INTRODUÇÃO
Embora os eosinófilos sejam constituintes normais dos pulmões, existe um grupo heterogéneo de síndromes pulmonares eosinofílicos caracterizados por infiltrados pulmonares radiográficos associados a uma acumulação de eosinófilos no interstício pulmonar e/ou espaços broncoalveolares1, podendo resultar em sintomas respiratórios e/ou manifestações sistémicas.2
As causas conhecidas de eosinofília pulmonar incluem infeções (especialmente parasitárias), pneumonites induzidas por fármacos, drogas e toxinas inaladas, doenças sistémicas e aspergilose broncopulmonar alérgica. No entanto, frequentemente a etiologia é desconhecida.3,4
A análise do líquido de lavagem broncoalveolar (LBA) permitiu o reconhecimento de novas formas de doença pulmonar eosinofílica, nomeadamente na ausência de eosinofília periférica ou de níveis de IgE elevados.2,4,5
As pneumonias eosinofílicas, são doenças eosinofílicas pulmonares primárias, de etiologia desconhecida, que podem apresentar-se de forma aguda ou crónica, consoante a presença de sintomas tenha menos ou mais de 1 mês de evolução, respetivamente.
Os autores apresentam um caso de pneumonia eosinofílica aguda (PEA), discutindo-se o seu diagnóstico e tratamento.
CASO CLÍNICO
Doente do género feminino, de 70 anos de idade, aposentada, com antecedentes de hipertensão arterial e de neoplasia da mama direita submetida a tumorectomia e radioterapia adjuvante há cerca de 2 anos, não fumadora, medicada habitualmente com irbesartan/hidroclorotiazida, bisoprolol, ácido acetilsalicílico e letrozol.
Referenciada ao Serviço de Urgência (SU) por queixas de tosse seca persistente e irritativa, dispneia, toracalgia pleurítica, mal-estar geral e febre, com cerca de 15 dias de evolução.
Fora observada inicialmente pelo seu médico assistente e, por quadro clínico-imagiológico compatível com pneumonia adquirida na comunidade (PAC), medicada com amoxicilina/clavulanato e azitromicina, sem melhoria.
Por persistência das queixas, com agravamento da tosse e da dispneia, e surgimento de sudorese noturna, foi então encaminhada ao SU. Negava início recente de outros fármacos. Sem contexto epidemiológico, viagens recentes ao estrangeiro ou exposições ambientais suspeitas. Sem história de atopia, asma, patologia pulmonar ou otorrinolaringológica.
Ao exame objetivo na admissão encontrava-se febril (37,9ºC), normotensa, taquicardica, taquipneica e com saturação periférica de oxigénio (SpO2) de 86% em ar ambiente, apresentando murmúrio vesicular rude e crepitações inspiratórias bibasais na auscultação pulmonar.
Analiticamente evidenciava leucograma e fórmula leucocitária normais, proteína C reativa (PCR) 11,27mg/dL, D-dímeros 1285ng/mL, e, lactato desidrogenase (LDH), marcadores de necrose miocárdica, ureia e creatinina normais. Gasometricamente em ar ambiente demonstrava insuficiência respiratória hipoxémica (PaO2 59,0mmHg, Sat.O2 82,7%, PaO2/FiO2=280mmHg).
Na teleradiografia torácica observavam-se opacidades heterogéneas arredondadas à esquerda (Fig.1-A). Realizou tomografia computorizada (TC) torácica que mostrou que as consolidações eram de facto difusas e bilaterais (Fig.1-B). Foi também excluído tromboembolismo pulmonar (Fig.1-C).
Assumindo PAC recidivante foi decidido internamento e iniciou antibioterapia empírica de largo espectro com cefotaxima.
Após 7 dias de terapia, apesar de evidenciar alguma melhoria da tosse, mantinha febrícula, e as alterações auscultatórias, gasométricas e radiográficas (Fig.2-A).
No estudo laboratorial complementar manteve leucograma normal, sem eosinofília periférica, velocidade de sedimentação (VS) e PCR elevadas; a LDH, enzimas hepatocolestáticas, electroforese das proteínas séricas, CA15-3 e enzima conversora da angiotensina, entre outros parâmetros, estavam dentro dos valores de referência.
Todos os estudos microbiológicos, assim como as serologias infeciosas e o estudo de autoimunidade foram negativos.
Solicitou-se então realização de broncofibroscopia (Fig.3) com a amostra do LBA a revelar alveolite eosinofílica (28%) e linfocítica (16%), tendo sido negativo o estudo microbiológico e a pesquisa de células malignas.
O exame parasitológico das fezes e a ecografia abdominal para exclusão de foco parasitário foram negativos. O nível de IgE total era normal (24,6UI/mL). O estudo funcional respiratório foi normal, com exceção de diminuição da capacidade de transferência alvéolo-capilar.
Discutido o caso com Pneumologia, e admitindo PEA, iniciou-se prednisolona 60mg/dia, assistindo-se a uma significativa e progressiva melhoria clínica, analítica e imagiológica. A doente teve alta após 7 dias de corticoterapia, sem queixas respiratórias, sem alterações gasométricas e com melhoria radiográfica evidente (Fig.2-B).
Foi reavaliada 2 semanas depois, em ambulatório, mantendo-se assintomática e com normalização radiológica (Fig.4-A). Iniciou-se então descontinuação lenta e progressiva da corticoterapia ao longo de 6 meses, sem recorrência durante ou após a suspensão. Mantém seguimento regular em consulta de Medicina Interna com normalidade clínica, analítica e radiográfica (Fig.4-B).
DISCUSSÃO
A pneumonia eosinofílica aguda (PEA) foi descrita pela primeira vez em 19896 por Allen et al e, embora a sua etiologia permaneça desconhecida, apresenta atualmente critérios de diagnóstico bem definidos (Tabela 1).1,7
Apesar da sua prevalência ser desconhecida, é uma doença rara, existindo menos de 200 casos relatados na literatura.7
Pode surgir em indivíduos de qualquer idade, afetando os homens cerca de duas vezes mais que as mulheres, e não está associada a asma.1,7
Apesar da fisiopatologia da PEA ainda não ser bem compreendida, pensa-se que resulta de danos causados pela infiltração de eosinófilos no parênquima pulmonar e libertação de substâncias tóxicas, tais como proteínas básicas, mediadores lipídicos, e citocinas.3,4,7 Alguns autores têm descrito uma relação com o início recente de hábitos tabágicos ou exposição a altas concentrações de poeiras.8 Outros relatos na literatura associam alguns casos de PEA com o uso de determinados fármacos, principalmente minociclina, daptomicina, nitrofurantoína e venlaflaxina, entre outros que podem ser consultados em www.pneumotox.com.9
Manifesta-se por um quadro clínico idêntico ao de uma PAC, sendo a insuficiência respiratória frequente na apresentação, por vezes com necessidade de suporte ventilatório.4,5,7
Caracteriza-se por um inicio abrupto e rápido dos sintomas, usualmente entre 1 a 7 dias. No entanto, em alguns casos, os sintomas podem desenvolver-se mais lentamente até aos 30 dias.4,7 Os sintomas predominantes são inespecíficos e podem incluir tosse seca, dispneia e dor torácica pleurítica. Outros sintomas menos comuns incluem cansaço, mal-estar geral, mialgias, desconforto abdominal e sudorese noturna.1,7
No exame físico identifica-se frequentemente febre, taquipneia e taquicardia. A auscultação pulmonar pode ser normal, revelar crepitações nas bases ou distribuídas difusamente por ambos os campos pulmonares e, ocasionalmente, roncos na expiração forçada, mas não sibilância.1,7,10
Embora os doentes possam apresentar leucocitose, em contraste com os outros síndromes pulmonares eosinofílicos, a PEA não está habitualmente associada a eosinofília periférica.7 A VS, a PCR e os níveis de IgE podem estar elevados, mas não são específicos.1,7
A radiografia do tórax pode mostrar apenas opacidades reticulares subtis, no entanto, frequentemente, desenvolvem-se infiltrados alveolares e/ou intersticiais distribuídos difusamente por ambos os campos pulmonares, com predomínio no eixo broncovascular e septos interlobulares.7 A TC torácica é sempre anormal, revelando opacidades reticulares ou irregulares em vidro-despolido, dispersas bilateralmente.1 Pequenos derrames pleurais podem surgir em até dois terços dos doentes.1,4
Na fase aguda, o estudo funcional respiratório, pode revelar um padrão ventilatório restritivo ou diminuição da capacidade de difusão.7
Além de um quadro clínico e radiológico sugestivo, a chave para estabelecer o diagnóstico de PEA está na realização de broncofibroscopia e análise do LBA.1,7,11 Não esquecendo a contribuição do LBA para a exclusão de uma causa infeciosa ou neoplásica, a avaliação da celularidade do líquido do LBA é diagnóstica de PEA quando presente alveolite eosinofílica superior a 25%, desde que igualmente presentes os restantes critérios diagnósticos.1-4,7
A realização de biópsia pulmonar, que constitui ainda o gold standard, geralmente não é necessária, uma vez que vários estudos têm demonstrado uma boa correlação entre a celularidade do LBA e a caracterização histológica do interstício pulmonar.1,11, 12
Devemos considerar sempre a PEA como um diagnóstico de exclusão, sendo por isso necessária uma pesquisa exaustiva de outras causas de eosinofília pulmonar.4,7,10-11
No caso apresentado, foram devidamente excluídas infeção bacteriana, parasitária ou fúngica, fármacos relacionados, atopia e asma. A ausência de sinais ou sintomas de envolvimento multissistémico, bem como a ausência de eosinofília no sangue periférico ou de alterações no estudo imunológico, permitiram excluir também outras patologias raras como o síndrome de Churg-Strauss ou o síndrome hipereosinofílico idiopático. Satisfizeram-se assim os critérios para diagnóstico de PEA.
A terapêutica com corticóides em altas doses é atualmente recomendada como primeira linha de tratamento, devendo, contudo, ser iniciada apenas depois de uma causa infeciosa ter sido excluída.5,7,13
Na literatura médica, verifica-se uma significativa variabilidade nos protocolos de tratamento recomendados, no entanto, num estudo retrospetivo recente que incluiu a maior série de doentes alguma vez publicada, sugere-se que um tratamento de duas semanas pode ser suficiente.14 Não existe também uma dose padrão a para corticoterapia na PEA. Na literatura, a maioria dos doentes são tratados com prednisolona oral 40-60mg/dia, e em doentes com insuficiência respiratória grave é preferida metilprednisolona endovenosa 60-125mg de 6/6h, seguida de administração oral de prednisolona, iniciando-se depois redução progressiva da dose.4,5,7,14
O prognóstico é usualmente bom, sendo comum uma resposta rápida à corticoterapia com recuperação completa, e sem recidiva após suspensão da terapêutica.1,4,7,13
No caso descrito, pelo grau moderado do quadro clínico, optou-se pelo tratamento com prednisolona oral 60mg/dia, com excelente resposta clínica, analítica e imagiológica. A doente foi reavaliada após a alta hospitalar, e mantém ainda seguimento em consulta de Medicina Interna, tendo-se descontinuado de forma gradual a corticoterapia, sem recorrência. A resposta rápida aos corticóides e a ausência de recidiva ajudaram também na confirmação diagnóstica.
Assim, concluímos que, apesar de não ser frequente na prática clínica, a PEA deve estar presente nas hipóteses diagnósticas de causas de insuficiência respiratória hipoxémica aguda e febre, principalmente quando não há resposta inicial à antibioterapia, uma vez que possui um excelente prognóstico em razão da sua dramática resposta à corticoterapia.
Quadro I
Critérios diagnósticos de Pneumonia eosinofílica aguda.1,7
CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS DE PNEUMONIA EOSINOFÍLICA AGUDA |
Doença febril aguda com manifestações respiratórias com <1 mês de duração (habitualmente menos de 7 dias) |
Insuficiência respiratória hipoxémica (SpO2 <90% por oximetria de pulso ou PaO2 <60mmHg em ar ambiente, ou PaO2/FiO2 ≤300mmHg) |
Infiltrados pulmonares difusos bilaterais na radiografia do tórax |
Lavado broncoalveolar com eosinofília >25% ou Biópsia pulmonar com infiltrado eosinofílico |
Ausência de infeção parasitária, fúngica ou outra |
Inexistência de outras causas conhecidas de eosinofília pulmonar |
Resposta clínica rápida e completa à terapêutica com corticóides |
Ausência de recidiva após interrupção da corticoterapia |
Figura I

Teleradiografia do tórax da admissão (A), onde se identificava hipotransparência heterogénea, esboçando aspeto nodular, à esquerda. A TC torácica (B) revelou que, embora na radiografia aparentassem ser unilaterais, as consolidações eram de facto multifocais e bilaterais, com broncograma aéreo. A administração de contraste permitiu excluir tromboembolismo pulmonar agudo (C).
Figura II

Evolução radiológica no internamento. (A) Teleradiografia do tórax após 7 dias de antibioterapia mostrando a persistência dos infiltrados pulmonares bilaterais. (B) Teleradiografia torácica à data de alta, depois de 7 dias de corticoterapia, evidenciando já alguma melhoria radiográfica.
Figura III

Broncofibroscopia. (A) Traqueia centrada, móvel, sem desvio, de calibre conservado e mucosa de aspeto normal, com presença de secreções mucosas. As árvores brônquicas direita (B) e esquerda (C), apresentavam conformação geral normal, mucosa de aspeto normal e orifícios brônquicos segmentares/subsegmentares permeáveis com esporões cortantes. Foram colhidas secreções brônquicas e realizado lavado broncoalveolar, para estudo microbiológico e citológico.
Figura IV

Evolução radiológica em ambulatório. (A) Reavaliação radiográfica 2 semanas após a alta hospitalar, completados 21 dias de corticoterapia, já sem demonstrar alterações pulmonares. (B) Teleradiografia torácica recente, cerca de um ano depois do internamento e 6 meses após a interrupção da corticoterapia, sem alterações.
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