INTRODUÇÃO
Segundo Samel e Chu1, as doenças bolhosas constituem um campo complexo da Medicina, apresentando-se raramente como toxidermias, na maior parte dos casos sob a forma de Pênfigo, Penfigoide Bolhoso ou Dermatose Bolhosa IgA Linear.
De acordo com Hertl e Sitaru2, o Pênfigo distingue-se pela presença de auto-anticorpos que induzem acantólise, destruindo as pontes intercelulares na epiderme e provocando as características bolhas moles, com um pico de prevalência na idade adulta e atingimento preferencial das mucosas. Pelo contrário, consoante Leiferman3, o Penfigoide Bolhoso, com predomínio nos doentes idosos, é a doença bolhosa imunologicamente mediada mais comum, sendo caracterizada pela presença de auto-anticorpos contra antigénios específicos nos hemidesmossomas (BP180 e BP230), localizados na junção derme-epiderme, provocando, desta forma, uma rotura completa da ligação entre epiderme e derme. Ainda de acordo com o mesmo autor4, esta doença bolhosa surge habitualmente na forma de bolhas tensas, localizadas no tronco e nas porções flexoras dos membros, que rompem ao fim de alguns dias, deixando lesões erosivas ou crosta. Habitualmente não existe envolvimento mucoso e o sinal de Nikolsky é negativo. Ocasionalmente o Penfigoide Bolhoso pode surgir com erupções pruriginosas e não específicas, como placas e pápulas eritematosas e urticariformes. Em termos histopatológicos o Penfigoide Bolhoso caracteriza-se por uma bolha subepidérmica e eosinofilia. Já a imunofluorescência direta demonstra a deposição de IgG e C3 na membrana basal, sendo este o critério obrigatório consensual para o diagnóstico definitivo de Penfigoide.5,6
De acordo com a evidência científica, a Dermatose Bolhosa IgA Linear é também uma doença bolhosa autoimune, mais rara, que pode surgir em qualquer idade. Manifesta-se de forma mais heterogénea, habitualmente como pápulas e placas urticariformes, vesículas e bolhas tensas, com arranjo policíclico, e com atingimento do tronco, membros, nádegas, virilhas e períneo. O prurido varia em termos de intensidade. Pode ocorrer também afetação das membranas mucosas7,8. Conforme descrito por Kneisel6, o diagnóstico é feito através de imunofluorescência direta, onde se detetam predominantemente depósitos de IgA lineares. Caracteriza-se por lesões anelares, com formação de bolhas subepidérmicas, com microabcessos. Existe também presença de auto-anticorpos contra a desmogleína 1 e 3.
O presente caso demonstra uma possível toxidermia, sob a forma de Penfigoide Bolhoso, após a toma de gliclazida, pretendendo demonstrar a complexidade das manifestações sistémicas possíveis aquando da toma de um fármaco.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 83 anos de idade, caucasiana, com antecedentes de diabetes mellitus tipo 2 com manifestações renais, cardiopatia isquémica, hipertensão essencial e linfadenopatias múltiplas (retroperitoneais, inguinais e crurais) em estudo.Três dias antes iniciou um novo esquema para controlo da diabetes mellitus, com substituição da metformina por gliclazida, após o que notou um eritema pruriginoso generalizado, com predomínio no tronco, região inguinal e membros inferiores acompanhado por ardor intenso no local das lesões e de mal-estar geral. Três dias após o surgimento das lesões, em consulta de Dermatologia, admitiu-se toxidermia associada à toma de gliclazida, tendo as lesões evoluído em intensidade e gravidade, com atingimento pruriginoso palmo-plantar.
Dada a manutenção e gravidade da sintomatologia, a doente recorreu dois dias mais tarde ao hospital onde foi admitida a hipótese de Penfigoide Bolhoso induzido por fármacos pelo surgimento de bolhas tensas, de conteúdo seroso, e placas eritematosas generalizadas, com fundo pruriginoso (Figuras 1 a 5). A doente foi internada para controlo sintomático e evolutivo, tendo sido realizada biópsia lesional, na região inguinal, que demonstrou coleções de neutrófilos na fenda subepidérmica, com infiltrado rico em eosinófilos e neutrófilos na restante derme, lesões estas compatíveis com Penfigoide Bolhoso, variante vesicular, ou com Dermatose Bolhosa IgA Linear. O surgimento deste padrão morfológico como toxidermia é raro, mas, dado o contexto epidemiológico da doente, não pôde ser excluído. Foi também iniciado um esquema de prednisolona, hidroxizina e corticoide tópico.
A doente teve alta para o domicílio ao nono dia de internamento, após regressão de algumas lesões e do prurido e cessação da sintomatologia associada.
DISCUSSÃO
Dado o quadro clínico da doente e as suas características epidemiológicas, além dos resultados histopatológicos, a hipótese diagnóstica de dermatose bolhosa causada pela gliclazida foi assumida como mais provável.
Apesar de incomum, o Penfigoide Bolhoso pode ser induzido ou despoletado por vários fármacos, estando, neste último caso, latente até à toma dos mesmos (Tabela 1). De acordo com Leiferman4, os fármacos que mais se associam a este tipo de reações dermatológicas são aqueles que na sua composição possuem grupos tiol ou que são metabolizados em compostos que possuam esta substância. Este tipo de reações, induzidas pelo tiol, podem ocorrer até um ano após o início da terapêutica. Geralmente, as lesões não atingem a mucosa e podem estar associadas a anticorpos antinuclear numa pequena percentagem, podendo inclusivamente regredir espontaneamente4. Ainda segundo o mesmo autor, o Penfigoide Bolhoso induzido por fármacos pode apresentar-se de duas maneiras distintas: pode cursar de forma aguda e limitada, com resolução após retirada do fármaco, ou de forma crónica, comportando-se como uma doença autoimune dermatológica, tendo sido, neste último caso, precipitada pela toma e não provocada por ela. Segundo Stavropoulos, Soura e Antoniou9, o atingimento cutâneo do Penfigoide Bolhoso induzido por fármacos abrange membros superiores e inferiores e tronco maioritariamente, sob a forma de vesículas ou bolhas tensas, em base inflamatória. Uma vez mais, este tipo de reações tipicamente ocorre em doentes idosos.
Apesar de estarem previstas reações dermatológicas como efeito adverso da toma de sulfonilureias, não está descrito nenhum caso de Penfigoide Bolhoso ou de dermatose bolhosa a IgA após toma de gliclazida. Contudo, foi descrito um caso de Penfigoide Bolhoso induzido pela vildagliptina (inibidor da dipeptidil peptidase-4)10, estando o doente a fazer concomitantemente mais dois antidiabéticos orais, gliclazida e metformina, durante um período de 37 meses. Além disso, até hoje, foram descritos sete casos de Penfigoide Bolhoso após exposição à vildagliptina e três induzidos pela sitagliptina9,11, embora permaneça por esclarecer o mecanismo exato que leva ao aparecimento das lesões após a toma do fármaco. Pondera-se assim que as gliptinas possam modular a resposta imunológica da membrana basal da epiderme através de alterações nas suas propriedades antigénicas.9
Por outro lado, de acordo com Hall e Rao, a Dermatose Bolhosa IgA Linear induzida por fármacos possui um maior espectro de apresentações possíveis, desde lesões penfigoides até herpetiformes7. Neste tipo de Dermatose Bolhosa não surgem lesões mucosas ou conjuntivais. De acordo com evidência científica recente6,7, a vancomicina é o fármaco que mais provoca esta dermatose, seguida de lítio, captopril e diclofenac, sendo a remissão espontânea frequente assim que se suspende o fármaco. Segundo Stavropoulos, Soura e Antoniou, as lesões surgem frequentemente no tronco, extremidades inferiores, face, períneo e virilhas. O surgimento destas observa-se normalmente entre uma e duas semanas após início da toma de um determinado fármaco, com regressão entre duas e sete semanas após cessar9. Hall e Rao também apontam Dermatose Bolhosa IgA Linear como reação às sulfonilureias7.
No entanto, é de salientar que, não obstante a casualidade temporal entre o surgimento das lesões e a toma de gliclazida, não se consegue rejeitar por completo uma eventual relação entre a dermatose e a existência de linfadenopatias múltiplas (retroperitoneais, inguinais e crurais), detetadas por tomografia axial computorizada. Vários autores referem que tanto o Penfigoide Bolhoso como a Dermatose Bolhosa IgA Linear podem surgir como manifestações cutâneas de doenças sistémicas, nomeadamente de algumas neoplasias, como as doenças linfoproliferativas, sendo que a Dermatose Bolhosa IgA Linear possui uma relação mais forte com estas3,7. Segundo Vassileva8, cerca de 5% dos casos de Dermatose Bolhosa IgA Linear estão assim associados a malignidade, maioritariamente sob a forma de doença linfoproliferativa linfoide e não linfoide. Contudo, permanece por esclarecer uma relação causal clara. De igual forma, segundo vários autores12,13, permanece por averiguar se o Penfigoide Bolhoso gera de facto um risco aumentado para malignidade apenas em certos tipos de cancro, como o renal e o linfoide, ou se a idade avançada em que estas lesões surgem se mantém como fator confundidor. Desta forma, é aconselhável vigilância e investigação de neoplasia nos casos de dermatose bolhosa grave ou recorrente.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem a amabilidade do Departamento de Medicina Interna e de Dermatologia do Hospital da Luz na elaboração deste caso clínico.
Direito à privacidade e consentimento informado: os autores declaram que nenhum dado que permita a identificação do doente aparece neste artigo.
Quadro I
Tabela 1. Alguns dos fármacos mais associados ao surgimento de Penfigoide Bolhoso (adaptada de Stavropoulos, Soura e Antoniou, com consentimento dos autores)9
Antibióticos | Antihipertensores antiarrítmicos | Vacinas | Anti-inflamatórios não-esteroides |
Actinomicina Amoxicilina Ampicilina Cefalexina Ciprofloxacina Cloroquina Dactinomicina Levofloxacina Penicilina Rifampicina | Bloqueadores dos canais de cálcio (amlodipina e nifedipina) Inibidores da Enzima Conversora da Angiotensina (captopril, enalapril e lisinopril) Beta bloqueantes (nadolol e practolol) Antagonistas da angiotensina II (losartan) | Influenza H1N1 Toxóide tétano HZV Vacinas hexavalentes combinadas | Diclofenac (tópico) Ibuprofeno |
Salicilatos | Diuréticos | Antidiabéticos | Outros |
Aspirina Sulfasalazina | Furosemido Espironolactona | Sitagliptina Vildagliptina | Clonidina Erlotinib Fluoxetina Gabapentina Interleucina-2 Levetiracetam Metildopa Terbinafina Omeprazol Psoralenos com UVA Risperidona Sulfonamida |
Figura I

Fig. 1 - Lesões no membro inferior esquerdo no primeiro dia de internamento
Figura II

Fig. 2 - Lesões na região inguinal no quarto dia de internamento
Figura III

Fig. 3 - Lesões no membro inferior esquerdo no sexto dia de internamento
Figura IV

Fig. 4 - Lesões nos membros inferiores no sexto dia de internamento
Figura V

Fig. 5 - Lesões nas virilhas no sexto dia de internamento
BIBLIOGRAFIA
1. Samel, Andrew; Chu C-Y. UpToDate [Internet]. Drug Eruptions. 2014 [cited 2016 Sep 5]. Available from: http://www.uptodate.com/contents/drug-eruptions
2. Hertl M, Sitaru C. UpToDate [Internet]. Pathogenesis, clinical manifestations, and diagnosis of pemphigus. 2016 [cited 2016 Sep 5]. Available from: http://www.uptodate.com/contents/pathogenesis-clinical-manifestations-and-diagnosis-of-pemphigus
3. Leiferman K. UpToDate [Internet]. Epidemiology and pathogenesis of bullous pemphigoid and mucous membrane pemphigoid. 2016. Available from: http://www.uptodate.com/contents/epidemiology-and-pathogenesis-of-bullous-pemphigoid-and-mucous-membrane-pemphigoid
4. Leiferman K. UpToDate [Internet]. Clinical features and diagnosis of bullous pemphigoid and mucous membrane pemphigoid. 2016 [cited 2016 Sep 4]. Available from: http://www.uptodate.com/contents/clinical-features-and-diagnosis-of-bullous-pemphigoid-and-mucous-membrane-pemphigoid
5. Kershenovich R, Hodak E, Mimouni D. Diagnosis and classification of pemphigus and bullous pemphigoid. Autoimmun Rev. 2014;13(4–5):477–81.
6. Kneisel A, Hertl M. Autoimmune bullous skin diseases. Part 1: Clinical manifestations. J Dtsch Dermatol Ges [Internet]. 2011;9(10):844–56; quiz 857. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21955378
7. Hall RP, Rao CL. UpToDate [Internet]. 2016 [cited 2016 Sep 4]. p. Linear IgA bullous dermatosis. Available from: http://www.uptodate.com/contents/linear-iga-bullous-dermatosis
8. Vassileva S, Drenovska K, Manuelyan K. Autoimmune blistering dermatoses as systemic diseases. Clin Dermatol [Internet]. 2014;32(3):364–75. Available from: http://dx.doi.org/10.1016/j.clindermatol.2013.11.003
9. Stavropoulos PG, Soura E, Antoniou C. Drug-induced pemphigoid: A review of the literature. J Eur Acad Dermatology Venereol. 2014;28(9):1133–40.
10. García M, Aranburu MA, Palacios-Zabalza I, Lertxundi U, Aguirre C. Dipeptidyl peptidase-IV inhibitors induced bullous pemphigoid: a case report and analysis of cases reported in the European pharmacovigilance database. J Clin Pharm Ther [Internet]. 2016;41(3):368–70. Available from: http://doi.wiley.com/10.1111/jcpt.12397
11. Béné J, Jacobsoone A, Coupe P, Auffret M, Babai S, Hillaire-Buys D, et al. Bullous pemphigoid induced by vildagliptin: A report of three cases. Fundam Clin Pharmacol. 2015;29(1):112–4.
12. Ruocco E, Wolf R, Caccavale S, Brancaccio G, Ruocco V, Lo Schiavo A. Bullous pemphigoid: Associations and management guidelines. Clin Dermatol [Internet]. 2013;31(4):400–12. Available from: http://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0738081X13000084
13. Balestri R, Magnano M, La Placa M, Patrizi A, Angileri L, Tengattini V, et al. Malignancies in bullous pemphigoid: A controversial association. J Dermatol [Internet]. 2016;43(2):125–33. Available from: http://doi.wiley.com/10.1111/1346-8138.13079