Introdução
A alfa-1 antitripsina (A1AT) é uma proteína sintetizada no fígado, que atua a nível alveolar onde inibe a acção da elastase dos neutrófilos sobre a parede alveolar. O défice A1AT é uma alteração genética comum, muitas vezes subdiagnosticada, que predispõe para o desenvolvimento de doença pulmonar e insuficiência hepática crónicas1. A prevalência na Europa varia entre 1/2500 a 1/5.000 indivíduos2, com a população italiana e espanhola a serem afetadas pelas formas mais graves3.O gene que codifica a A1AT faz parte do supergene SERPINA, sendo denominado de PI (Protease inhibitor)4. As mutações no gene PI podem alterar a expressão do gene, a sua tradução ou o processamento proteico. A variante implicada na doença,com mais frequência, causa alteração da conformação da molécula, com polimerização da mesma, o que faz com que esta não seja libertada dos hepatócitos5. Por um lado existe lesão direta dos hepatócitos que pode levar à sua morte, por outro, os baixos níveis de A1AT a nível pulmonar fazem com que não haja inibição da elastase e ocorra destriução das paredes alveolares e enfisema5,6. A gravidade destas alterações depende da mutação em causa7. A expressão da doença também é muito variável entre indivíduos com igual mutação, traduzindo um importante papel dos fatores ambientais8.O quadro clínico inicial do défice de A1AT é geralmente respiratório (tosse, pieira e cansaço fácil), surgindo cerca dos 40 a 50 anos5. Pode manifestar-se por quadro obstrutivo com características semelhantes à asma, bronquite crónica, bronquiectasias ou enfisema de predomínio nos lobos inferiores5,9. Apenas uma pequena percentagem de doentes desenvolve doença hepática, a maioria traduzindo-se por colestase neonatal, mastambém está associada a insuficiência hepática crónica e carcinoma hepatocelular5,6. Outras manifestações mais raras são a paniculite e a vasculite9. O tabagismo é um dos fatores que acelera a progressão da doença, havendo uma relação entre a quantidade de tabaco consumida e o declínio da função pulmonar3. As provas da função pulmonar mostram tipicamente obstrução das vias aéreas com diminuição do volume expiratório forçado no primeiro minuto, muitas vezes com reversibilidade, e aumento do volume residual, traduzindo hiperinsuflação9. Nos exames de imagem é patente o enfisema de predomínio basilar, de resto igual aquele que ocorre nos restantes quadros de enfisema5,9. Na suspeita de défice de A1AT, deve ser feito o doseamento sérico da A1AT e se este for inferior a 90mg/dL, prosseguir para caraterização genética9,10.O tratamento engloba as medidas gerais para o doente com doença pulmonar obstrutiva crónica: cessação tabágica, reabilitação funcional respiratória, prevenção das infeções respiratórias com vacinação pneumocócica e da gripe, oxigénio suplementar conforme neccessidade, broncodilatadores inalados e tratamento agressivo de quadros infecciosos. A terapêutica de substituição com concentrado proteico humano de A1AT, administrado semanalmente, fica reservada para doentes com sinais de doença pulmonar em evolução: tosse produtiva crónica ou infeções respiratórias baixas de repetição, obstrução das vias aéreas, rápido declínio da FEV1 ou sinais imagiológicos significativos de enfisema5,10.
Caso Clínico
Doente do sexo feminino, de 32 anos de idade, caucasiana, com antecedentes de ovários poliquisticos, nefrectomia direita aos 28 anos por rim atrófico no contexto de litíase renal e dislipidémia. História obstétrica: IV gesta IV para, partos eutócicos, sem complicações.Foi submetida a colecistectomia aos 30 anos de idade, tendo como complicação hematoma da loca vesicular e dor abdominal incapacitante. Durante o seguimento em consulta de cirurgia realizou tomografia computorizada (TC) abdominal que revelou alterações a nível hepático sugestivas de estase, motivo pelo qual foi referenciada à consulta de Medicina Interna. A doente referia cansaço para médios esforços nos 6 meses prévios, edemas vespertinos dos membros inferiores e nictúria ocasional. Negava ortopneia, dispneia paroxística noturna, emagrecimento recente, febre, sudorese noturna, nódulos sugestivos de adenomegalias, artralgias, alterações cutâneas ou outras queixas na revisão por aparelhos e sistemas. Sem história de infeções respiratória de repetição. Ao exame objetivo salienta-se a baixa estatura (1,52m) e aspeto emagrecido (IMC 17,18kg/m2), sem outras alterações relevantes. Na avaliação inicial pela Cirurgia, apresentava estudo analítico normal (hemograma, velocidade de sedimentação, coagulação, função renal, ionograma, função hepática, proteínas séricas e proteinograma eletroforético, ácido úrico, função tiroideia, marcadores tumorais), exceto hipercolesterolémia (Colesterol total 206mg/dL, HDL 62,3mg/dL, LDL 140mg/dL, Triglicerídeos 50mg/dL). Tinha realizado endoscopia digestiva alta que mostrava gastrite moderada generalizada. Foi pedido ecocardiograma pela suspeita clínica de insuficiência cardíaca que não apresentava alterações. No estudo analítico efetuado para despiste de causas de estase hepática foi detetado um nível de alfa-1 antitripsina sérico diminuído (20,6 mg/dL, sendo o normal 90 a 200 mg/dL), estando os restantes doseamentos dentro dos intervalos normais (Imunoglobulinas, complemento, Enzima de conversão da angiotensina e Pró-BNP), assim como serologias viricas e auto-anticorpos negativos. Foi colocada como hipótese diagnóstica um défice de alfa-1 antitripsina pelo que a doente foi encaminhada para consulta de Genética Médica, onde realizou estudo genético que confirmou o diagnóstico de deficiência grave de alfa-1 antitripsina. Foi identificado o alelo Z que reduz a secreção da proteína em cerca de 80% e o alelo Mm/Mpa que reduz a secreção da proteína em cerca de 90%. Dois dos 4 filhos realizaram nessa altura estudo genético, tendo sido identificado o alelo Z em homozigotia em um deles.Nesta altura a doente engravidou, tendo o estudo pulmonar sido diferido para o fim da gravidez, que decorreu sem intercorrências. Após o parto foi avaliada em consulta de Pneumologia, apresentando estudo funcional ventilatório com valores normais, insuflação pulmonar (volume residual 216,5%), difusão de monóxido de carbono de 80%, prova de marcha de 6 minutos sem dessaturação e com dispneia leve. A TC torácica revelou alterações inflamatórias no segmento latero-basal esquerdo e micronódulos dispersos em ambos os pulmões, que se mantêm sobreponíveis em TC de controlo com cerca de 1 ano e meio de evolução. A doente mantém seguimento irregular em consultas de Pneumologia e Medicina Interna por faltas da mesma, não realizando muitos dos exames de seguimento. Não apresentava, ainda, critérios para tratamento de substituição da A1AT.
Discussão
Existem centenas de polimorfismos do gene PI. O alelo normal é designado de M, ocorrendo também neste diversas variantes, a maioria não condicionando um défice de proteína circulante. As variantes alélicas mais comuns associadas com défice de A1AT são a S e a Z, quer em homozigotia como em heterozigotia, ou até associadas ao alelo M. O alelo Z, encontrado na doente, condiciona uma diminuição da concentração sérica de A1AT em cerca de 80%, resultado da polimerização da proteína e sua acumulação intra-hepática6. O alelo Mm/Mpa também identificado nesta doente é uma variante muito rara e implica uma diminuição na concentração sérica de proteína em cerca de 90%. Assim, esperamos nesta doente valores séricos de A1AT de cerca de 10 a 15% dos valores normais6, conforme se verificou. Sabe-se que valores séricos acima de 58mg/dL (cerca de 30% do normal) não apresentam risco acrescido de desenvolvimento de doença pulmonar8,9. Conclui-se que a doente apresentada está em risco de desenvolver enfisema. O alelo Z identificado na doente implica a acumulação intra-hepática de proteinas polimerizadas. Provavelmente será devido a este mecanismo que surgiram as alterações imagiológicas que motivaram o diagnóstico. Apesar de manter normais os níveis de transaminases e uma função hepática igualmente normal, esta doente terá risco acrescido de desenvolver doença hepática crónica e hepatocarcinoma.A idade média de manifestação da doença é cerca dos 40 a 50 anos, altura em que se desenvolvem os sintomas respiratórios. As principais exceções são os doentes com gene nulo, ou seja, em que não existe A1AT circulante que desenvolvem enfisema cerca dos 30 anos e os fumadores com défice de A1AT que desenvolvem doença cerca de 10 anos mais cedo que os não fumadores3,9. Apesar dos níveis baixos de proteína, esta doente não desenvolveu ainda sinais de enfisema a nível imagiológico, mas apresenta já hiperinsuflação nas provas funcionais respiratórias, um sinal precoce da evolução da doença. A vigilância da doente é crucial pois permitirá o início atempado de terapêutica de substituição e assim maximizar a sua eficácia. Esta terapêutica está indicada em adultos, com níveis séricos de A1AT inferiores a 58mg/dL, com FEV1 de 30 a 65% do previsto ou com perda acelerada da função pulmonar durante um ano (diminuição da FEV1 > 120ml/ano)9. Deverá manter avaliação da função pulmonar, hepática e controle imagiológico torácico e hepático anuais.Este caso mostra a importância do doseamento de A1AT em todos os doentes com suspeita de doença hepática inexplicada, pela prevalência elevada desta entidade e pela possibilidade de oferecer terapêutica de substituição atempadamente. De ressaltar, ainda, a necessidade de sensibilizar a comunidade médica para o doseamento de A1AT em todos os doentes com Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica, pelo menos uma vez, no seu seguimento, mesmo nos casos em que exista um fator etiológico evidente. Esta recomendação é ainda mais pertinente em países com elevada prevalência da doença, como é o caso da península ibérica3,9.
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