Introdução
A tuberculose constitui um problema global de saúde pública. Em 2014 foram estimados 9.6 milhões de novos casos e 1.5 milhões de mortes devido à doença [1]. Contudo a incidência tem diminuído globalmente [1], sobretudo à custa da tuberculose pulmonar (apresentação clínica mais frequente da tuberculose), uma vez que a tuberculose extrapulmonar permanece estável [2]. Em Portugal a tendência global é semelhante, encontrando-se atualmente abaixo do limite definido como de baixa incidência (20%), com uma taxa de 19,2 por 100 mil habitantes [3].
O atingimento extrapulmonar da tuberculose parece ser um marcador clínico de compromisso imune, sendo raro o envolvimento peritoneal, que perfaz 0.1-0.7% de todas as formas de tuberculose [4]. O reconhecimento e a atribuição de importância aos fatores de risco associados à tuberculose extrapulmonar é essencial para suspeitar da doença e chegar ao diagnóstico, minimizando a morbimortalidade.
Caso Clínico
Homem de 65 anos, natural e residente no Mali, com história médica de hipertensão arterial essencial medicada e imunossupressão por corticoterapia crónica (20mg) desde há vários anos por patologia cutânea não caracterizada. Recorre ao serviço de emergência com história de um mês de evolução de distensão abdominal, obstipação e hipersudorese vespertina. Fazia-se acompanhar de endoscopia digestiva alta que mostrava candidíase esofágica grau II. Ao exame físico, com febre (39.4ºC) e abdómen distendido e doloroso à palpação generalizada, sem outras alterações. Dos dados laboratoriais salientava-se linfopenia de 600mm3 com normal contagem de leucócitos, anemia microcítica hipocrómica (hemoglobina 11g/dL; volume globular médio 74.4fL e hemoglobina globular média 25pg), proteína C reativa de 139.9mg/dL e velocidade de sedimentação de 63mm. A função hepática e as transaminases estavam normais, o estudo serológico para os vírus hepatotrópicos, o vírus da imunodeficiência humana (VIH) e a pesquisa de proteínas monoclonais foram negativas. A prova tuberculínica foi anérgica, o IGRA (Interferon-Gamma Release Assays) foi positivo e a adenina desaminase (ADA) sérica estava aumentada (49 U/L, normal: 4.8-23.1U/L). Para melhor esclarecimento realizou TC abdominal que revelou bolsas de líquido livre, intraperitoneal, em maior quantidade no hipocôndrio esquerdo e fossas ilíacas, com densificação de gordura mesentérica e dos folhetos da serosa peritoneal, sem coleções sistematizadas (Fig. 1). A radiografia torácica não mostrou alterações. Foi realizada paracentese diagnóstica ecoguiada com saída de líquido ligeiramente turvo, amarelo claro, com 1500/uL eritrócitos, 2861/uL células nucleares com predomínio linfocítico (76.4%) e gradiente de albumina soro ascite de 0mg/dL. O exame direto e anátomo patológico do líquido ascítico foram negativos e a ADA foi de 43.4 Ul/L (normal<32UI/L). Durante o internamento manteve picos febris diários, sem padrão circadiano e com cedência ao paracetamol e desenvolveu zona. Pela forte suspeita de se tratar de tuberculose realizou broncofibroscopia com exame direto do lavado broncoalveolar sem alterações. O doente apresentou agravamento clínico pelo que se optou por iniciar terapêutica antibacilar empírica (rifampicina, isoniazida, pirazinamida e etambutol) tendo apresentado evolução favorável com resolução do quadro clínico. A corticoterapia foi reduzida muito gradualmente. O exame cultural do lavado broncoalveolar e o resultado biomolecular do líquido ascítico foram negativos, contudo o exame cultural do líquido ascítico identificou o Mycobacterium tuberculosis complex multisensível.
Discussão
Apresentamos um caso de tuberculose peritoneal num doente com depressão da resposta imune celular pelo uso de corticoterapia prolongada. A prednisolona (ou equivalente) em doses ≥ 15 mg durante pelo menos 2-4 semanas está associada a imunossupressão [5]. Os mecanismos responsáveis passam pela depleção de células T e diminuição de interferão gama, citoquina com importante papel na resposta à infeção por Mycobacterium tuberculosis (MT), como responsabilidade na ativação macrofágica e consequente inibição do crescimento intracelular do microrganismo [6].
À semelhança dos corticoides, as terapêuticas imunossupressoras (anti-fator de necrose tumoral alfa) ou condições imunodepressoras (infeção pelo VIH, diabetes mellitus, neoplasia, doença hepática alcoólica e hemodiálise) ao comprometerem a resposta imune celular favorecem o desenvolvimento de tuberculose extrapulmonar [4].
A tuberculose abdominal é uma forma incomum de tuberculose extrapulmonar, representando apenas 1% do número total de casos em Portugal [7], sendo mais frequente o envolvimento linfático, genitourinário, osteoarticular, miliar e meníngeo [8]. Atinge fundamentalmente o trato gastrointestinal (sobretudo o íleo pelas suas características anatómicas e fisiológicas), o peritoneu e os órgãos parenquimatosos [9].
Na maioria dos casos a tuberculose peritoneal ocorre por reativação de tubérculo latente no peritoneu estabelecido por disseminação hematogénea de foco pulmonar [10]. Contudo, apenas 33% dos doentes com tuberculose peritoneal têm evidência radiológica de tuberculose pulmonar primária [11, 12].
O estabelecimento de diagnóstico é frequentemente difícil pela sintomatologia inespecífica, variável e insidiosa, pela ausência de achados patognomónicos e pela limitação dos testes diagnósticos disponíveis, na medida em que se trata de uma entidade paucibacilar.
A apresentação clínica pode ser sob três formas predominantes: a ascítica que é a mais frequente, a adesiva e a fibrótica [13]. Comummente os doentes apresentam sintomas sistémicos e dor abdominal, secundária à inflamação peritoneal [4].
O diagnóstico definitivo é estabelecido pela evidência microbiológica, biomolecular ou histológica, mediante isolamento do MT ou pela demonstração de granulomas epitelióides com necrose de caseificação central. Os achados laboratoriais são inespecíficos e o líquido ascítico demonstra predomínio linfocítico com alto teor proteico necessitando de diagnóstico diferencial com entidades que cursam com características semelhantes. O exame direto e cultural é raramente positivo [14], uma vez que implica um número de pelo menos 5000 bacilos/mL para a deteção da micobactéria no exame direto e cerca de 10 bacilos/mL para o exame cultural [4]. A amplificação de ácidos nucleicos e a ADA aumentada no líquido ascítico apresentam sensibilidades e especificidades altas para a infeção por MT [8, 14 ]. A TC, embora sem achados patognomónicos, é a técnica de imagem mais confiável, evidenciando infiltração do omento.
O esquema terapêutico da tuberculose peritoneal é baseado nos mesmos princípios que o tratamento da tuberculose pulmonar ativa. A espera dos resultados culturais associa-se a alta mortalidade [15], pelo que um teste terapêutico pode ser lícito.
O presente caso clínico é paradigmático da importância do reconhecimento da imunossupressão associada a corticoterapia (prednisolona ou equivalente em doses ≥ 15 mg durante pelo menos 2-4 semanas) como principal fator de risco associado a reativação da tuberculose.
Figura I

Figura 1: TC abdominal demonstrando densificação de gordura mesentérica e dos folhetos da serosa peritoneal (setas) e transição ileocólica preservada (cabeças de setas).
BIBLIOGRAFIA
Referências Bibliográficas
[1] World Health Organization (WHO). Global tuberculosis report 2015. Geneva: WHO; 2015. [Consultado 2015 Set 15]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/191102/1/9789241565059_eng.pdf?ua=1.
[2] Peto H, Pratt R, Harrington T, LoBue P, Armstrong L. Epidemiology of extrapulmonary tuberculosis in the United States, 1993-2006. Clin Infect Dis. 2009; 49:1350-7.
[3] Direção Geral da Saúde. Comunicado do Diretor-Geral da Saúde. Taxa de incidência da tuberculose.Direção Geral da Saúde. 13/10/2016; C123_01_v1.
[4] Sanai F, Bzeizi K. Systematic review: tuberculous peritonitis – presenting features, diagnostic strategies ant treatment. Aliment Pharmacol Ter. 2005; 22:685-700.
[5] Targeted tuberculin testing and treatment of latent tuberculosis infection: joint statement of the American Thoracic Society and the Centers for Disease Control and Prevention. Am J Respir Crit Care Med 2000;161:S221–47.
[6] Sterling T, Dorman S, Chaisson R, Ding L, Hackman J, Moore K, et al. Human Immunodeficiency virus-seronegative adults extrapulmonary tuberculosis have abnormal innate immune responses. Clin Infect Dis. 2001; 33:976-981.
[7] Estriga A, Lladó A. A case of peritoneal tuberculosis. Eur J Intern Med. 2013; 24(1):e218-e218.
[8] Papis D, Branchi V, Gimez L, Herrerias F, Vilardell F, Gonzalez M, et al. Abdominal tuberculosis mimicking crohn´s disease´s exacerbation: a clinical, diagnostic and surgical dilema. A case report. Int J Sur Case Rep. 2015; 6:122-125.
[9] Khan R, Abid S, Jafri W, Abbas Z, Hameed K, Ahmad Z. Diagnostic dilema of abdominal in non HIV patients: an ongoing challenge for physicians. World J Gastroenterol. 2006; 12:6371-5.
[10] Pinheiro A, Sá J, Silva D, Santos G, Pedrosa J, Duarte A. Tuberculose peritoneal –a propósito de um caso clínico. RPDI. 2015; 11(1): 15-20.
[11] Tomizawa Y, Yecies E, Craig F, Sohnen A. Peritoneal tuberculosis in an immunocompetent, unknown risk patient. Case Rep Gastrointest Med. 2013; 2013:680763.
[12] Terras A, Raimundo S, Pinto C. Peritoneal tuberculosis – a rare diagnosis. Portuguese Review of Pneumology. 2017; 23(3):172-173
[13] Costa B, Portela I, Serôdio M, Silva M, Castro F. Enterocolite tuberculosa ulcero-hipertrófica – a propósito de um caso clínico. Rev Port Coloproct. 2008; 5:38-42.
[14] Debi U, Ravisankar V, Prasad K, Sinha S, Sharma A. Abdominal tuberculosis of the gastrointestinal tract: revisited. World J Gastroenterol. 2014; 20:14831-40.
[15] Chow K, Chown V, Hung L, Wong S, Szeto C. Tuberculosis peritonitis-associated mortality is high among patients waiting for the results of Mycobacterial cultures of ascitic fluid samples. Clin Infect Dis. 2002; 35:409-13.