INTRODUÇÃO
A fasciolíase hepática é causada por parasitas da classe Trematoda, entre os quais a Fasciola hepatica. O seu ciclo de vida necessita quer de um hospedeiro intermediário, o molusco Lymnaea truncatula (vulgo caracol de água), que surge junto de pequenos cursos de água, lagos ou acumulações de água parada, quer de um hospedeiro definitivo, habitualmente um herbívoro que, ao alimentar-se naqueles locais, passa a ser o reservatório da doença e a libertar os ovos dos parasitas nas fezes.1,2 O ser humano é um hospedeiro acidental, sendo contaminado ao ingerir plantas aquáticas ou semi-aquáticas cruas, como o agrião, ou ao beber água contaminada com as formas enquistadas do parasita, as metacercárias.1,2
Após a ingestão, a parede da metacercária é dissolvida pelos sucos gástricos, ocorrendo a libertação da larva que, através da parede duodenal, atinge o peritoneu e perfura a cápsula de Glisson.1 Os parasitas migram através do parênquima hepático com invasão e fixação nas vias biliares, onde atingem a fase adulta em três meses. 1,3,4
A fasciolíase existe em todos os continentes: a Organização Mundial de Saúde estima que pelo menos 2,4 milhões de pessoas em todo o mundo estão infetadas, com os casos reportados a aumentar mundialmente, incluindo na Europa,5-6 com novos casos detetados em regiões não endémicas.6-8 Portugal é descrito tanto como zona de alta endemicidade, como local onde a doença é rara, com prevalência reportada de 3%.1,3,6
Após ingestão dos parasitas, ocorre um período de incubação (dias a meses) geralmente assintomático.
A fase aguda/hepática ocorre um a três meses após a ingestão.4,9 Corresponde à migração das metacercárias do duodeno até ao parênquima hepático, ocorrendo hepatite por destruição celular à sua passagem, causando dor abdominal, febre, emagrecimento, hepatomegalia e urticária. A eosinofilia é proeminente, podendo ser o único sinal de alarme. Analiticamente, cursa com citólise, anemia e leucocitose. Podem ser detetadas nesta fase hemorragia subcapsular e necrose hepática.9 Como o parasita ainda não elimina ovos, a confirmação diagnóstica depende de provas serológicas.1,4
Na fase crónica/biliar, que ocorre em três a quatro meses, o parasita aloja-se nas vias biliares. 1 O quadro típico consiste em astenia, anorexia, emagrecimento, dor abdominal intermitente, icterícia, colestase e hiperbilirrubinemia. A eosinofilia está frequentemente ausente.1 A obstrução biliar intermitente e colangite provocadas pela Fasciola hepatica adulta parecem ser os principais mecanismos causadores de pancreatite aguda reportada em alguns casos.4,9 Nesta fase é possível proceder à identificação dos ovos do parasita. De realçar que com a exposição repetida podem ocorrer diferentes fases da doença simultanemante.1
CASO CLÍNICO
Descreve-se o caso de um homem de 68 anos, autónomo, com antecedentes de cardiopatia isquémica, que estaria assintomático até recorrer ao Serviço de Urgência em março por angioedema da língua de instalação súbita e causa desconhecida. Sem introdução de novos fármacos. Um mês depois retorna por epigastralgia isolada. Ao exame físico apresentava dor abdominal difusa à palpação, sem sinais de irritação peritoneal, sem outras alterações. Teve alta com analgesia. Regressa três dias depois por persistência de dor abdominal intermitente, febre e obstipação, sem outras queixas associadas. Referia consumo de agriões crus de forma esporádica. Ao exame objetivo, apresentava temperatura 37,8°C e dor à palpação do hipocôndrio direito. Os achados analíticos encontram-se na Tabela 1. A tomografia computorizada (TC) abdominopélvica revelou hipodensidades hepáticas não nodulares e microlitíase vesicular (Fig. 1) e a colangioressonância mostrou áreas mal definidas com hipersinal em T2 e restrição em difusão nos segmentos VII e VI com microlitíase vesicular (Fig. 2). Durante o internamento no serviço de Medicina Interna manteve dor abdominal intermitente. Dos exames efetuados destacam-se: vírus hepatotrópicos negativos; exame parasitológico de fezes negativo; hemoculturas negativas; imunoglobulina E elevada; negatividade das serologias para Leptospira, Borrelia, Giardia, Echinococcus; serologias positivas para Fasciola (Tabela 1). Foi medicado com triclabendazol 1000 mg em toma única com melhoria clínica (remissão da dor e febre) e analítica (resolução gradual dos parâmetros inflamatórios e da citocolestase – Tabela 1). Foi reavaliado em consulta com evolução favorável progressiva e sustentada, incluindo resolução da eosinofilia (Tabela 1 e Fig. 3). Meses depois foi admitido no SU por colecistite aguda litiásica, sendo submetido a colecistectomia laparoscópica sem intercorrências.
DISCUSSÃO
Num contexto clínico e epidemiológico suspeito, a confirmação do diagnóstico baseia-se na deteção de parasitas ou ovos nas fezes, bílis ou fluído duodenal e/ou em serologias positivas. Pelo grande espetro de doenças no diagnóstico diferencial (Tabela 2),9 o diagnóstico pode ser difícil em áreas não endémicas e habitualmente tardio, já que o quadro clínico pode ser confundido com outros distúrbios hepatobiliares e a doença nem sempre é comprovada pela deteção de ovos nas amostras fecais. Não só a libertação dos ovos é mais tardia e intermitente, como os métodos para o seu diagnóstico são complexos e pouco fiáveis e nem sempre se executam por rotina, mas apenas quando solicitados perante a suspeita clínica.1,4 Assim, amostras de fezes negativas não excluem o diagnóstico.
A serologia, fundamental para o diagnóstico na fase aguda (positiva após três semanas do início da doença), é também útil na fase crónica e na monitorização da resposta ao tratamento. Entre os vários testes disponíveis, incluem-se a prova de hemaglutinação indirecta com 96,9% de especificidade.1,4
Os exames imagiológicos podem ser normais ou evidenciar alterações sugestivas, como ocorreu neste caso. Na fase aguda podem detetar-se lesões hepáticas tortuosas hipodensas frequentemente subcapsulares (correspondentes aos túneis de progressão das larvas), hipoecóicas na ecografia ou hipodensas na TC; já na ressonância magnética as lesões podem ser hiperintensas em T2 e hipointensas em T1.7-9 Na fase crónica, a ecografia pode revelar dilatação das vias biliares e vermes adultos móveis no trato biliar.1,2,8 A colangiopancreatografia retrógada endoscópica (CPRE) também pode ter utilidade diagnóstica e terapêutica nesta fase.4,9 A TC é o exame mais útil na fase hepática; já a ecografia é mais vantajosa na fase biliar.9
O triclabendazol oral, na dose de 10 mg/kg em toma única, é o tratamento de escolha, já que apresenta 80-90% de eficácia contra parasitas adultos e imaturos, eficácia esta que advém da inibição da síntese da ultraestrutura de tegumento da Fasciola pelo seu metabolito sulfóxido.2,4,6,8 É rapidamente absorvido, sendo metabolizado no fígado e excretado na bílis.1 Se ocorrer falência do tratamento, a dose pode ser aumentada para 20 mg/kg em duas doses divididas entre 12-24h.1,6,10 Geralmente bem tolerado, tem como efeitos laterais mais comuns: náuseas, vómitos e dor abdominal.4 A abordagem cirúrgica e a CPRE reservam-se para situações complicadas e/ou resistentes à terapêutica.1
Não parece haver associação com o colangiocarcinoma, mas a litíase biliar é uma complicação possível, pois a presença de ovos ou fragmentos de parasitas favorece a formação de cálculos.1
Não existem dados na literatura sobre qual o tempo expectável para negativação dos testes serológicos e melhoria imagiológica, mas tanto a ecografia como a TC têm um papel na monitorização da evolução da doença,9 observando-se geralmente a involução completa das alterações imagiológicas.1
CONCLUSÃO
A doença caracteriza-se por um espetro clínico variável e um tropismo hepatobiliar, sublinhando-se a importância do contexto epidemiológico, sendo essencial esclarecer a permanência em zonas campestres e/ou viagens a áreas endémicas. Estudos realçam a emergência desta patologia, enfatizando o subdiagnóstico por desconhecimento ou ausência de suspeição da mesma. Essa razão, aliada aos sintomas inespecíficos, à evolução por fases e a um período de latência que pode ser prolongado, tornam o diagnóstico de fasciolíase um desafio. Os achados imagiológicos podem sugeri-lo, contudo continua a ser fundamental um quadro clínico sugestivo associado à confirmação por testes serológicos ou parasitológicos. Esta continua a ser uma patologia a incluir no diagnóstico diferencial das doenças hepáticas ou biliares e/ou pancreatites agudas associadas a eosinofilia.Quadro I
Tabela 1
Análise (Valor normal) | Resultado 15/3/2016 | Resultado 16/4/2016 | Resultado 19/4/2016 | Resultado 29/4/2016 | Resultado 31/5/2016 | Resultado 8/8/2016 | Resultado 21/10/2016 |
Hemoglobina (14-17,5 g/dL) | 13,4 | 13,3 | 14 | 12,8 | 11,8 | 13,9 | 14,4 |
Leucócitos (4400-11300/uL) | 7470 | 10210 | 14320 | 7830 | 8560 | 4590 | 8100 |
Neutrófilos (50-70%) | 3300 - 44,2% | 5620 - 55% | 5590 - 39% | 2630 - 33,6% | 3250 - 38% | 2480 - 53,9% | 5700 - 70,3% |
Eosinófilos (1-4%) | 1380 - 18,5% | 2330 - 22,8% | 5410 - 37,8% | 2870 - 36,6% | 3340 - 39% | 310 - 6,8% | 180 - 2,2% |
Plaquetas (150-350 x103/uL) | 117000 | 139000 | 92000 | 174000 | 125000 | 97000 | 99000 |
Velocidade de sedimentação (3-7 mm/h) | - | - | 75 | - | 73 | 11 | - |
Amilase (22-80U/L) | - | 87 | 71 | - | - | - | - |
Lipase (21-67 U/L) | - | 32 | 34 | - | - | - | - |
Alanina aminotransferase (<45U/L) | 27 | 91 | 165 | 41 | 17 | 25 | - |
Aspartato aminotransferase (<35 U/L) | 28 | 87 | 81 | 24 | 27 | 35 | - |
Gama-glutamil transpeptidase (GGT) (<55 U/L) | - | - | 60 | 87 | 87 | 50 | - |
Fosfatase alcalina (30-120 U/L) | - | - | 125 | 149 | 135 | 87 | - |
Bilirrubina total (0,3-1,2mg/dL) /direta (<0,2mg/dL) | - | 0,55/0,11 | 0,64/0,12 | 0,39/0,07 | 0,69/0,15 | 0,67/0,16 | - |
Proteína C reativa alta sensibilidade (<0,1 mg/dL) | 2,54 | 2,22 | 12,2 | 2,6 | 2,33 | 0,13 | - |
Anticorpos anti-Fasciola hepática (hemaglutinação) | - | - | 1/320 | 1/640 | negativo | - | - |
Resultados laboratoriais do caso clínico
Quadro II
Tabela 2
Diagnóstico diferencial |
Hepatites víricas |
Abcesso hepático |
Neoplasia primária ou secundária |
Colecistite/ Colangite litiásica |
Colangite esclerosante |
Colangite associada a VIH |
Rutura de quisto hidático |
Outras infeções parasitárias (ascaríase) |
Diagnóstico diferencial da fasciolíase hepática
Figura I

Tomografia computorizada abdominopélvica a revelar ao nível do segmento hepático VII e parte do segmento VI uma área não nodular de hipodensidade relativa nas fases arterial e venosa com cerca de 8,5 cm x 7 cm sem condicionar efeito de massa. A: corte transversal. B: corte coronal.
Figura II

Colangioressonância a mostrar áreas mal definidas com hipersinal em T2 e restrição em difusão nos segmentos VII e VI a maior medindo 3 cm com hipersinal mais intenso centralmente e sinal intermédio à periferia que poderiam corresponder a abcessos hepáticos em fase de liquefação.
Figura III

Tomografia computorizada abdominopélvica de controlo a mostrar áreas de hipodensidade no segmento VI com redução volumétrica significativa. A: corte transversal. B: corte coronal.
BIBLIOGRAFIA
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