Introdução
O linfoma não Hodgkin (LNH) perfaz 62.4% das neoplasias linfóides e deriva da expansão clonal de células B, células T, células NK ou dos seus precussores, sendo o linfoma difuso de células B o subtipo mais frequente. Na maioria dos casos, a sua apresentação é nodular com linfadenopatias periféricas ou profundas, embora em 50% dos casos existam manifestações extranodais no curso da doença. Apenas 10-40% apresentam envolvimento extranodal na altura do diagnóstico. A icterícia obstrutiva é uma manifestação rara e normalmente tardia do LNH. 1,2,3,4,5
Caso Clínico
Apresentamos o caso de uma mulher de 64 anos que recorre ao serviço de urgência por dor epigástrica com posterior generalização, associada a vómitos alimentares, astenia, anorexia, icterícia, colúria, acolia, prurido e perda ponderal de cerca de 7Kg (superior a 10% do peso) com 2 semanas de evolução. Nega febre, sudorese noturna ou outra sintomatologia.
Tinha história de hipertensão arterial, síndrome de Sjögren primário e hipotiroidismo; medicada com perindopril, metotrexato e levotiroxina.
Na admissão, PA 123/87mmHg, FC 78bpm, apirética, vigil. Pele e escleróticas ictéricas. Descorada e hidratada. Abdómen doloroso à palpação do hipocôndrio direito, sem sinais de irritação peritoneal, sem massas ou organomegálias palpáveis e Murphy vesicular negativo.
Laboratorialmente, anemia normocítica normocrómica (Hb 11,6g/dL, VGM 80fL), VS 101mm/h, 5600 leucócitos/L; 474000 plaquetas/L; INR 1.41; bilirrubina total 8.72 mg/dL (<1.2) e conjugada 6,3 mg/dL (<0.2), AST 199 UI/L (<32), ALT 343UI/L (14-59) FA 815 UI/L (35-105), GGT 1111 UI/L (5-55); LDH 280 UI/L (135-214); PCR 2.98mg/dL (<0.05). Ecografia abdominal com importante dilatação das vias biliares intra e extra-hepáticas e interrupção abrupta do calibre na região intrapancreática.
No internamento efetuou tomografia computorizada (TC) toraco-abdomino-pélvica que revelou globosidade incaracterística da região cefálica do pâncreas, rins com múltiplas lesões nodulares sólidas bilaterais, sugestivas de linfoma renal, parênquima uterino multinodular, micronódulos torácicos, sem adenomegálias (Fig. 1). Para melhor caracterização realizou colangiopancreatografia por ressonância magnética (CPRM) que mostrou hipersinal (T2) inespecífico na área cefálica do pâncreas e gordura envolvente de contornos pouco definidos e nódulo supra-renal (Fig. 2). O estudo foi completado por ecoendoscopia que, na visão endoscópica, evidenciou ulcerações do corpo gástrico, do bulbo e da papila major que se biopsaram e na visão ultrassonográfica dilatação das vias biliares intrahepáticas sem lesões focais, vesícula com microlitíase, Wirsung não dilatado com várias formações hipoecogénicas /anecogénicas milimétricas; via biliar principal (VBP) dilatada (2.9mm) com afilamento progressivo em zona com várias adenopatias da região do hilo hepático. (Fig. 3) Perante o quadro de icterícia obstrutiva sintomática, efetuou colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) que revelou ulceração da papila e estenose do terço distal da VBP, com ectasia das vias biliares a montante. Realizada esfincterotomia biliar, seguida de citologia esfoliativa e colocação de prótese plástica (Fig. 4). O exame decorreu sem intercorrências e a doente apresentou melhoria clínica significativa. Do estudo etiológico destaca-se doseamento de imunoglobulina IgG4 dentro da normalidade, CEA 1,7 ng/ml (<2.5) e CA19.9 92,6 U/mL (<37).
As biopsias duodenais e papilares revelaram linfoma não Hodgkin (LNH) difuso, fenótipo B (CD20+,Bcl2 positivas, CD10+, Ki67 >90%) e a citologia esfoliativa foi negativa para células neoplásicas. (Fig. 5)
Perante a suspeita de envolvimento renal, a doente foi submetida a biópsia de um nódulo renal dirigida por TC com a mesma histologia. Destaca-se ainda beta2 microglobulina 3,28mg/L (0.61-2,37), mielograma e biópsia óssea sem alterações. As serologias VIH, HCV e HBV foram negativas.
Assumiu-se o diagnóstico de LNH difuso fenótipo B com envolvimento do trato gastrointestinal (região periampular e duodenal), renal, suprarrenal, pulmão e útero, pelo que a doente foi referenciada à consulta de Hematologia, tendo iniciado protocolo CHOP-R com melhoria clínica.
Discussão
O linfoma difuso de células B constitui 30-58% dos LNH, com incidência de 3.8/100 000/ ano na Europa e pico de incidência na 6ª década de vida. Os fatores de risco major são a história familiar de linfoma, doenças auto-imunes, infeção pelo VIH, seropositividade para a hepatite C e exposição ocupacional.6 A relação entre doença linfoproliferativa e o Síndrome de Sjögren primário está bem estabelecida na literatura. 7,8
A apresentação inicial do LNH pode relacionar-se com o envolvimento extranodal. 3,9 O sítio mais comum de envolvimento primário extranodal é o trato gastrointestinal (24-49%), seguido da pele, testículos, osso e rim. Locais de envolvimento raro incluem a próstata, bexiga, ovário, útero, mama, coração, olho, tiroide e supra-renais, alguns destes presentes na doente apresentada. 1,10
A icterícia obstrutiva é uma forma rara de apresentação, descrita na literatura com uma incidência de 0.2 a 2% e pode ser secundária ao envolvimento hepático direto, obstrução extra-hepática pelas adenomegálias ou envolvimento dos órgãos adjacentes. Das várias localizações anatómicas onde pode ocorrer a obstrução biliar, o hilo hepático e a região periampular são as mais vulneráveis, pela menor mobilidade destas estruturas. A obstrução proximal relaciona-se com o envolvimento dos gânglios periportais e a distal com o envolvimento pancreático, peripancreático e do intestino delgado. 11,12
Se avaliarmos a totalidade de neoplasias associadas a icterícia obstrutiva, o LNH perfaz 1-2% dos casos. É importante o diagnóstico diferencial com as restantes causas obstrutivas como a neoplasia pancreática ou das vias biliares que pressupõem um tratamento diferente. 9,11,12
A avaliação analítica inicial deve incluir hemograma (excluir envolvimento medular), serologias para VIH, VHB e VHC, função renal e ionograma, LDH e ácido úrico (excluir lise tumoral), citometria de fluxo para determinar a população clonal e beta 2 microglobulina . É importante a exclusão de doença Ig4, como no presente caso. 1,6
Apesar dos métodos de imagem permitirem demonstrar a obstrução local, bem como o envolvimento de outros órgãos, a biópsia tecidular é o gold standard para o diagnóstico definitivo. 6 Nas séries publicadas de doente com icterícia obstrutiva como manifestação inicial de doença linfoproliferativa a maioria trata-se de linfoma difuso de células B. A obstrução biliar relaciona-se normalmente com um estadio avançado da doença, sendo um factor de mau prognóstico. No entanto, nos doentes em que a icterícia é precoce na evolução da doença, como no caso apresentado, associa-se a um bom prognóstico. 9,13
No presente caso, o diagnóstico foi conseguido através da biópsia guiada por TC ao nódulo renal, tendo sido corroborado pelas biópsias do bulbo e da papila. Realça-se, assim, a importância das biópsias dirigidas para o diagnóstico e a baixa rentabilidade da citologia esfoliativa realizado na CPRE.
O estadiamento é realizado pela classificação de Ann Harbor (Fig. 6) consistindo na avaliação de sintomas B e nos exames de imagem que permitem a avaliação da extensão da doença: tomografia de emissão de positrões (PET) ou TC com contraste, sendo o primeiro mais sensível. A realização de biópsia óssea é dispensada quando há inegável envolvimento da medula óssea na PET. 6,14,15
É ainda fundamental a avaliação do prognóstico que condiciona a escolha do tratamento, calculado através do índice de prognóstico internacional (IPI) (Fig. 6).6,14 Algumas características tumorais relacionam-se com o prognóstico: tumores de centro germinativo CD10+ (bom prognóstico) e índice de proliferação > 90% mais prevalente nos doentes com sobre-expressão de Bcl2 e myc (mau prognóstico). 15
No caso apresentado, a doente encontrava-se em estadio IV na classificação de Ann Harbor, com um elevado risco no índice de prognóstico (IPI com 4 pontos: idade >60 anos, LDH elevada, estadio III-IV e localização extranodal) e sobrevivência esperada aos 3 anos de 59%.
Embora a melhor estratégia de resolução do quadro de icterícia obstrutiva permaneça por esclarecer, é consensual a colocação de prótese biliar nos casos sintomáticos, como no caso descrito, ou na presença de colangite. No entanto, a prioridade é o estadiamento e o rápido início de tratamento. 9
A quimioterapia é o tratamento de primeira linha permitindo o alívio das queixas obstrutivas mesmo quando não associada a tratamento percutâneo. Os esquemas mais frequentemente utilizados são R-CHOP (rituximab - ciclofosfamida, doxorrubicina, vincristina e prednisolona) ou R-AVBP (rituximab – doxorrubicina, vindesina, ciclofosfamida, bleomicina e prednisolina). A doxirrubicina e a vincristina são excretadas pela bílis, condicionando um aumento da semi-vida nos doentes com obstrução biliar, nos quais deverá ser usada apenas 50% da dose recomendada, sem um incremento da toxicidade. Em situações específicas é ainda realizada radioterapia neoadjuvante. 12
O seguimento médico deve ser trimestral no 1º ano, semestral nos dois anos subsequentes e posteriormente anual. 6,15
No presente caso a boa resposta ao tratamento poderá estar relacionada com alguns fatores de bom prognostico (CD10+, icterícia obstrutiva como manifestação precoce da doença), apesar do estadio avançado e risco elevado no calculo do IPI. Realça-se, no entanto, que o elevado índice de suspeição e uma investigação rápida e dirigida contribuem categoricamente para uma melhor resposta ao tratamento.
Considerações Finais
Os autores apresentam o presente caso pela raridade de um quadro de icterícia obstrutiva traduzir a manifestação clínica inicial de LNH e destacam a ausência de envolvimento ganglionar no momento do diagnóstico. Salientam ainda a presença do Síndrome de Sjögren como um fator de risco para o desenvolvimento de doença linfoproliferativa.
Embora a patologia benigna litiásica ou maligna da região periampular (colangiocarcinoma e carcinoma do pâncreas) sejam os diagnósticos mais frequentemente encontrados nos doentes com icterícia obstrutiva, este caso pretende sublinhar a doença linfoproliferativa como uma alternativa diagnóstica a ter em consideração na abordagem destes doentes.
Figura I

TC toraco-abdomino-pélvica: pâncreas globoso na região cefálica, rins com múltiplas lesões nodulares sólidas bilaterais, heterogeneidade do parênquima uterino multinodular, micronódulos torácicos e ausência de adenomegálias
Figura II

CPRM: zona cefálica do pâncreas e gordura envolvente com hipersinal (T2) e nódulo supra-renal
Figura III

Ecoendoscopia: ulcerações do bulbo e do corpo gástrico
Figura IV

CPRE: para drenagem biliar, que mostrou estenose curta do terço distal da VBP, tendo-se colocado prótese plástica
Figura V

Biópsias: Infiltração por células linfóides B CD20+, CD10+ e Bcl-6+, compatível com linfoma não Hodgkin difuso de grandes células
Figura VI

Classificação de Ann Harbor e índice de prognóstico (IPI)
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