Introdução
A Doença de Still do Adulto é uma doença sistémica caracterizada por febre elevada, rash evanescente, odinofagia, fadiga e artrite frequentemente acompanhada de hépato-esplenomegalia e poliserosite1. É uma doença que afeta ambos os sexos2, sendo nalgumas séries mais predominante no sexo feminino3,4,5,6,7. Tem dois picos de incidência, um entre os 15 e os 25 anos e outro entre os 36 aos 46 anos de idade2. Não havendo quaisquer dados laboratoriais ou imagiológicos específicos, o diagnóstico é clínico e de exclusão8. O tratamento inicial é baseado no grau e severidade da doença e o tratamento subsequente depende da resposta clinica à terapia inicial.
Caso Clínico
Doente NSRV, de 26 anos de idade, sexo feminino. Sem antecedentes pessoais relevantes. Medicada em ambulatório com anti-concetivo oral.
Recorreu ao seu médico assistente por quadro de febre alta (39ºC) de predomínio vespertino acompanhada de rash cutâneo caracterizado por máculas de cor salmão, coalescentes, disseminadas, não pruriginosas, que não poupavam as palmas das mãos nem a planta dos pés, envolvendo o tronco, membros superiores e inferiores e que desaparecem com a febre, com 1 semana de evolução. Foi medicada com anti-histamínico.
Por não apresentar melhoria e surgimento de odinofagia com poli-artralgias recorreu ao Serviço de Urgência (SU) tendo alta medicada com Doxiciclina por suspeita de Ricketsiose/febre escaronodular. Por persistência dos sintomas durante mais de 1 semana e mialgias intensas sobretudo a nível da cintura escapular e membros superiores, volta a recorrer ao SU tendo ficado internada com diagnóstico de síndrome febril a esclarecer.
Negava queixas respiratórias, cardíacas, gastrintestinais ou génito-urinárias, contacto com animais ou viagens recentes.
À data da admissão ao exame objetivo encontrava-se vígil, orientada, colaborante, com bom estado geral, sinais vitais estáveis, salientando-se exantema não pruriginoso atingindo a região lombar, coxas e mãos.
Por suspeita de Ricketsiose manteve terapêutica com Doxiciclina. Ao 2º dia de internamento a doente desenvolve rash cutâneo pruriginoso imediatamente após administração de Metamizol de Magnésio para controlar a febre. Foi medicada com Hidrocortisona 100mg (dose única) e Hidroxizina 25mg, com alívio sintomático.
Efetuou vários exames complementares de diagnóstico, nomeadamente análises para diagnóstico de foco infecioso e de doença autoimune.
Verificaram-se parâmetros inflamatórios elevados, com leucocitose de 20,75 x10^9/L e neutrofilia 87.7%, proteína C reativa (PCR) 24,30 mg/dL, hemoglobina 13,3 g/dL, velocidade de sedimentação 74 mm/h e elevação das transaminases com fosfatasa alcalina 117 UI/L, Gama-glutamil transferase 60 U/L, aspastate aminotransferase 232 U/L, alanina aminotransferase 471 U/L e lactato desidrogenase 614 UI/L. Doseamento de ferritina muito elevada, de 5644,0 µg/L.
Título de Weil-Felix – OXK positivo (1/320), sendo restantes serologias todas negativas. Exames bacteriológicos sem isolamento microbiológico. Ecocardiograma sem vegetações endocárdicas e TC toraco-abdómino-pélvico sem adenopatias nem alterações patológicas. Anticorpos de autoimunidade também foram negativos, nomeadamente anticorpos antinucleares e anti-DNA.
Ao 6º dia de internamento face à clinica e não se registando melhoria, mantendo febre vespertina acompanhada de rash cutâneo não pruriginoso, artralgias nos punhos e tornozelos, admitiu-se o diagnóstico de Doença de Still do Adulto. Iniciou Prednisolona 1mg/Kg/dia (60mg/dia) e parou antibioterapia. Verificou-se apirexia durante 48 horas, melhoria das queixas álgicas e desaparecimento do eritema cutâneo.
Ao 3º dia de terapêutica com Prednisolona na dose supracitada, reiniciou febre (1 pico de 39.5ºC) acompanhado de rash cutâneo no tronco e membros, diferente do previamente observado, agora com prurido associado. Por suspeita de reacção alérgica interrompeu a corticoterapia. Por a doente apresentar predominantemente queixas de dor articular e rash cutâneo urticariforme, iniciou Naproxeno 500mg 2id para controlo das queixas de poliartralgias, e Hidroxizina 25mg 2id para controlar as queixas de prurido. O doseamento de IgE foi de 11.8 UI/mL (valor referencia <165).
Apesar da terapêutica com AINE a doente manteve febre, embora em níveis mais baixos, eritema cutâneo ainda exacerbado e sinais de lesão hepática. Dado o fato de a doente apresentar a doença numa forma moderada, decidiu-se reiniciar de novo Prednisolona, mas em dose reduzida (40mg/dia, cerca de metade da dose recomendada para o peso - 0.65 mg/kg/dia), mantendo Naproxeno para alívio das queixas dolorosas articulares. Ao 3º dia verificou-se melhoria clinica significativa com apirexia mantida, sem rash nem poliartralgias, associado a melhoria analítica gradual do valor sérico de ferritina em perfil descendente bem como dos parâmetros inflamatórios e evolutivamente dos valores de função hepática. Manteve a dose de Prednisolona referida (40 mg/dia) durante 1 mês, conservando ausência de queixas a nível das dores articulares, consistentemente apirética e sem desencadear reação alérgica, pelo que suspendeu-se Naproxeno e iniciou desmame progressivo de Prednisolona.
Discussão
A corticoterapia é amplamente usada em várias patologias pelo seu efeito anti-inflamatório e imunossupressor. Dada esta característica parece paradoxal existirem reações alérgicas ou de hipersensibilidade aos corticoides sendo difícil de distinguir entre uma reação de hipersensibilidade e a detioração da própria doença para a qual foram prescritos9.
De fato, as reações de hipersensibilidade à corticoterapia sistémica são uma entidade rara. Estudos revelam que estas reações podem ocorrer em mais de 0.1% dos casos de administrações endovenosas e que não parece haver relação com a doença reumatológica subjacente10,11. Além disso, existe tendência para uma maior incidência quando há história prévia de exposição a corticoides quando comparado com grupos de controlo. Outro fator de risco é a hipersensibilidade a AINEs9, que a doente apresentou após administração de Metamizol.
Como explica Vatti RR et all., existem dois tipos de reações de hipersensibilidade: reações imediatas, que tipicamente ocorrem após 1 hora da administração; e as reações tardias, que ocorrem num tempo superior a 1 hora desde a administração. O último grupo é o mais frequente, onde estão incluídos os corticoides endovenosos, como a hidrocortisona, tópicos e inalatórios. As reações imediatas são mais raras e surgem após a administração de corticoides orais, como a prednisolona, endovenosos ou intra-articulares9.
Clinicamente têm várias manifestações, dependendo da via de administração, duração, estrutura química ou dose. Variam entre reações de hipersensibilidade do Tipo I, na forma de anafilaxia, ou tipo IV como as reações tardias. Especificamente, as reações aos corticoides sistémicos (sejam endovenosos ou via oral) são habitualmente do tipo anafilático, ou seja, não mediado por IgE, originando urticaria generalizada, pieira, dispneia, angioedema, hipotensão ou dor abdominal9.
No caso clinico desta doente, apesar de referirmos queixas urticariformes ao 3º dia de Prednisolona 1mg/kg/dia, ressalta-se a dificuldade em distinguir um exantema da reação alérgica ou do agravamento da doença. O doseamento sérico da IgE foi dentro dos valores de referência, sugerindo uma reação não mediada por IgE.
Para o tratamento da doença de Still do Adulto que se apresenta com atividade ligeira está indicado o uso de AINEs. Para a atividade moderada, tal como surgimento de febre alta, poli-artralgias debilitantes, ou sinais de atingimento de órgão alvo, está indicado o uso de corticoterapia para o controlo da sintomatologia associada a AINE. Está também indicada quando a sintomatologia persiste durante semanas apesar do tratamento com AINEs. No caso desta doente seguiram-se as indicações da literatura. Iniciou-se, portanto, Prednisolona na dose de 0.5 a 1 mg/kg/dia consoante a severidade da doença. Quando a resposta é inadequada, o uso de Metotrexato aparece como a melhor escolha para o controlo inicial da doença e para a fase refrataria da doença reserva-se o uso de terapêutica biológica com agentes bloqueadores da interleucina-1 (anakinra) ou bloqueador da interleucina-6 (tocilizumab)12.
Como método de abordagem e tratamento da doente os autores decidiram iniciar uma dose de Prednisolona reduzida (0.65 mg/kg/dia) obtendo-se bons resultados, com apirexia ao 3º dia de administração e controlo da dor, e sem desencadear qualquer reação alérgica.
Face à clinica sugestiva de alergia a corticoterapia, a abordagem através do drug challenge é um método eficaz9,13.
BIBLIOGRAFIA
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