Introdução:
A miocardite é uma doença inflamatória do miocárdio causada por uma variedade de doença infecciosas e não infecciosas. A apresentação clínica mais frequente é a insuficiência cardíaca aguda, no entanto o espectro clínico é variado, desde formas subclínicas assintomáticas com cardiomiopatia dilatada e disfunção ventricular, até à dor torácica aguda que simula um síndrome coronário agudo ou uma arritmia maligna com morte cardíaca súbita1.O diagnóstico definitivo é estabelecido pela biópsia do endomiocárdio através de critérios imunohistoquímicos e histológicos2. O desenvolvimento de técnicas de biologia molecular, como a PCR e a hibridização in situ, atualmente têm um papel importante no diagnóstico etiológico permitindo a identificação de um patogéneo específico (Fig. 1)3.Os autores apresentam o caso clínico de um doente com miocardite a Parvovírus B19 (Pv-B19) em que um estudo aprofundado e invasivo permitiu a confirmação diagnóstica e a definição de uma estratégia terapêutica dirigida.
Caso Clínico:
Doente do sexo masculino, 32 anos de idade, admitido no Serviço de Urgência de um hospital distrital por dispneia para esforços com agravamento progressivo para repouso, tosse seca e astenia com três semanas de evolução. No dia da admissão teve 3 dejecções aquosas abundantes e febre.
Antecedentes: espinha bífida com mielomeningocelo corrigido e deformidades nos membros inferiores submetido a várias cirurgias ortopédicas com necessidade de apoio em canadianas para deambulação; cistostomia aos 17 anos por bexiga neurogénica. Sem factores de risco cardiovascular, alergias, hábitos etílicos, tabágicos, utilização de drogas endovenosas ou viagens recentes.
Na admissão encontrava-se polipneico com dificuldade respiratória, saturação periférica de oxigénio em ar ambiente: 90%. Tensão arterial: 100/80mmHg. Frequência cardíaca: 120bpmin. Febre (38,1ºC). Pálido. Má perfusão periférica. Auscultação cardíaca: taquiarritmia, sem sopros. Auscultação pulmonar: crepitações na metade inferior de ambos os hemitórax. Edema bilateral dos membros inferiores.
Do estudo inicial efetuado, analiticamente com discreta leucocitose, proteína C reativa e peptídeo natriurético B elevados, mioglobina de 137 mg/dL e troponina I de alta sensibilidade de 41,6 pg/mL (Tabela 1). Electrocardiograma: Taquicardia sinusal, extrassístoles ventriculares isoladas, sem sinais de isquemia. Gasimetria de sangue arterial: pH: 7,43; pO2: 60mmHg; pCO2: 49mmHg; Lact: 2,1mmol/L. Radiografia de tórax: cardiomegalia, acentuação do interstício e cefalização vascular (Fig. 2). Angiografia torácica por tomografia axial computorizada excluiu tromboembolia pulmonar. Ecocardiograma transtorácico: dilatação severa das cavidades esquerdas (aurícula: 100ml/ventrículo: 200ml) e ligeira da aurícula direita, depressão severa da função sistólica do ventrículo esquerdo com fracção de ejecção (FEVE) de 14% e depressão da função sistólica do ventrículo direito, insuficiências mitral e tricúspide funcionais severas, com pressão sistólica na artéria pulmonar (PSAP) estimada em 49mmHg.
Iniciou terapêutica diurética e foi admitido em unidade de cuidados intermédios por insuficiência cardíaca aguda. Apresentou agravamento clínico com instabilidade hemodinâmica, agravamento de insuficiência respiratória e disfunção multiorgânica com necessidade de suporte vasopressor e ventilação não invasiva pelo que foi transferido para um hospital central, por eventual necessidade de técnica veno-arterial de oxigenação por membrana extracorporal e continuação de estudo etiológico. Teve melhoria gradual com resolução de disfunção de órgão, sem necessidade de medidas de suporte invasivas. Repetido ecocardiograma no segundo dia de internamento apresentando FEVE inferior a 10%, PSAP de 62mmHg e trombo no VE (Fig. 3), pelo que iniciou hipocoagulação.
Do estudo etiológico efectuado: serologias para vírus cardiotrópicos com positividade para Pv-B19 (IgM e IgG). Ressonância magnética (RM) cardíaca (Fig. 4) sugestiva de miocardiopatia dilatada de etiologia não isquémica (sem sinais sugestivos de edema ou fibrose miocárdica focal, alterações estruturais sobreponíveis a ecocardiograma). Para melhor esclarecimento clínico e avaliação para eventual transplante cardíaco realizou cateterismo cardíaco direito e esquerdo com biópsia endomiocárdica do ventrículo direito. Apresentava coronárias angiograficamente normais. A análise anatomopatológica do endomiocárdico (Fig. 5) mostrou edema ligeiro e infiltrado linfocítico intersticial escasso, aspetos morfológicos compatíveis com o diagnóstico de miocardite “borderline”. O estudo imuno-histoquímico no fragmento de miocárdio foi negativo para Pv-B19, no entanto o estudo por biologia molecular por técnica de PCR foi positivo. Nesta fase foi pesquisada PCR de Pv-B19 no sangue que foi negativa e repetido estudo serológico verificando-se seroconversão (IgG positiva, IgM negativa).
Apesar da RM não ter demonstrado sinais sugestivos de miocardite, atendendo à evidência de inflamação na biópsia do endomiocárdio com presença de DNA de PV-B19 foi assumido o diagnóstico de miocardite de etiologia infecciosa por Pv-B19 e iniciada Imunoglobulina humana (IgIV) 30 g por dia durante cinco dias. Teve melhoria clínica franca e ao 27º dia de internamento verificou-se recuperação parcial da capacidade funcional prévia, da FEVE (estimada em 27%) e da insuficiência mitral. Teve alta com seguimento em consulta sob terapêutica modificadora de prognóstico otimizada e hipocoagulado. Na reavaliação 3 meses após internamento apresentou-se em classe I de NYHA e o ecocardiograma mostrava cavidades de dimensões normais, recuperação da função sistólica biventricular (FEVE de 55%) e sem insuficiências valvulares.
Discussão:
A heterogeneidade da sintomatologia pode dificultar o diagnóstico de miocardite, contudo a integração com os exames auxiliares de diagnóstico não invasivos permitem a suspeita diagnóstica. Na prática clínica, o diagnóstico de miocardite é frequentemente de presunção pois apenas uma minoria dos doentes é submetido a biópsia endomiocárdica. A biópsia está indicada nas situações de insuficiência cardíaca com início recente (inferior a 2 semanas), com instabilidade hemodinâmica, sem resposta ao tratamento e/ou presença de arritmias ventriculares ou bloqueios cardíacos de alto grau4. O diagnóstico histológico é estabelecido na presença de células inflamatórias e necrose de miócitos (critérios de Dallas5). A miocardite “borderline”, como verificado neste caso, é caracterizada pela presença de células inflamatórias mas ausência de necrose. A realização de biópsia altera o prognóstico ao determinar o diagnóstico e assim, o tipo de tratamento.
No presente caso clínico, na fase inicial, pretendeu-se esclarecer se o quadro de insuficiência cardíaca aguda e cardiomiopatia dilatada, num doente jovem, se tratava de um processo agudo/inflamatório (miocardite) ou uma patologia cardíaca crónica (cardiomiopatia dilatada) sem tradução clínica até à data atendendo à sua limitação funcional de base. A presença de febre e dejeções aquosas na admissão, assim como a serologia de Pv-B19 com IgM e IgG positivas sugeriram uma etiologia aguda possivelmente infeciosa, no entanto os biomarcadores cardíacos foram negativos e a RM cardíaca não mostrou atividade inflamatória miocárdica, tendo sugerido como mais provável o diagnóstico de cardiomiopatia dilatada não isquémica. Atendendo a que o doente não referia sintomas isquémicos ou hábitos alcoólicos a hipótese de cardiomiopatia dilatada de etiologia congénita tomou alguma relevância. Contudo, perante a suspeita de etiologia infeciosa e clínica de instalação aguda, procedeu-se à realização de biópsia do endomiocárdio que mostrou presença de atividade inflamatória concluindo-se pelo diagnóstico de miocardite com cardiomiopatia dilatada neste contexto.
Perante o diagnóstico de miocardite impõe-se a investigação da causa, que pode ser infecciosa ou não infecciosa. É de importância central a distinção entre ambas. O contexto clínico e a identificação de agente no miocárdio permitem estabelecer a etiologia e definir a estratégia terapêutica: terapia antiviral nas infecções virais ou imunossupressão na patologia auto-imune e reações de hipersensibilidade a fármacos.
A miocardite viral e pós viral é a maior causa de cardiomiopatia dilatada aguda e crónica6. Os agentes que causam miocardite são vários, sendo que atualmente o Pv-B19 parece ser o mais prevalente7.
Neste caso, as serologias de Pv-B19 e a sua seroconversão foram sugestivas de infecção recente, no entanto os estudos serológicos não estão recomendados pois as serologias víricas têm baixa sensibilidade e especificidade apresentando apenas 4% de correlação com a identificação do vírus no miocárdio8. Portanto, a confirmação diagnóstica de etiologia viral foi efetuada pela positividade de PCR de Pv-B19 no miocárdio, apesar da sua negatividade no sangue que é explicada pela clearance viral habitualmente mais precoce no sangue9.
O tratamento de miocardite pode ser dividida em duas vertentes conciliadoras: 1) medidas gerais de suporte e tratamento de insuficiência cardíaca com terapêutica modificadora de prognóstico, nomeadamente, inibidores da angiotensina II, bloqueadores beta e antagonistas dos recetores da aldosterona; 2) terapêutica dirigida à causa10.
As armas farmacológicas disponíveis no tratamento da miocardite por Pv-B19 restringem-se à IgIV e à infusão subcutânea de interferon-β. A IgIV promove a eliminação viral e impede a sua replicação11, apesar disto a evidência não suporta a sua utilização12-13. Nos doentes que tiveram eliminação do Pv-B19 após utilização de IgIV verificou-se melhoria da função ventricular e redução dos diâmetros cavitários14. A terapêutica com IFN-β em doentes com miocardite viral tem vindo a consolidar-se como uma opção terapêutica segura e eficaz15. Neste caso clínico optou-se pela terapêutica com IgIV verificando-se, em conjunto com as restantes medidas gerais e farmacológicas, uma excelente evolução clínica.
Conclusão:
Nos doentes com insuficiência cardíaca e cardiopatia dilatada, após estudo etiológico inicial sem identificação de causa, a necessidade de biópsia do endomiocárdio deve ser ponderada de acordo com a probabilidade de que os resultados possam alterar a atitude terapêutica. Perante o diagnóstico histológico de miocardite “borderline” associada a um estudo imuno-histoquímico negativo para Pv-B19 no miocárdio, tornou-se imperativa a confirmação da presença de uma miocardite viral através de técnicas de biologia molecular, de modo a evitar a utilização de imunossupressão nociva. Apesar da evidência ser insuficiente para a utilização de IgIV, este caso sugere que a sua utilização pode ter um papel na miocardite viral.
Agradecimentos: Ao Dr. Pedro Bernardes, Dra. Teresa Pinho e Dr. Rui Rodrigues do Serviço de Cardiologia do Hospital de São João pela colaboração no caso clínico e realização de meios auxiliares de diagnóstico. Ao Dr. Pedro Rodrigues Pereira do Serviço de Anatomia Patológica do Hospital de São João pela colaboração no caso clínico e disponibilização da imagem histológica apresentada.
Quadro I
Tabela 1 - Resultados dos estudos analíticos
Parâmetro | Valor | Valor de referência |
Hemoglobina (g/dL) | 12,1 | 11,8-15,8 |
Volume corpuscular médio (fL) | 71,1 | 80,4-96,4 |
Hemoglobina Globular Média (pg) | 33 | 26,7-30,7 |
Leucócitos (/µL) – Neutrófilos (%) | 11,82 (73) | 4,0-10,0 |
Plaquetas (x109/L) | 213 | 150-400 |
Ureia (mg/dL) | 51 | 17-43 |
Creatinina (mg/dL) | 1,18 | 0,6-1,0 |
Sódio (mmol/L) | 137 | 136-145 |
Potássio (mmol/L) | 4,3 | 3,5-5,1 |
Proteína C reactiva (mg/dL) | 9,01 | 0,01-0,82 |
Desidrogenase láctica (UI/L) | 202 | 125-220 |
Aspartato aminotransferase (UI/L) | 171 | 8-35 |
Alanina aminotransferase (UI/L) | 312 | 7-45 |
Fosfatase alcalina (UI/L) | 140 | 30-120 |
Gamaglutamiltranspeptidase (UI/L) | 113 | <38 |
Bilirrubina total (mg/dL) | 0,92 | 0,3-1,2 |
BNP (pg/ml) | 2850 | < 100 |
Mioglobina | 137 | 1-147 |
Troponina I alta sensibilidade (pg/mL) | 41,6 | <34,2 |
INR | 1,65 | 1,0-1,4 |
Urina II | Normal | |
Epstein-barr IgG/IgM | +/- | |
Citomegalovírus IgG/IgM | -/- | |
Herpes I/II IgG/IgM | +/- | |
Parvovírus B19 IgG/IgM | +/+ | |
ANA/ANCA | Negativos |
BNP - Peptideo natriurético tipo B; INR – Razao normalizada internacional; ANA: Anticorpos antinucleares; ANCA: Anticorpos anti-citoplasma de neutrófilos
Figura I

Figura 1 – Algoritmo diagnóstico de miocardite – adaptado de Montera MW, Mesquita ET, Colafranceschi AS, Oliveira Junior AM, Rabischoffsky A., Ianni BM, et al. Sociedade Brasileira de Cardiologia. I Diretriz Brasileira de Miocardites e Pericardites. Arq Bras Cardiol 2013; 100(4 supl. 1): 1-36. Legenda – MNM: Marcadores de Necrose do Miocárdio; ECG: Electrocardiografia; RM: Ressonância Magnética; PCR: Polimerase chain reaction
Figura II

Figura 2 – Radiografia de Tórax na admissão hospitalar - índice cardio-torácico superior a 0,5, acentuação do interstício e cefalização vascular
Figura III

Figura 3 – Ecocardiograma transtorácico – janela apical de 3 câmaras com visualização de trombo séssil aderente ao septo do ventrículo esquerdo (seta)
Figura IV

Figura 4 – Ressonância magnética cardíaca – Imagem A (ponderada em T2 no eixo longo): apesar da imagem subóptima não se verificaram áreas hiperintensas sugestivas de edema. Imagem B (pós contraste – eixo longo) e C (pós contraste – eixo curto): sem identificação de áreas de realce tardio sugestivas de fibrose focal, infiltração miocárdica anormal ou cicatriz de enfarte.
Figura V

Figura 5 – Estudo histológico de fragmento do miocárdio: Edema ligeiro e infiltrado linfocítico intersticial escasso: aspectos morfológicos compatíveis com miocardite “borderline”.
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