Introdução
A mefedrona (4-metilmetcatinona) é um dos derivados sintéticos da catinona, um alcalóide da planta
Catha edulis. Foi sintetizada pela primeira vez em 1928, contudo o seu uso recreativo só começa em 2003. A molécula interfere com receptores serotoninérgicos e dopaminérgicos. Pode ser consumida por via oral, intranasal, rectal e endovenosa. A última tem maior potencial de intoxicação. A farmacocinética está estabelecida em modelos animais, carecendo estudos em seres humanos. É reportado um pico de acção aproximadamente 2 horas após a administração e a persistência do efeito durante 2 a 3 horas.
1 Os consumidores, maioritariamente homens, procuram os efeitos estimulantes, o aumento da líbido e a desinibição. A aquisição é facilitada pelo baixo preço quando comparada com outros estimulantes, como metanfetaminas ou cocaína, e pela venda legal sob a designação de aditivo para plantas nomeadamente “Bloom”. As manifestações de intoxicação são fundamentalmente cardiovasculares, neurológicas e psiquiátricas. A componente cardiovascular manifesta-se com taquicardia, hipertensão arterial e vasoconstrição periférica e pode complicar com arritmias e enfarte agudo do miocárdio. A semiologia neuropsiquiátrica mais comum inclui agitação, alucinações, ansiedade, insónia, cefaleia e midríase. Pode implicar convulsões e enfarte e/ou hemorragia cerebral. Entre outros sinais encontramos hiperventilação e diaforese. É frequente verificar-se hemoconcentração, azotemia, disnatrémias, hipocaliémia, rabdomiólise e acidose metabólica. Os óbitos atribuíveis à intoxicação por mefedrona isolada são raros, sendo mais frequente em associação com outros psicofármacos ou no contexto de suicídio durante psicose alucinatória.
2,3,4,5 Os casos que apresentamos demonstraram, além do quadro típico simpaticomimético e alucinatório, sintomas característicos de excitação extrapiramidal no contexto de intoxicação por mefedrona.
Caso Clínico 1
Reporta-se um doente do sexo masculino, 35 anos, desempregado, sem antecedentes relevantes, encaminhado para o serviço de urgência por agitação e heteroagressividade. Consumira 0,5 g de mefedrona por via endovenosa. Do exame físico destaca-se: agitação, mucosas secas, diaforese, taquipneia, pressão arterial 160/83 mm Hg, frequência cardíaca 110 batimentos por minuto e temperatura timpânica de 36,8º C e midríase. O hemograma, o estudo bioquímico e gasimétrico eram normais. A pesquisa de tóxicos (anfetaminas, barbitúricos, benzodiazepinas, canabinóides, cocaína, opióides e tricíclicos) no sangue e urina foi negativa. O electrocardiograma de 12 derivações mostrava taquicardia sinusal. A tomografia computorizada cranioencefálica não demonstrava lesões. Iniciou soro fisiológico a 120 ml/h. Verificou-se normalização dos sinais vitais e do estado de consciência em 3 horas. Contudo iniciou acatisia dos membros, predominantemente distal, simétrica, mais exuberante nos membros superiores poupando face e pescoço. Os reflexos osteotendinosos apesar de presentes apresentavam resposta motora exagerada. A força muscular e sensibilidade estava mantida. Os sinais de Kernig e Brudnizki estavam ausentes. As funções dos pares cranianos estavam conservadas. Os movimentos cessaram com 2,5 mg de biperideno intramuscular. Ocorreu recuperação completa do quadro tóxico 12 horas após a admissão. Teve alta com medicado com olanzapina 10 mg e seguimento em consulta de Psiquiatria.
Caso Clínico 2
Apresenta-se o caso de um doente do sexo masculino, 27 anos, desempregado, com antecedentes conhecidos de infecção crónica pelo vírus da hepatite C e tabagismo. Não efectuava medicação regular. Foi trazido ao serviço de urgência por alucinações visuais, agitação e tremor com 20 minutos de evolução. O quadro é precedido em uma hora por injecção de 1g endovenosa de mefedrona. À observação, apresentava-se inquieto e diaforético com pressão arterial 173/94 mm Hg, frequência cardíaca de 130 batimentos por minuto e temperatura timpânica 37,9º C. Demonstrava verborreia, discurso persecutório e alucinações visuais. As pupilas encontravam-se midriáticas. Também mostrava hiperreflexia e movimentos discinéticos involuntários dos quatro membros afetando pescoço e face. Não se identificou outras alterações ao exame objetivo. O hemograma era normal. O estudo bioquímico evidenciava: creatinina 1,13 mg/dl, proteína C reativa 1,61 mg/dl e creatinina cinase 4.350 U/l. A gasimetria de sangue arterial em ar ambiente mostrava: pH 7,30 pCO
2 30 mmHg, pO
2 99 mmHg, sO
2 100%, HCO
3- 15 mmol/l, e lactato 2,7mmol/l. A pesquisa sanguínea e urinária de tóxicos foi negativa. O electrocardiograma sugeria taquicardia sinusal com tripleto de complexos ventriculares prematuros. A tomografia computorizada cranioencefálica não evidenciava lesões. O estudo do líquor tinha valores dentro da normalidade. Iniciou sedação com diazepam 5mg endovenosa titulada conforme a resposta, paracetamol 1000mg endovenoso e hidratação endovenosa com soro fisiológico a 120 ml/hora. Com 2 hora de terapêutica, o doente estava mais calmo e os sinais vitais normalizaram, contudo a discinesia persistia. Foi administrado 2,5 mg de biperideno endovenoso com resposta imediata. Foi repetido por via intramuscular de 4 em 4h para controlo da discinesia. Ocorreu recuperação completa do quadro tóxico após 18 horas, correspondendo normalização da função renal e da rabdomiólise. Os estudos serológicos foram negativos à excepção da hepatite C. Foi internado em unidade psiquiátrica, depois seguido em consulta de Psiquiatria cumprindo olanzapina 10mg e alprazolam 0,5mg. Não exibiu novos episódios ou sequelas.
Discussão
A manifestação de sinais de excitação extrapiramidal durante a intoxicação por derivados da catinona é rara.
2 A literatura é omissa quanto a discinesia associada a consumo isolado de mefedrona. Apenas está relatada hiperreflexia e hipertermia associadas a consumo conjunto de mefedrona e metanfetamina.
6 Existem casos reportados de movimentos coreoatectóides com outras catinonas nomeadamente 3,4-metilenedioxipirovalerona e naftilpirovalerona.
7,8 Está documentada a acção das catinonas, incluindo a mefedrona, nas vias dopaminérgicas e noradrenérgicas centrais em modelos animais.
9 Assim, é colocada a hipótese desta ser a etiologia da sintomatologia. Certos autores, admitem o efeito potenciador de acidose metabólica e uremia.7 Perante a intoxicação por catinonas, não é reconhecido um antídoto específico, remetendo a literatura para medidas suporte com primazia para a protecção da via aérea, a normalização dos sinais vitais e a hidratação para prevenção da lesão renal. Uma abordagem terapêutica baseada em sedação com benzodiazepinas ou haloperidol, controlo tensional com bloqueio alfa-adrenérgico, redução da temperatura com medidas de arrefecimento e dantroleno bem como normalização de disnatremias foi proposta.
10 Contudo, carece de avaliação de efectividade. É reconhecido o efeito terapêutico do biperideno, um antagonista muscarínico central e periférico, em quadros extrapiramidais provocados por fármacos como antipsicóticos e antieméticos.
11 Contudo, a literatura é omissa quanto à utilização de biperideno no curso de intoxicação por catinonas. O sucesso na resolução das discinesias nestes casos pode sugerir o biperideno como opção terapêutica. Recomenda-se porém prudência uma vez que o biperideno pode agravar o quadro simpaticomimético, e que nos casos os sinais simpaticomiméticos estavam extintos aquando da administração. Uma generalização desta atitude só poderá acontecer aumentando a evidência que a suporte pelo que se sugere a realização de estudos neste campo.
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