Introdução:O consumo de cocaína tem vindo a aumentar ao longo das duas últimas décadas em todo o mundo[1]. São vários os efeitos secundários decorrentes do uso de cocaína, sendo o seu consumo directamente relacionado com alterações induzidas pelo seu efeito vasoconstritor com consequente desenvolvimento de isquemia e necrose, atingindo particularmente as vias áreas superiores, o pulmão e o coração[1-4]. Desde 1970, que vêm sendo reportados casos de lesões vasculíticas associadas ao consumo deste estupefaciente[1-4]. Os autores apresentam o caso de um doente de 47 anos com diagnóstico de vasculite cutânea associada ao consumo de cocaína.
Caso Clínico:Apresenta-se o caso de um doente, sexo masculino, de 47 anos, toxicodependente desde os 21 anos (inicialmente consumo de drogas injectáveis e inaladas e posteriormente apenas consumo diário de cocaína inalada). Referência a diagnóstico de infecção por vírus da hepatite C (VHC) num período de internamento ocorrido cerca de 10 anos antes e para o qual perdeu seguimento.
Assintomático até Agosto de 2013, altura em que inicia quadro de poliartralgias inflamatórias com atingimento de grandes e pequenas articulações, assimétricas, associadas a sensação de parestesias a nível das mãos e dos pés. Menção a aparecimento de lesões de tonalidade avermelhada/violácea ao nível do pavilhão auricular de predomínio à direita (e com particular exuberância no lóbulo), com cerca de 1 cm de maior diâmetro, dolorosas e com edema associado.
Por manutenção das queixas foi avaliado uma primeira vez no Serviço de Urgência (SU) em Agosto de 2013. Na altura foi proposto internamento que o doente recusou. Manteve persistência das queixas álgicas articulares, referindo períodos de melhoria franca das lesões cutâneas. Em Outubro de 2013 regressa novamente ao SU por apresentar agravamento das lesões cutâneas a nível dos pavilhões auriculares, que ocupavam toda a extensão da hélice do pavilhão auricular (Fig.1) e já com áreas de necrose estabelecida. Estas lesões eram dolorosas e tinham edema associado à semelhança das lesões descritas em Agosto.De novoeram observáveis lesões purpúricas, arredondadas, com algum relevo, igualmente dolorosas, localizadas ao nível da face anterior e posterior dos membros inferiores (Fig. 2).
Do estudo analítico efectuado salienta-se elevação da proteína C reactiva (PCR 35 mg/L, N < 5 mg/L), velocidade de sedimentação no limite superior da normalidade (VS 20 mm/1ªh, N 0-20). Pesquisa de drogas de abuso na urina positiva para metadona e cocaína.
Salienta-se ainda a positividade para anticorpos anti- mieloperoxidase (MPO 31 UI/mL para um normal < 0.2 UI/mL) e anti- lactoferrina (pesquisa de anticorpos anti-elastase sérica inconclusiva). A pesquisa de anticorpos anti-proteinase 3 foi negativa. Documentado ainda consumo de C4 12.8 mg/dL (N entre 15-53 mg/dL), e IgM elevada 425 mg/dL (N entre 22-240 mg/dL).
A pesquisa de Crioglobulina e de Anticorpos anti-nucleares, anti-cardiolipina (IgM e IgG), anti beta-2-microglobulina (IgM e IgG) e do anticoagulante lúpico revelou-se “negativa”. O doseamento de Factor reumatóide e das restantes imunoglobulinas encontrava-se dentro dos valores de referência.
Foi efectuada biópsia cutânea, tendo sido observado a nível da derme necrose fibrinóide das paredes vasculares capilares, moderado a acentuado extravasamento eritrocitário e ligeiro infiltrado linfocitário disperso com participação de alguns neutrófilos perivasculares. Observam-se alterações necrobióticas das fibras de colagénio. O estudo por imunofluorescência directa mostrou positividade granular nas paredes vasculares para IgG, IgM, fibrinogénio, C1q e C3C. Observa-se, ainda, positividade granular basal para IgG, IgM e fibrinogénio. Positividade equívoca para IgA granular basal. Foi ainda efectuada electromiografia dos membros inferiores que excluiu a presença de lesão neuropática ou miopática.
Sem evidência clínica ou analítica de atingimento de outros órgãos, nomeadamente pulmão (ausência sintomas e sinais do foro respiratório e de alterações na radiografia de tórax) e rim (exame sumário de urina com sedimento, avaliação do perfil renal e ecografia renal sem alterações).
Ainda durante este internamento foi constatada positividade para o Anticorpo anti-VHC. Pedido genótipo do VHC, cujo resultado revelou genótipo 1a, com uma carga vírica elevada de 1.645.979UI/mL.
Inicialmente e pela suspeita de poder tratar-se de um quadro de Crioglobulinemia associada ao VHC o doente foi medicado com pulsos de metilprednisolona e terapêutica vasodilatadora (nomeadamente nifedipina e pentoxifilina).
Posteriormente e tendo por base os resultados obtidos e a evidência de melhoria significativa das lesões cutâneas com resolução quase completa, foi efectuada redução da dose de prednisolona de forma rápida e suspensa a terapêutica vasodilatadora.
Assumiu-se assim quadro de vasculite ANCA positiva associado ao consumo de cocaína. Não foi possível pesquisar a presença de levimasol, contudo os achados clínicos e analíticos pareciam favorecer o síndrome vasculítico associado a este composto.
O doente teve alta orientado para a consulta externa de medicina Interna e de Infecciologia. O doente manifestou uma pobre adesão às recomendações e manteve os consumos de cocaína inalada. Apesar da manutenção de consumos, até à data não foi documentada nova recidiva das lesões cutâneas ou surgimento de novos sintomas particularmente respiratórios.
Discussão:As alterações vasculíticas associadas ao uso de cocaína têm sido reportadas na literatura desde 1970[1-4]. Estão descritos dois síndromes vasculíticos associados ao consumo desta substância: um que resulta da acção directa da cocaína e do seu efeito vasoconstrictor que conduz a necrose isquémica com ou sem ruptura do septo nasal e com possível atingimento de outras estruturas da via aérea superior, mimetizando a granulomatose com poliangeíte. O segundo síndrome resulta do efeito secundário do levimasol, um contaminante encontrado em cerca de 70% da cocaína, e que condiciona uma vasculite ANCA positiva. As manifestações clínicas associadas a este último tipo caracterizam-se por lesões cutâneas purpúricas com placas necróticas, localizadas predominantemente a nível do pavilhão auricular e extremidades distais, bem como, artralgias e sintomas constitucionais (por exemplo, febre, anorexia, astenia). A leucopenia ou agranulocitose são também achados comuns. As alterações do estudo imune constituem outra das características deste tipo de vasculite, sendo frequente a presença de anticorpos anti-mieloperoxidase (MPO) em 70-100% casos, anti-proteinase (PR3) em 50% de casos. A detecção de anticorpos anti-elastase foi também descrita em doentes com manifestações vasculíticas associadas ao uso de cocaína – sendo particularmente evidente nos doentes com síndrome vasculítico não associado ao levimasol.
O diagnóstico baseia-se na clínica e na confirmação do consumo de cocaína. A presença de Levimasol é difícil de identificar, dado que a sua pesquisa deve ser feita nas primeiras 6h após consumo de cocaína e que a mesma apenas é efectuada em alguns centros, não estando disponível de forma generalizada. É ainda necessário descartar outras patologias nomeadamente doenças inflamatórias/auto-imunes.
O tratamento é essencialmente de suporte. A suspensão e posterior evicção de consumos é essencial para evitar a recorrência. Analgesia e medidas de protecção para o frio devem ser implementadas. O uso de antibioterapia está indicado nos casos em que exista sobreinfecção bacteriana. O uso de corticóides não parece alterar o curso da doença, contudo, esta terapêutica deve ser implementada em doentes que não respondem às medidas de suporte, nos submetidos a biópsia cujo resultado seja compatível com vasculite e nos que que apresentem elevação marcada dos marcadores inflamatórios.
Este caso constituiu um desafio clínico, uma vez que, o doente em questão apresentava um diagnóstico prévio de infecção por VHC, o que acarreta um maior número de hipóteses diagnósticas. Este dado tornou premente a necessidade de exclusão de uma doença imunológica associada à infecção por VHC, nomeadamente a Crioglobulinemia. A presença de anticorpos anti-mieloperoxidade (pouco frequente numa crioglobulinemia associada a VHC), aliada à normalidade do valor do factor reumatóide e à ausência de crioglobulinas detectáveis, foram factores decidivos na colocação de hipóteses diagnósticas alternativas – particularmente a Vasculite ANCA positiva associada ao consumo de cocaína. Neste caso em particular tendo em conta o padrão de atingimento cutâneo e a positividade anti-MPO e anti-lactoferrina, coloca a possiblidade de uma Vasculite associada ao levimasol. Contudo o seu doseamento não foi possível. O facto de o doente não apresentar atingimento concomitante de outros órgãos como pulmão e rim, nem história prévia de alergia, asma ou rinite/sinusite foram dados relevantes e que fortaleceram a hipótese diagnóstica colocada.
Apesar do papel incerto dos corticóides neste tipo de vasculite, neste caso em particular questiona-se o seu contributo na melhoria rápida e na resolução das lesões cutâneas, algumas das quais com aspecto necrótico e por isso expectavelmente irreversíveis.
Salienta-se que até à data, devido ao comportamento errático do doente ainda não foi possível completar estudo para estratificação da doença hepática.
Figura I

Lesões vasculíticas no pavilhão auricular
Figura II

Lesões vasculíticas no membro inferior
BIBLIOGRAFIA
1 -Berman M., Paran D., Elkayam O., Cocaine-Induced Vasculitis, Rambam Mamoides medical journal, 2016, volume 7, issue 4
2 -Cruz A., Marrero S., Betancourt J., Andino M., et al, Cocaine Induced Vasculitis: We find a culprit?, Case reports in Rheumatology, 2012, Article ID 982361, 4 pages, 2012. doi:10.1155/2012/982361
3-Roberts J., Chévez-Barrios P., Levamisol Induced Vasculitis – A characteristic cutaneous vaculitis associated with levamisole – adulterated Cocaine, Arch Pathol Lab Med, 2015; 139: 1058-1061
4 -Karim R., Ryan C., Rangel C., Emmett M., Levamisole Induced Vasculitis, Proc (Bayl Univ Med Cent) 2013;26(2):163–165