Introdução:
A vitamina D é obtida principalmente através da exposição solar diária, e em menor grau da dieta, sob uma forma biológica inativa que necessita de conversão enzimática. É convertida no fígado a 25-hidroxivitamina D (25 (OH) D), a forma circulante, sendo posteriormente convertida no rim em 1,25-dihidroxivitamina D, que é a forma ativa 1. Não existe consenso sobre os níveis ótimos de vitamina D, considerando-se que pode existir défice abaixo de 20 ng/mL e intoxicação acima dos 150 ng/mL1. Sabe-se que a absorção de cálcio no intestino aumenta cerca de 45-65% em pessoas com níveis de vitamina D superiores a 30 ng/mL1. Entre as principais funções da vitamina D, destacam-se a absorção de cálcio e fósforo no intestino com aparente diminuição no risco de fracturas quando em níveis séricos muito elevados 5. Existem estudos que colocam a hipótese de um papel preventivo nas doenças oncológicas, uma vez que os tecidos cerebrais, prostáticos, mamários, do intestino e as células imunes apresentam receptores da vitamina D 1. Outras funções como o seu papel imunomodulador em doenças como a tuberculose 1, a diminuição do risco de desenvolver doenças como artrite reumatóide, esclerose múltipla e osteoartrose, e possivelmente contribuir para a prevenção da diabetes tipo 1 2têm vindo a surgir, mas os estudos que suportem esta hipótese foram inconclusivos 4.
Caso clinico:
Mulher de 86 anos de idade, parcialmente dependente nas actividades diárias. Encaminhada ao Serviço de Urgência com quadro de uma semana de evolução caracterizado por dor no hipocôndrio esquerdo, obstipação e recusa alimentar. Como doenças conhecidas, a salientar hipertensão arterial, hipertiroidismo e obesidade. Medicada com alprazolam 0.25mg bid, escitalopram 20mg id, clopidogrel 75mg id, propitiuracilo 50mg id e indapamida 1.5mg id. À admissão apresentava de positivo no exame físico: prostração, desorientação, mucosas desidratadas, distensão abdominal com dor à palpação. Analiticamente documentada lesão renal, com creatinina 3.4 mg/dL, potássio 2.5 mmol/L, sódio 162 mmol/L, fosfatase alcalina de 182 U/L, sem elevação de parâmetros inflamatórios. Gasimetricamente com pO2 110 (satO2 99%), pCO2 33, pH 7.55 (HCO3 25.7), lact 1.5. Tomografia computorizada (TC) de crânio e abdominal não revelaram alterações. Ficou em observação, sob correcção de alterações iónicas e com suspeita de insuficiência renal crónica agudizada por desidratação, com hipocaliémia e ileus paralítico.No dia seguinte iniciou quadro de tremores generalizados, com espasmos musculares compatíveis com tetania (carpopedal) e com vários episódios de crises convulsivas tónico-clónicas generalizadas, que cederam à terapêutica anticonvulsivante. Apresentava hipocalcémia grave (cálcio corrigido 5.3 mg/dL) e hipofosforémia (2.1 mg/dL), rabdomiólise com valores de creatinina quinase de 41.700 U/L e mioglobina de 5.000 ng/mL. Iniciadas medidas terapêuticas corretivas e de hidratação, nomeadamente correcção da hipocalcémia com gluconato de cálcio endovenoso, com resposta favorável. Posteriormente, admitida no Serviço de Medicina e da investigação etiológica da hipocalcémia foi documentado hiperparatiroidismo (paratohormona (PTH) elevada, de 734 pg/mL) e vitamina D indoseável. A doente recuperou totalmente após reposição de cálcio e vitamina D.
Discussão:
A deficiência grave de vitamina D (inferior a 10 ng/mL) caracteriza-se normalmente por fraqueza muscular, dor óssea e fraturas ósseas 2. Neste caso, assumimos que a principal sintomatologia (tetania) se devia à hipocalcémia resultante do défice da vitamina D 7, no entanto não podemos deixar de referir que o valor de sódio sérico também possa ter contribuído para o quadro convulsivo. Em relação às alterações iónicas, admitimos que o diurético (indapamida) possa ter tido um papel importante apesar da baixa dose (1.5mg).
As quedas e as fraturas nos idosos representam um problema de saúde pública atual, condicionam internamentos prolongados, perda de qualidade de vida e da independência nas atividades diárias. O papel da vitamina D nestes doentes, tem vindo a ganhar terreno, existem estudos que comprovaram que a suplementação em alta dose (800 UI/d) podem diminuir o risco de fractura da anca (30%) e fracturas não vertebrais (14%)5, no entanto os valores basais de vitamina D neste estudo não eram conhecidos em todos os doentes 3. Sabe-se que o nível óptimo de vitamina D pode variar de pessoa para pessoa, e que as doses diárias recomendadas são uma estimativa calculada a partir das necessidades da maioria da população4. Por outro lado, estas doses estimadas foram calculadas partindo do principio que não havia exposição solar 4. Em relação aos efeitos extra-esqueléticos, os estudos que existem ainda não são conclusivos4.
Conclusão:
Existem estudos nacionais que reflectem uma carência elevada na população portuguesa, em todas as idades e não compensada pela exposição solar 9. A vitamina D, o seu valor sérico ideal e os seus efeitos adversos, são um tema controverso. Com o envelhecimento da população, são cada vez mais frequentes as queixas inespecíficas, muitas vezes associadas a doença osteoarticular degenerativa, espelhando um défice de vitamina D, e que motivam a ida ao Serviço de Urgência.
Não existe consenso sobre os níveis óptimos de vitamina D. Sabe-se que estes são os necessários para os quais: a) a absorção de cálcio está optimizada; b) os níveis de PTH reduzidos (concentrações de PTH para as quais isto acontece ainda se mantém controversas4);c)é obtido o maior benefício musculo-esquelético, sendo atualmente recomendados valores superiores a 30ng/mL6.
A ideia de criar cutoffs para definir insuficiência de vitamina D levou a um rastreio excessivo e desadequado, bem como um sobre-tratamento sem benefício para os doentes, com consequente aumento dos custos associados à saúde4. O pedido de doseamento deve ser feito a doentes em risco(10) (obesos, idosos, medicados com fármacos que diminuam a absorção de vitamina D – fenítoina- com pouca exposição solar, institucionalizados ou com osteoporose)8ou que apresentem algum distúrbio do metabolismo do cálcio 4. Para indivíduos saudáveis, as principais organizações médicas não recomendam doseamento de vitamina D4. Em caso de défice de vitamina D, este deve ser tratado, com suplementação oral, acompanhada de suplementação de cálcio. A intoxicação por vitamina D é rara e usualmente corresponde a valores superiores a 150 ng/mL 9.
BIBLIOGRAFIA
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5) Bischoff-Ferrari HA, Willet WC, Oray EJ, et al. A pooled analysis of Vitamin D dose requirements for fracture prevention. N. Engl. J. Med 2012; 367:40-9;
6) Associação Portuguesa dos Médicos de Clinica Geral, Sociedade Portuguesa de Doenças Ósseas Metabólicas, Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo, Sociedade Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia. Declaração Portuguesa da Vitamina D. Lisboa; 2009;
7) Goltzman, David. Etiology of hypocalcemia in adults. UpToDate 2016. Disponivel em http://www.uptodate.com/online>. Acesso em: 27/12/2016;
8) Dawson-Hughes, Bess. Vitamin D deficiency in adults: Definition, clinical manifestations and treatment. UpToDate 2016. Disponivel em http://www.uptodate.com/online>. Acesso em: 27/12/2017;
9) Santos M.; Fernandes, V.; Mota F. Carência de Vitamina D numa População Hospitalar: Uma Fotografia pela Perspetiva Laboratorial. Acta Med Port 2015 Nov-Dec;28(6):726-734.
10)M.F. Holick,H.A. Bischoff-Ferrari,C.M. Gordon,D.A. Hanley,R.P. Heaney,M.H. Murad:Evaluation, treatment, and prevention of vitamin D deficiency: An Endocrine Society clinical practice Guideline; J Clin Endocrin Metab, 96 (2011)