INTRODUÇÃO
O escorbuto foi pela primeira vez descrito em 1747 pelo Dr. James Lind, cirurgião naval, comum entre os marinheiros da frota naval inglesa devido à dieta pouco diversificada. Atualmente trata-se de uma doença rara, mas relaciona-se com o nível socio-económico das populações, sendo mais prevalente nos países em desenvolvimento e nas populações idosas, com uma prevalência mundial variável 3.6-8.2% e com padrão decrescente ao longo dos anos.1,2,3,4
Define-se por um défice de vitamina C com doseamento <0.3mg/dL. A vitamina C está envolvida na síntese do colagénio, dos cortisol aldosterona bem como na absorção de ferro e metabolismo da tirosina, pelo que o seu défice compromete a capacidade de cicatrização, a função dos osteoblastos e fibroblastos, a formação de peças dentárias e conduz a estados de fragilidade vascular.1,2
O ser humano é incapaz de sintetizar esta vitamina, pelo que a dieta com baixo consumo de fruta (nomeadamente citrinos e frutos vermelhos) e vegetais é a principal etiologia. A OMS estabelece as necessidades diárias em cerca de 75-90mg/dia. A vitamina C é absorvida no intestino delgado e a semi-vida não excede os 30 minutos. A reserva corporal não excede os 1500mg.5,6,7
Os grupos em maior risco de carência são os idosos, os doentes com patologias psiquiátricas, alergias alimentares ou défices de absorção intestinal (doença celíaca ou doenças inflamatórias intestinais), alcoolismo ativo, estados de imunossupressão, nomeadamente neoplasia ativa, em programa de hemodiálise e diabetesmellitustipo 2 ou baixo nível socio-económico.5,7
Clinicamente apresenta-se normalmente após 8-12 semanas de consumo deficitário ou quando apresenta reserva corporal inferior a 350mg. O diagnóstico é sobretudo clínico, baseado na história alimentar e nos achados ao exame objetivo, e ainda que se deva requisitar o doseamento sérico de vitamina C, este não deve atrasar o início do tratamento. A resposta ao tratamento confirma o diagnóstico. O exame histopatológico demonstra hiperqueratose, acantose e eritrócitos extra-capilares com presença de hemosiderófagos.5,6,7
CASO CLÍNICO
Apresenta-se o caso de um doente do sexo masculino de 44 anos, caucasiano, desempregado e de condição socio-económica deficitária, que recorreu ao serviço de urgência por mal-estar geral e astenia com cerca de dois meses de duração, associados ao aparecimento de pápulas não pruriginosas dispersas por todo o tegumento cutâneo três dias antes de recorrer ao serviço de urgência. Referia ainda eritema e dor dos membros inferiores com alguns meses de evolução. Nega febre, consumo de novos fármacos ou contexto epidemiológico.
Tratava-se de um doente com história de diabetesmellitustipo 2, hábitos tabágicos (40UMA) e etanólicos (20g/dia) crónicos que suspendera cerca de um ano antes e alimentação pouco cuidada, sobretudo à base de hidratos de carbono. Medicado habitualmente com glibenclamida e metformina.
Na admissão apresentava-se FC 79bpm, PA 122/76mmHg, apirético, pápulas eritematosas de distribuição grosseiramente simétrica, milimétricas, algumas com crosta hemática, poupando apenas a face e couro cabeludo; ao nível dos membros inferiores rubor, calor e dor à palpação (Fig.1). Apresentava focos de hemorragia gengival, peças dentárias cariadas e hipertrofia gengival (Fig.2). Sem linfadenopatias, organomegálias ou alterações ao exame neurológico. Analiticamente, Hb 13,9g/dL, leucocitose com neutrofilia, PCR 22mg/dL, VS 49mm/h, aPTT e TP normais, AST 32UI/L, ALT 29UI/L, LDH 150UI/L, albumina 1.5mg/dL e HbA1c 13,5%. Inicialmente o doente foi internado com o diagnóstico de erisipela e foi instituída antibioterapia com flucloxaciclina. Foram ainda colocadas as hipóteses diagnósticas de vasculite sistémica autoimune ou secundária a síndrome para neoplásico ou infeção viral.
Nos primeiros dias de internamento, verificou-se agravamento clínico, com quadro de hematemeses e hematoquesias com compromisso hemodinâmico e redução da hemoglobina para 10,2g/dL tendo sido transferido para a unidade de cuidados intensivos. Realizou endoscopia digestiva alta e angiotomografia que revelaram sinais sugestivos de isquémia esofágica e intestinal (Fig. 3). Assim, na suspeita de processo vasculítico sistémico iniciou metilprednisolona (0,5mg/Kg). Os exames bacteriológicos, serologias virais (VHC, VHB, VIH) e estudo imunológico (ANA, ds-DNA, ANCA´s e complemento) revelaram-se negativos, eletroforese de proteínas normal, destacando-se apenas proteinúria de 1422mg/24h. Verificou-se ainda diminuição dos parâmetros inflamatórios (7000 leucócitos/L, PCR 7mg/dL). O resultado da biópsia cutânea realizada revelou alterações inespecíficas.
Com o início da corticoterapia verificou-se melhoria hemodinâmica, mas com melhoria muito lenta das lesões cutâneas sendo, nesta fase, identificáveis petéquias perifoliculares (Fig. 4) dispersas com a melhoria das restantes lesões, pelo que foi colocada a hipótese de escorbuto e iniciada terapêutica (1000mg/dia) com melhoria franca das lesões cutâneas. O doseamento de vitamina C confirmou posteriormente o diagnóstico (< 01mg/L, 2-15mg/L). Foi ainda repetida a endoscopia digestiva alta com melhoria das lesões e da friabilidade vascular.
Na consulta de reavaliação, dois meses depois do internamento, o doente manteve-se estabilizado, sem astenia ou novas queixas e com remissão das lesões cutâneas e a reavaliação da proteinúria de 24horas foi de 500mg/24horas em provável contexto de nefropatia diabética (Fig.5).
DISCUSSÃO
O escorbuto não é apenas uma doença histórica. Atualmente, com o agravamento das condições socio-económicas das populações bem como a mobilização frequente das pessoas entre países, nomeadamente provenientes de países em conflito com escassos recursos nutricionais, tem que ser considerada como diagnóstico diferencial mesmo em países desenvolvidos. Assim, o conhecimento das manifestações clínicas associadas é importante.
O doente apresentado tem alguns fatores de risco como o estado de imunossupressão associado à diabetesmellitusnão controlada e a condição socio-económica deficitária.
Clinicamente as manifestações desta patologia podem ser inespecíficas. Inicialmente os doentes apresentam-se com sintomas constitutivos como no presente caso, com mal-estar geral e astenia e, cerca de 1 a 3 meses depois, desenvolvem sinais de fragilidade vascular destacando-se no doente apresentado, petéquias, hemorragias perifoliculares, hipertrofia e hemorragias gengivais. Ainda que descritos, os quadros de discrasia hemorrágica grave são muito raros e pressupõe uma hipovitaminose crónica. Destaca-se ainda como manifestações dor óssea (devido a hemorragia do perióstio), edema periférico, mialgias, perda de peças dentárias, alterações do humor, cabelo quebradiço, hiperqueratose e pelos em saca-rolhas, febre elevada e convulsões e síndromesicca.8,9,10
Os exames complementares podem mostrar anemia multifatorial (decorrente das hemorragias, da diminuição da absorção de ferro e do consumo de ácido fólico deficitário ou mesmo com alguma hemólise) que se relaciona com a duração e a gravidade do escorbuto. Em um terço dos doentes pode verificar-se ainda leucopénia associada, normalmente com contagem de plaquetas normais.11
O diagnóstico diferencial do escorbuto é extenso, incluindo doenças hematológicas incluindo discrasias hemorrágicas, vasculites sistémicas, fármacos (nomeadamente hipocoagulante, antiagregante, anti-inflamatórios não esteroides) e outras alterações da fragilidade vascular (doença de Ehler-Danlos ou amiloidose).5,7,10No caso clínico que expomos, não havia história de novos fármacos, as serologias de VIH, VHB e VHC e a avaliação imunológica revelaram-se negativas, a TC tóraco-abdómino-pélvica excluiu presença de neoplasia e o hemograma e eletroforese de proteínas estavam dentro dos valores de referência.
O exame histopatológico revelou hiperqueratose, acantose e eritrócitos extra-capilares com presença de hemosiderófagos.3No presente caso o resultado anatomo-patológico foi pouco conclusivo, mas a biópsia cutânea após as primeiras 48horas do aparecimento das primeiras lesões cutâneas é muitas vezes inespecífica.
O tratamento é efetuado com ácido ascórbico oral, mas as dosagens não são consensuais na literatura. As doses mais frequentemente descritas são de 1-2g/dia durante 3 a 5 dias, seguidas de 500mg/dia durante uma semana, seguido de 100mg/dia durante 1 mês, esquema terapêutico que instituímos no nosso doente. Nas primeiras 24 horas após início de tratamento verificou-se melhoria da fadiga, letargia, dor, anorexia e confusão.7,11,12
As hemorragias (petéquias perifoliculares e gengivais, fragilidade vascular) melhoram em uma a duas semanas, as alterações pilosas normalizam às quatro semanas e as alterações ao nível das peças dentárias são permanentes como se verificou com o nosso doente. O agravamento transitório da proteinúria poderá enquadrar-se no quadro sistémico, assumindo-se, no entanto, a co-existência de nefropatia diabética. É importante também excluir a existência de outros défices alimentares, como de ácido fólico, vitamina B12, zinco ou ferro.5,7,12
O prognóstico é excelente com a suplementação vitamínica, associando-se a regressão total da sintomatologia.1
CONCLUSÃO
Os autores decidiram expor este caso para enfatizar o fato de o escorbuto não ser apenas uma doença do passado. As características clínicas, sobretudo numa fase inicial são inespecíficas e implicam um diagnóstico diferencial extenso. No entanto, apesar de ser uma doença incomum é uma hipótese diagnóstica a ter em conta sobretudo nas populações de maior risco, dada a conjuntura atual com diminuição do nível sócio-económico da população.
Queremos ainda sublinhar a importância de manter um alto índice de suspeição, dado tratar-se de uma doença de excelente prognóstico após a suplementação, mas que sem tratamento adequado pode colocar em risco a vida dos doentes.
Figura I

Pápulas eritmatosas de distribuição grosseiramente simétrica, milimétricas, algumas com crosta hemática
Figura II

Hipertrofia gengival
Figura III

Endoscopia digestiva alta: Mucosa esofágica com úlceras em toda a sua extensão, mucosa duodenal com erosões e friabilidade fácil e lesões petéquias dispersas; Angiotomografia abdominal: espessamento difuso da parede do esófago, intestino delgado e cólon
Figura IV

Petéquias perifoliculares
Figura V

Regressão das lesões cutâneas
BIBLIOGRAFIA
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