetentes³. Habitualmente ocorre em doentes com baixas contagens de linfócitos CD4+³. Estes doentes são mais propensos a desenvolver bacteriémia com ausência de sintomas gastro-intestinais, bem como infeções em locais atípicos¹. Cursam com quadros clínicos mais graves e apresentam uma mortalidade aumentada a curto e longo prazo, que pode atingir os 30% em doentes sem acesso a tratamento adequado⁴. Este fato pode constituir um fator de risco demonstrado para a mortalidade e imunossupressão subjacente¹, sendo que na presença de uma bacteriémia por Salmonella não typhi na ausência de sinais e sintomas gastro-intestinais, ou de infeção em locais atípicos, é importante excluir a presença de imunossupressão².
Desde o início dos anos 80 que a bacteriémia recorrente por Salmonella não Typhi é reconhecida com uma doença definidora de SIDA em doentes com infeção VIH⁵. Antes da introdução de TARV em 1996, as recorrências de bacteriémias por Salmonella não Typhi eram comuns apesar de tratamento antimicrobiano adequado³. Com a melhoria do estado imunológico após a introdução da TARV, verificou-se uma diminuição da incidência e mortalidade das infeções oportunistas definidoras de SIDA, assim como da bacteriémia por Salmonella não Typhi³. Vários estudos demostraram resultados favoráveis para o início precoce de TARV nestes doentes, com diminuição significativa da mortalidade a curto e longo prazo¹, alguns dos quais defendem mesmo que a bacteriémia recorrente por Salmonella não Typhi pode ser um marcador de má resposta ou adesão à TARV⁶.
Relativamente ao tratamento a instituir na presença de infeção por Salmonella não Tiphy com ou sem bacteriémia em doentes imunocoprometidos, não existem evidências sólidas quanto ao tratamento antibacteriano nem quanto à sua duração, no entanto é consensual que antibioterpia deve ser dirgida pelos padrões de resistência dos agentes isolados¹.
Uma abordagem global com colheita de exames culturais em todos os doentes internados por quadros infeciosos (mesmo nos doentes sem infeção VIH) é fundamental para a identificação precoce de bacteriémias e tratamento médico adequado. No caso de doentes com infeção VIH e diarreia, salienta-se a importância da realização da pesquisa de Clostridium difficile nas fezes, para exclusão, evitando o agravamento com a administração de antibióticos.
Em todos os casos se verificou a presença de infeção VIH, com baixas contagens de CD4⁺ (< 100 céls/uL, 3 dos quais com contagens de CD4+ < 50céls/uL), e todos não se encontravam na altura sob TARV. Foram realizados exames culturais precocemente, e em todos se obtiveram resultados positivos para Salmonella não Tiphy, 3 dos quais com bacteriémia. Foi instituída antibioterapia dirigida e início de TARV, verificando-se resolução do quadro clínico com recuperação imunológica, sem história de recorrência de infeção até à data.
Conclusão:
A revisão destes casos pretende salientar a importância de uma abordagem global dos doentes com infeção VIH, com particular ênfase para a colheita precoce de exames culturais, nomeadamente hemoculturas, nos doentes com infeção. Devido ao grau de severidade e letalidade nestes doentes, as infeções por Salmonella não Typhi devem ser sempre consideradas no diagnóstico diferencial de infeções localizadas e /ou bacteriémias, uma vez que o tratamento dirigido e o início precoce de TARV contribuem para a diminuição das complicações e mortalidade.
Em todos os casos verificou-se melhoria do quadro clínico com recuperação imunológica e sem história de recorrência após início da TARV, salientando a importância do seu início precoce, concomitantemente com o tratamento da infeção. Destaca-se também a importância da infeção por Salmonella não Typhi como marcador de imunodeficiência grave.
Figura I

A: TAC dos membros inferiores na admissão; B: TAC dos membros inferiores de controlo às 6 semanas.
Figura II

RX do tórax com derrame pleural direito.
Figura III

TAC torácica com derrame pleural direito.
Figura IV

RX do tórax de controlo após drenagem cirúrgica do derrame pleural.
BIBLIOGRAFIA
¹ - Sebastián Paredes E, Cosntanza Norambuena N, Sylvia Echavarri V, Martin Lasso B. Tumor cervical por Salmonella Typhimurium como forma de presentación clínica de SIDA en un pacienta con infección por VIH. Rev Chil Infect. 2011; 28 (4): 363-368.
² -Dhanoa A, Fatt QK. Non-typhoidal Salmonella bacteraemia: Epidemiology, clinical characteristics and its’ association with severe immunosuppression. Ann Clin Microbiol Antimicrob. 2009; 8:15.
³ – Hung CC, Hung MN, Hseuh PR, Chang MY, Chen MY, Hsieh SM, et al. Risk of recurrent nontyphoid Salmonella bacetriemia in HIV-infected patients in the era of highly active antiretroviral therapy and an increasing trend of fluoroquinolone resistence. Clin Infect Dis. 2007; 45: e60-7.
⁴ – Waldo B, Marina R, Graciela G, Richard D, Ariel P, Marisa S, el al. Recurrent meningitis and subarachnoid hemorrhage due to Salmonella in a HIV+ patient: case report and mini-review of the literature. The Open AIDS J. 2011; 5: 62-66.
⁵ - Subramoney EL. Non-typhoidal Salmonella infections in HIV-positive adults. S Afr Med J. 2015 Sep 18;105(10):805-7.
⁶ - Chou Y-J et al. Risk of recurrent nontyphoid Salmonella bacteremia in human immunodeficiency virus-infected patients with short-term secondary prophylaxis in the era of combination antiretroviral therapy. J Microbiol Immunol Infect. 2015 Jul 31.