Introdução:
A doença de Still, relatada em crianças por George Still em 1897, foi descrita pela primeira vez em adultos por Bywaters em 1971. A doença de Still do adulto (DSA) é uma patologia rara, auto-inflamatória e poligênica, tipicamente caracterizada por uma tríade clínica (picos febris diários, exantema cutâneo evanescente, artrite) e bioquímica (hiperferritinemia, leucocitose com neutrofilia e alteração das enzimas hepáticas séricas). A sua etiologia e fisiopatologia permanecem por esclarecer. (1) Estudos epidemiológicos revelaram uma incidência baixa (0,16/100.000 pessoas em França), com uma distribuição bimodal (15-26 e 36-46 anos) e uma igual distribuição por géneros. (2) A sua evolução pode apresentar três padrões: monocíclico ou autolimitado – padrão sistêmico, habitualmente associado a um único “flare” e remissão completa em 2 a 4 semanas (19% a 44% dos casos); intermitente ou policíclico – recorrência de manifestações sistémicas ou articulares com períodos de remissão da doença de 2 semanas a 2 anos (10-41%); crónico – mais frequente, com predomínio do padrão articular (35-67 % casos). (3)
Caso Clínico:
Uma mulher de 32 anos, de raça branca, natural e residente em Coimbra, foi admitida no Serviço de Medicina Interna A do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra por febre, exantema cutâneo e elevação das enzimas hepáticas no soro. Referia, desde há duas semanas, febre (38,5-39ºC) e odinofagia, pelo que foi medicada com amoxicilina-clavulanato. Dois dias depois, recorreu a um Serviço de Atendimento Complementar, por apresentar exantema maculopapular não pruriginoso localizado ao nível do pescoço, dos antebraços e dos membros inferiores que resolveu com corticoterapia endovenosa. Teve alta com indicação para suspender amoxicilina-clavulanato e iniciar azitromicina. No dia seguinte e após observação pelo seu Médico de Família, retomou amoxicilina-clavulanato. Apesar da antibioterapia, manteve odinofagia e astenia e 5 dias depois recorreu ao Serviço de Urgência doutro Hospital de onde teve alta medicada com claritromicina e deflazacort. Por reaparecimento de exantema cutâneo com as características já descritas foi observada no Serviço de Urgência do Hospital da Universidade de Coimbra. Negava outra sintomatologia como artralgia ou artrite. Não referia antecedentes pessoais ou familiares relevantes, nem hábitos medicamentosos para além do contraceptivo oral e dos fármacos que lhe foram prescritos. Negou alergias medicamentosas.
Ao exame objetivo, apresentava peso (54,8 kgs) e estatura (1,60 m) normais, encontrava-se hemodinamicamente estável (TA 105/70 mmHg) mas taquicárdica (pulso regular - 110 bpm) e febril (temperatura axilar = 38 ºC), com exantema maculopapular não pruriginoso localizado ao nível dos antebraços e dos membros inferiores, sem adenopatias ou massas palpáveis. Analiticamente apresentava leucocitose com neutrofilia, elevação dos enzimas hepáticas, com padrão misto (AST 375 U/L, ALT 402 U/L, GGT 186 U/L, FA 180 U/L) e elevação de LDH (1141 U/L). A telerradiografia do tórax e a ecografia abdominal não evidenciaram alterações.
Foi orientada para consulta de Medicina Interna com indicação para suspender antibioterapia e manter deflazacort. Em consulta de reavaliação mantinha a sintomatologia e apresentava agravamento da enzimologia hepática, pelo que foi internada. À admissão foram colocadas as seguintes hipóteses de diagnóstico: quadro infecioso, tipo mononucleosíco ou hepatite viral aguda; doença autoimune sistémica (lúpus eritematoso sistémico); hepatite autoimune; doença linfoproliferativa.
Durante o internamento apresentou, em média, dois picos febris diários, mas sem reaparecimento do exantema cutâneo. No estudo complementar destacava-se o aumento crescente dos valores séricos dos enzimas hepáticas (AST 689 U/L, ALT 792 U/L, GGT 379 U/L, FA 328 U/L e LDH 1657 U/L) e hiperferritinemia acentuada (42.210 ng/ml), sem citopenia. As hemoculturas, urocultura e serologias (Tabela 1) foram negativas, assim como o estudo para doenças autoimunes sistémicas ou hepáticas. Tendo em conta as manifestações clínicas e a hiperferritinemia, na ausência de infeção, doença autoimune ou neoplásica, foi colocada como principal hipótese de diagnóstico a doença de Still do adulto. A doente foi medicada com prednisolona (1mg/kg/dia, ev), verificando-se resolução clínica e laboratorial (Fig. 1 e 2). Manteve-se em consulta de Medicina Interna, tendo-se reduzido e posteriormente suspendido a corticoterapia, encontrando-se atualmente livre de doença.
Discussão:
Na ausência de infeção, doença autoimune ou neoplásica e na presença de quadro febril arrastado, odinofagia, exantema maculopapular, alteração da enzimologia hepática e hiperferritinemia assumiu-se o diagnóstico de DSA. A doente preenchia ainda os critérios necessários para o diagnóstico de DSA segundo as classificações atualmente reconhecidas: Classificação de Yamaguchi (4) (Tabela 2) (sensibilidade 92-96% e especificidade 92%) e Classificação de Fautrel (Tabela 3) (inclui a ferritina glicosilada como critério de diagnóstico o que lhe confere uma especificidade ~98,5 %). (5)
Tal como verificado no presente caso clínico, a hiperferritinemia tem sido reportada em cerca de 70 % dos doentes com DSA (6). Especula-se que estes valores resultem da activação de citocinas pró-inflamatórias, como a interleucina 1 e a interleucina 6, que estimulam a transcrição de ferritina (7), assim como da sua libertação pelos hepatócitos lesados (8). Os valores de ferritina sérica têm sido utilizados na monitorização da DSA uma vez que se correlacionam com a actividade da doença (8). Apesar de não ter sido possível quantificar o grau de ferritina glicosilada (valor de referência na população saudável 50-80% vs 20-50% em presença de doença inflamatória), na DSA esperava-se um valor persistentemente inferior a 20 % (quer na fase activa, quer após remissão). (9). Salienta-se, contudo, que apesar de não ser patognomónico da DSA (7), uma elevação de ferritina sérica superior a pelo menos 5 vezes o valor de referência, associado à fracção de ferritina glicosilada inferior a 20%, apresenta uma especificidade de 92,9% e uma sensibilidade de 43,2% (10).
Apesar de ser uma doença com prognóstico relativamente benigno, valores de ferritina > 10.000 ng/ml foram associados à síndrome hemofagocítica e ao desenvolvimento de complicações sistémicas, que conduzem frequentemente a um desfecho fatal. (11) A nossa doente apresentava valores alarmantes de ferritina (42.000 ng/dl), traduzindo uma intensa actividade da doença. Felizmente, não desenvolveu citopenia, alteração da coagulação, organomegalias ou insuficiência de órgão que poderiam alterar drasticamente o prognóstico.
Em Outubro de 2014 foi descrita a síndrome de hiperferritinemia com o intuito de sensibilizar os clínicos para as quatro patologias, entre as quais a DSA, (e ainda a síndrome de ativação macrofágica, manifestação catastrófica da síndrome antifosfolipídica e o choque séptico) que podem cursar com altos níveis de inflamação (hiperferritinemia e tempestade de citocinas), falência multiorgânica e evolução fatal, apesar de corticoterapia e imunossupressão agressiva, carecendo atualmente de diagnóstico rápido e de armas terapêuticas para travar esta fatalidade. (12)
Destacamos ainda que nos últimos anos vários trabalhos têm associado à DSA e à hiperferritinemia o aparecimento tardio (meses a anos) de doença maligna. As doenças linfoproliferativas (linfomas, leucemias e síndrome mielodisplásica), carcinoma da mama, do pulmão e da tiróide estão entre as neoplasias mais frequentemente associadas. (13 ,14)
No Serviço de Medicina Interna A do CHUC, no período de 01/2002 a 08/2016, foram identificados, em análise retrospectiva, cinco outros casos de DSA (Tabela 4). Previamente a este período, existem apenas dois casos descritos (15). O estudo da síndrome febril de origem indeterminada foi o motivo principal de internamento. Na nossa série verificou-se um predomínio do género feminino (62,5%), sendo a idade média de diagnóstico 31 anos. No follow-up destes doentes (5 a 11 anos) não foram identificados casos de neoplasia.
A nossa doente apresentava vários fatores preditivos de doença sistémica (e não articular) na DSA, nomeadamente: febre, elevação da enzimologia hepática e das proteínas de fase aguda (1). Iniciou corticoterapia e apesar de estar atualmente livre de doença, é necessário manter vigilância em consultas regulares, pelos motivos expostos acima.
Conclusões:
A hiperferritinemia, apesar de não ser patognomônica da DSA, traduz um estado de hiperinflamação, corrobora o diagnóstico, correlaciona-se com a atividade da doença e permite a monitorização da resposta à terapêutica. Tanto a hiperferritinemia como a DSA têm sido associadas ao aparecimento de tumores malignos. A DSA é uma doença rara, mas deve ser evocada perante síndromes febris, após exclusão de etiologia infeciosa, autoimune e neoplásica.
Quadro I
Tabela 1 – Serologias solicitadas e resultados
Serologia | Resultado | Serologia | Resultado |
Citomegalovírus Vírus Epstein Bar | Infeção no passado | Legionella Spp. Chlamidia Spp. Ricketsia Spp. Coxiella Spp. Borrelia Spp. Brucella Spp. Screening sífilis | Negativo |
Vírus hepatite A Vírus hepatite B | Imune | ||
Vírus hepatite C | Sem contato prévio | ||
Parvovírus HIV 1 e 2 | Negativo |
Tabela 1 – Serologias solicitadas e resultados
Quadro II
Classificação de Yamaguchi
Classificação Yamaguchi |
Critérios Major: |
Febre ≥ 39 ºC intermitente, ≥ 1 semana de evolução; Artralgias ou artrite ≥ 2 semana de evolução; Rash cutâneo, evanescente; Leucocitose (≥10 000/μL) com neutrofilia (>80 %) |
Critétrios Minor: |
Odinofagia; Linfadenopatia desenvolvimento recente; Hepatomegalia ou esplenomegalia; Alteração enzimologia hepática (aminotransferases e LDH); Anticorpo antinuclear e factor reumatóide negativo |
Critérios de Exclusão: |
Infeção; Doença neoplásica; Doença autoimune |
Diagnóstico: 5 critérios sendo pelo menos 2 major |
Tabela 2 – Classificação Yamaguchi, adaptada Yamaguchi et al, J Rheumatol 1992;19:424-30
Quadro III
Classificação Fautrel
Classificação Fautrel |
Critérios Major: |
Febre ≥ 39 ºC intermitente; Artralgias; Rash eritematoso evanescente; Odinofagia; Polimorfonucleares ≥ 80 %; Ferritina glicosilada ≤ 20 % |
Critétrios Minor: |
Rash maculopapular; Leucocitose (≥10 000/μL) |
Diagnóstico: 4 critérios major ou 3 critérios major + 2 critérios minor |
Tabela 3 – Classificação Fautrel, adaptada de Fautrel et al, Medicina (Baltimore) 2002;81:194-200
Quadro IV
Tabela 4 – Características dos doentes com DSA diagnosticados no Serviço de Medicina Interna A do CHUC
Caso | Idade/género | Motivo internamento | Ferritina (ng/ml) | DSA | Neoplasia |
1 | 44/M | S. febril + poliartralgias | 1617 | Vários flares | Não |
2 | 60/M | S. febril + alteração enzimas hepáticas | 3401 | Sem inf. | Sem inf. |
3 | 36/F | S. febril + alteração enzimas hepáticas | 706 | Vários flares | Não |
4 | 28/F | S. febril + exantema urticariforme + poliartralgia | 1650 | Vários flares | Não |
5 | 26/M | S. febril + exantema urticariforme + poliartralgia | 9771 | Episódio único | Não |
6 | 30/F | (1997) S. febril | - | - | Sem inf. |
7 | 65/F | (1997) S. febril + poliartralgia | - | - | Sem inf. |
Características dos doentes com DSA diagnosticados no Serviço de Medicina Interna A do CHUC (Género: M – Masculino; F - Feminino)
Figura I

Resposta bioquímica da enzimologia hepática após corticoterapia
Figura II

Monitorização da ferritina após corticoterapia
BIBLIOGRAFIA
1 –Jamilloux Y, Gerfaud-Valentin M, Henry T, Séve P. Treatment of adult-onset Still´s disease: a review. Ther Clin Risk Manag.2015;11:33-43
2 – Magadur-Joly G,Billaud E,Barrier JH,Pennec YL,Masson C,Renou P,et al. Epidemiology of adult Still´s disease: estimate of the incidence by a retrospective study in west France. Ann Rheum Dis.1995;54:587-90
3 – Fautrel B. Adult-onset Still disease. Best Pract Res Clin Rheumatol. 2008;22:773-792
4 - Yamaguchi M, Ohta A, Tsunematsu T, Kasukawa R, Mizushima Y, Kashiwagi H, et al. Preliminary Criteria for Classification of Adult Still’s Disease. J Rheumatol. 1992;19:424-430
5 – Mahfoudhi M, Gorsane I, Shimi R, Turki S, Abdallah T. Int J Clin Med. 2015;6:716-724
6- Ohta A, Yamaguchi M, Tsunematsu T, Kasukawa R, Mizushima H, Kasiwagi H, et al. Adult Still´s disease: A multicentre survey of Japanese patients. J Rheumatol. 1990;17:1058-1063.
7 - Pouchot J, Vinceneux P. La maladie de Still de l’adulte: Diagnostic, évolution et pronostic, pathogénie et traitement de la maladie de Still de l’adulte. Presse Med. 2004;33:1019-1025
8 - Akritidis N, Giannakakis I, Giouglis T. Ferritin levels and response to treatment in patients with Adult Still´s disease (letter). J Rheumatol. 1996;23:201.
9 - Vignes S, Le Moel G, Fautrel B, Wechsler B, Godeau P, Piett JC. Percentage of glycosylated serum ferritin remains low throughout the course of adult onset Still´s disease. Ann Rheum Dis. 2000;59:347-350.
10 - Fautrel B, Le Moel G, Saint-Marcoux B, Taupin P, Vignes S, Rozenberg S, et al. Diagnostic Value of Ferritin and Glycosylated Ferritin in Adult Onset Still’s Disease. J Rheumatol. 2001;28:322-329
11 - Arlet JB, Le TH, Marinho A, Amoura Z, Wechsler B, Papo T, Piette JC. Reactive haemophagocytic syndrome in adult-onset Still´s disease: a report of six patients and a review of the literature. Ann Rheum Dis. 2006;65:1596-1601.
12 – Rosário C, Shoenfeld Y. The hyperferritinemic syndrome. IMAJ. 2014;16:664-665.
13 – Sun NZ,Brezinski EA,Berliner J,Haemel A,Connolly MK,Gensler L,et al. Updates in adult-onset Still disease: Atypical cutaneous manifestations and associations with delayed malignancy. J Am Acad Dermatol.2015 Aug;73(2):294-303
14 –Esper RC, Pérez CP, Mendoza A, Márquez J, Maldonado R, Ayala C, et al. Ferritina y síndrome hiperferritinémico. Su impacto en el enfermo grave; conceptos actuales. Rev. Asoc. Mex. Med. Crít. Ter. Intensiva. 2015;29:157-166
15 – Alves H, Simão A, Leitão J, Crespo J, Maia G, Almiro E, et al. Dois casos de doença Still do adulto. Acta Reuma Port.1994;XIX:83-93