INTRODUÇÃO
Recentemente foi descrita uma nova síndrome – síndrome autoimune/inflamatória induzida por adjuvantes (autoimmune/inflamatory syndrome induced by adjuvants - A.S.I.A.), que engloba várias condições clínicas – siliconose, síndrome da Guerra do Golfo, miofasceíte eosinofílica e fenómenos pós-vacinação. Este grupo carateriza-se por sinais e sintomas comuns induzidos pelo contacto com adjuvantes em indivíduos geneticamente susceptíveis.1,2 Por adjuvante entende-se uma substância capaz de induzir uma resposta imune sustentada, por vezes associada ao desenvolvimento de doenças autoimunes (ex.: silicone, alumínio).1,2
O silicone é utilizado de forma generalizada na indústria médica, tendo sido descrito inicialmente como um material imunologicamente inerte3. Atualmente, ainda que a sua associação a doenças autoimunes específicas (como a esclerose sistémica) seja controversa, defende-se a sua capacidade imunogénica desencadeando manifestações clínicas como artralgias, mialgias, fadiga, febre, presença de autoanticorpos e sintomas neurológicos, descritas em doentes a ele expostos. 4,5,6,7
Foram definidos critérios de diagnóstico para a síndrome A.S.I.A., sendo necessários 2 critérios major e um minor para obter o diagnóstico1.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, 47 anos, raça caucasiana. Sem antecedentes patológicos prévios ou familiares relevantes. Acidente de trabalho com enucleação do olho esquerdo em 1996 e colocação de prótese ocular de silicone. Efetuada substituição desta por nova prótese de silicone em 1997 por rejeição e em 2013 por infeção.
Em 1998 surgimento de tremor postural e cinético. Cerca de dois anos mais tarde, aparecimento de disartria e ataxia do membro inferior esquerdo de agravamento progressivo. Referenciado à consulta de Neurologia para investigação.
Ao longo dos anos de seguimento foram efetuados vários exames complementares. O estudo analítico efetuado revelou ANA 1/320 padrão mosqueado com anti SS-A e SS-B positivos. Hemograma, bioquímica sérica, coagulação, marcadores víricos e restante imunologia sem alterações. O estudo do líquido cefalorraquidiano não mostrou alterações (incluindo pesquisa de bandas oligoclonais) e o estudo genético de ataxias (ataxias espinocerebelosas 1,2,7 e 17, ataxia dentatorrubropalidoluisiana e ataxia de Friedrich) foi negativo. A ressonância magnética do neuroeixo (cerebral e medular) demonstrou “alargamento de alguns sulcos cerebelosos superiores bilateralmente e de modo simétrico, sem evidência de alterações de sinal do parênquima subjacente.” Eletromiografia também sem alterações. Efetuado estudo das glândulas salivares: ecografia sem alterações; biópsia com infiltrado linfoide discreto (focus score <1), cintigrafia das glândulas salivares e teste Schimmer normais. Anticorpos antineuronais negativos.
Em 2010 foi efetuado ciclo de metilprednisolona, sem melhoria. Iniciou fisioterapia e terapia da fala.
Referenciado à consulta de Medicina Interna – Doenças Autoimunes em 2014 para esclarecimento etiológico. Na avaliação, além das queixas neurológicas, referia fadiga e sono não reparador. Nega sintomas sicca, artralgias, mialgias, alterações cutâneas ou outros sintomas associados. Sem agravamento dos sintomas neurológicos desde que iniciou fisioterapia. Ao exame neurológico sumário apresentava disartria ligeira, oculomotricidade mantida (olho direito), dismetria da prova dedo-nariz de predomínio esquerdo e marcha sem apoio, de base alargada com ataxia à esquerda. Sem alterações ao restante exame objetivo. Repetido estudo analítico – ver tabela 1.
DISCUSSÃO
Na primeira observação do doente em consulta de Doenças Autoimunes, foi efetuada a revisão do caso e de todos os exames complementares disponíveis. Evidenciaram-se dois pontos importantes: por um lado o doente não cumpria critérios de doença autoimune; por outro sobressaía a existência de uma relação temporal clara entre a exposição a uma prótese ocular de silicone e o aparecimento das manifestações neurológicas. Esta relação temporal motivou a revisão da literatura em busca de dados que pudessem esclarecer a situação clínica do doente, surgindo a síndrome A.S.I.A., descrita em 2011 por Shoenfeld e colaboradores1. Dos critérios propostos para diagnóstico, os que se cumprem neste caso são os seguintes: critérios major: 1. relação temporal entre exposição a adjuvante e aparecimento de manifestações clínicas; 2. manifestações clínicas – fadiga/ sono não reparador e manifestações neurológicas; critérios minor: presença de autoanticorpos.
Apesar de se cumprirem os critérios necessários para o diagnóstico, alguns pontos merecem consideração. Em primeiro lugar, na literatura não estão descritos casos de A.S.I.A. associados a prótese ocular, sendo este o primeiro a referenciar esta possível associação. Em segundo lugar, a remoção da prótese de silicone com eventual resolução de sintomas, outro dos critérios de diagnóstico propostos e que permitiria estabelecer uma relação causal, não foi considerada neste doente dada a estabilidade das queixas neurológicas desde o início da fisioterapia e a presença de atrofia cerebelosa descrita na ressonância magnética cerebral. Por fim, não foi efetuada pesquisa de anticorpos anti-silicone nem biópsia da órbita, que também poderiam corroborar a existência de A.S.I.A.
A orientação deste doente passou pela manutenção da fisioterapia (que se mostrou eficaz no controlo de sintomas) e vigilância a longo prazo, dada a possibilidade de desenvolvimento de doença autoimune.
A descrição deste caso pretende demonstrar a dificuldade diagnóstica colocada por alguns doentes, que obrigam o internista a rever a literatura e a equacionar novos diagnósticos, e a relevância da colheita detalhada da história clínica, permitindo relacionar antecedentes com as queixas atuais.
Destaca-se também a importância de em doentes portadores de materiais exógenos, considerar a presença de A.S.I.A, pois a sua remoção, poderá ser curativa dos sintomas. O relato de casos clínicos e a sua inclusão no registo A.S.I.A.8 é fundamental para a melhor compreensão da associação entre silicone e autoimunidade.
Quadro I
Estudo analítico
Parâmetro | Valor |
(unidades) | (referência) |
Hemoglobina (g/dL) | 15,9 (13-18) |
Leucócitos (x10E3/uL) | 4,66 (3,8 – 10,6) |
Plaquetas (x10E3/uL) | 153 (150-440) |
Velocidade de sedimentação (mm) | 1 (0-15) |
Proteína C reativa (mg/dL) | 0,12 (0,01-0,5) |
Creatinina (mg/dL) | 0,6 (0,6-1,1) |
Autoanticorpos: | |
Anticorpos antinucleares | |
ANA | 1/320. (<1/80) Padrão mosqueado |
AntidsDNA (UI/mL) | <12.3 (0-30) |
Antigénios nucleares extraíveis | |
Anti-Sm (U/mL) | 1,47 (0-15) |
Anti-RNP (U/mL) | 0,51 (0-25) |
Anti SS-A (Ro) (U/mL) | 177,00 (0-15) |
Anti SS-B (La) (U/mL) | <200.00(0-15) |
Anti-Citoplasma do neutrófilo | |
ANCA | <1/40 (<1/40) |
Imunoglobulinas | Normal |
Complemento (C3 e C4) | Normal |
Função tiroideia (TSH e T4 livre) | Normal |
Marcadores víricos: VHB, VHC e HIV | Negativos |
Tabela 1. Estudo analítico
BIBLIOGRAFIA
1. Shoenfeld Y, Agmon-Levin N. “ASIA” – Autoimmune/inflammatory syndrome induced y adjuvants. J Autoimmun 2011; 36 (1): 1-3.
2. Perricone C, et al. Autoimmune/inflammatory syndrome induced by adjuvants (ASIA) 2013: unveiling the pathogenic, clinical and diagnostic aspects. J Autoimmun 2013; 1-16.
3. Carvalho JF, Barros SM, Branco JC. ASIA or Shoenfeld´s syndrome: highlighting different perspectives for diffuse chronic pain. Acta Rheumatol Port 2011; 36: 10-12.
4. Hennekens CH, et al. Self-reported breast implants and connective tissue diseases in female health professionals. A retrospective cohort study. JAMA 1996: 275(8):616-21.
5. Janowsky EC, Kupper LL, Hulka BS. Meta-analyses of the relation between silicone breast implants and the risk of connective tissue diseases. N Engl J Med 2000; 342(11)781-790. .
6. Hajdu SD, Agmon-Levin N, Shoenfeld Y. Silicone and autoimmunity. Eur I Clin Invest 2011; 41: 203-211.
7. Shoenfeld Y, Agmon Levin N. ASIA: A new way to put the puzzle together. The Rheumatologist 2011; 5: 27–32.
8. http://www.cmsri.org/for-physicians/