Lista de abreviaturas por ordem alfabética:
ALT alanina aminotransferase
AST aspartato aminotransferase
CE consulta externa
CK creatinina quinase
LDH lactato desidrogenase
PCR proteína C reactiva
SU serviço de urgência
TC tomografia computorizada
TGO transaminase glutâmico oxalacética
TGP transaminase glutâmico pirúvica
TT temperatura timpânica
VS velocidade de sedimentação
Introdução
As miopatias inflamatórias são um grupo heterogéneo que inclui a dermatomiosite, polimiosite, miosite necrosante, miosite de corpos de inclusão e miosite de sobreposição1. Clinicamente caracterizam-se por diminuição da força muscular proximal e achados sugestivos de inflamação muscular. Podem ser acompanhadas por outras manifestações clínicas. A distinção entre as variantes é desafiante, mas assume importância fundamental, uma vez que cada condição tem um prognóstico e resposta à terapêutica diferentes1,2. Apresentamos um caso de Síndrome de Antissintetase, uma síndrome rara, que pode ser incluída na variante de polimiosite1.
Caso clínico
Mulher de 48 anos sem antecedentes de relevo ou medicação crónica. Apresenta-se com quadro com um mês de evolução de mialgias generalizadas e diminuição de força muscular, com agravamento progressivo. A fraqueza muscular predominava nos membros superiores, maioritariamente proximal. O atingimento distal traduzia-se por dificuldades na motricidade fina das mãos, incapacitantes na realização de tarefas do dia a dia como abrir uma garrafa ou segurar uma caneta.
Associadamente descrevia edema das mãos e das pernas, artralgias das pequenas e grandes articulações, xerostomia, anorexia e hipersudorese noturna. Referência a tosse seca persistente desde há 2 meses, tendo inclusivamente sido medicada com levofloxacina sem melhoria. Não foram documentados outros sintomas positivos na interrogação ativa e exaustiva relativa aos diversos aparelhos e sistemas.
Na semana prévia à admissão, a doente tinha visitado uma quinta com animais, incluindo ovelhas e cabras, sem outro contexto epidemiológico de relevo.
No exame objectivo realizado no serviço de urgência, a doente apresentava febre (TT 38,1ºC), edema duro nas mãos com espessamento da pele e descamação na face palmar (Fig. 1), bem como discreto edema nos tornozelos, simétrico, sem sinal de Godet. O exame neurológico confirmou diminuição da força muscular simétrica. Nos membros superiores proximal grau 2/5 e distal grau 3/5, nos membros inferiores grau 4/5. Apresentava dores generalizadas à mobilização passiva e activa das articulações dos membros, sem atingimento axial, com tónus e reflexos normais. A sensibilidade táctil na face dorsal das mãos encontrava-se diminuída, não respeitando dermátomo.
A auscultação pulmonar revelou crepitações inspiratórias bilaterais nos terços inferiores.
Foi documentada elevação das enzimas musculares (CK 2056 U/L e mioglobina 433.5 ng/mL), da PCR (191.90 mg/L), das transaminases (TGO/AST de 46.59 U/L, TGP/ALT de 74.31 U/L) e da LDH (606 Ul/L).
Dado o contexto epidemiológico da doente, foi iniciada doxiciclina na presunção de eventual zoonose, contudo a febre alta persistiu apesar da terapêutica. As alterações nas mãos foram então valorizadas e identificadas como o sinal de “mãos de mecânico” (Fig. 1 e 2), avançando-se a hipótese diagnóstica da Síndrome de Antissintetase.
Após a introdução de prednisolona (1mg/kg/dia) houve rápida resolução da febre, melhoria clínica e analítica progressivas (Fig. 3), permitindo a suspensão da antibioterapia ao 3º dia.
A eletromiografia evidenciou sinais de atrofia miogénea nos músculos bicípite braquial direito e extensor comum dos dedos com unidades miopáticas motoras (recrutamento precoce, curta duração, baixa amplitude e unidades polifásicas), mas sem sinais de instabilidade da membrana sarcoplasmática (atividade espontânea ou fibrilação), resultados compatíveis com uma miopatia. O resultado da biópsia muscular no braço contralateral foi também compatível com o diagnóstico (Fig. 4).
No perfil analítico de autoimunidade foi documentada positividade de ANA 1:640 com padrão mosqueado sem mitoses, Anti-SSA e SSB >240 (negativos se <7Ul/mL), Anti-Jo1 144 (negativo se <7Ul/mL), com negatividade para anti Sm, centrómero, RNP e Scl-70. Adicionalmente documentada positividade para Anti-Ro52, com negatividade para os restantes anticorpos associados a miosites (PL7, PL12, EJ, OJ, SRP, Ku e Mi-2). Devido ao resultado da determinação dos auto-anticorpos e às queixas de xerostomia foi realizada uma biopsia às glândulas salivares (Fig. 5) que permitiu de acordo com a Revised American-European Consensus Group confirmar critérios de Sjögren Secundário: xerostomia, histologia de glândulas salivares com ≥ 1 foco de linfócitos e presença de autoanticorpos SSA3.
A TC torácica de alta resolução não mostrou alterações, assim, apesar da clínica de tosse irritativa e das alterações auscultatórias, não foi possível documentar envolvimento pulmonar.
Foi excluída neoplasia (estudos endoscópicos, TC toraco-abdomino-pélvica, ecografia mamária e mamografia, ecografia tiroideia, observação por ginecologia com citologia cervical), dada associação de neoplasia com as miopatias inflamatórias4.
A doente teve alta para a consulta externa assintomática, em esquema de desmame de corticoide. Meses mais tarde apresentou recidiva das mialgias com necessidade de aumentar dose de corticoide, tendo iniciado simultaneamente um fármaco poupador de corticoide (azatioprina) com boa tolerância e melhoria.
Discussão
A síndrome de antissintetase pode ser incluída na variante da polimiosite dado partilharem características histológicas, níveis de elevação das enzimas musculares até 50 vezes o normal e a clínica aguda-subaguda1.
Embora todas as variantes possam apresentar sintomas como as mialgias, a dor à palpação muscular e os sintomas sistémicos são mais comuns no síndrome de antissintetase1. Esta síndrome é caracterizada por miopatia, febre, doença pulmonar intersticial, fenómeno de Raynaud, artrite não erosiva e mãos de mecânico1. Não é essencial a presença de todas estas manifestações para efeitos de diagnóstico uma vez que a síndrome pode existir mesmo sem envolvimento muscular2.
Dada a sua raridade, a suspeita clinica é essencial para o diagnóstico. No caso clínico apresentado salienta-se que, na avaliação inicial, a doente valorizava muito as queixas de mialgias e febre o que, associado a tosse e exposição a animais, levou inicialmente à necessidade de exclusão de zoonose. Uma avaliação mais cuidada da história permitiu perceber o carácter sub-agudo do quadro, o que, aliado à constatação do sinal das “mãos de mecânico” levaram ao diagnóstico. Este achado, embora raro, é característico da Síndrome de Antissintetase pelo que a sua identificação deu um contributo valioso à formulação do diagnóstico.
Os anticorpos antissintetase são assim designados pelo seu envolvimento na síntese de DNA, reagindo com subunidades de RNA transferência. Os RNA transferência sintetase são enzimas responsáveis por ligar um aminoácido específico ao seu RNA transferência, formando aminoacil-RNA transferência5. O seu papel na fisiopatologia da doença ainda não é claro mas detectam-se em 20-30% dos doentes com miosite. De entre os vários anticorpos antissintetase associados ao síndrome homónimo identificados até à data (OJ, EJ, PL7, PL12, Ks, Zo, Ha, Jo-1), o anti-Jo-1 encontra-se presente em 75% dos casos1, 5, 6, 7, 8. Diversos auto-anticorpos têm sido estudados e associados a diferentes variantes ou características clínicas: Mi-2, SAE, MDA-5 associados à dermatomiosite ou doença pulmonar intersticial; TIF-1γ e NXP-2 à miosite associada a neoplasia; SRP e HMGCR à miosite necrosante; cN1A à miosite de corpos de inclusão; anticorpos antissintetase e RNP, Ku, Pm-scl, SSA (Ro 52 e Ro60) e SSB/La associados à miosite de sobreposição1, 5, 9.
Nas miosites a subunidade Ro52 do Anti-SSA é mais comum do que a subunidade Ro605. A Ro52 está frequentemente associada à Síndrome de Antissintetase sendo positiva em 56-72% dos doentes com positividade para o Anti-Jo-1. A positividade para os dois auto-anticorpos está mais associada à presença de mãos de mecânico, maior risco de neoplasia, pior estado funcional e pior prognóstico quando comparada com positividade isolada para anti-Jo-15, 10.
As estratégias terapêuticas baseiam-se na experiência clínica e incluem como primeira linha a corticoterapia e eventualmente fármacos poupadores de corticoide1.
A resposta terapêutica pode ser paradoxal, com melhoria clínica sem melhoria analítica. Recomenda-se que o ajuste de corticoide seja orientado pela clínica e não pela resposta enzimática1.
A utilização de imunoglobulinas endovenosas e terapêutica biológica podem ser opções de segunda e terceira linha respectivamente1.
As miopatias inflamatórias têm bom prognóstico, com sobrevida a 10 anos superior a 90%1, 11.
Conclusão
Os autores pretendem com este caso realçar a importância do reconhecimento do sinal das “mãos de mecânico” para o diagnóstico da Síndrome de Antissintetase. De facto, este sinal pode auxiliar e acelarar o diagnóstico desta síndrome rara, e consequentemente, facilitar o seu tratamento atempado.
Figura I

Mãos de mecânico com pele fissurada na face palmar da mão e região lateral dos dedos.
Figura II

Mãos com edema dos dedos, sem sinal de Godet.
Figura III

Evolução clínica e analítica da doente. Administração de doxiciclina do dia 2 ao dia 4 e início de corticoide no dia 3. SU serviço de urgência; PCR proteína C reativa; CK creatinina quinase; VS velocidade de sedimentação; CE consulta externa.
Figura IV

Histologia de biópsia do músculo deltóide esquerdo. Coloração hematoxilina-eosina. Ampliação 200x. Infiltrado inflamatório severo, predominantemente linfocitário com histiócitos e ocasionais eosinófilos, predominantemente perivascular no perimísio e gordura perimuscular com extensão aos fascículos. Raras fibras necróticas (indicada na seta preta), bem como escassas fibras regenerativas. Não se observam lesões de vasculite.
Figura V

Histologia da biópsia de glândula salivar minor (lábio inferior). Coloração hematoxilina-eosina. Ampliação 200x. Sialoadenite com infiltrado inflamatório linfócitico focal, grau 4 na escala de Chisholm – Mason.
BIBLIOGRAFIA
Referências
1 Dalakas MC. Inflammatory Muscle Diseases. N Eng J Med. 2015; 372: 1734-47
2 Lundenberg IE, Miller FW, Tjärnlund A, Bottai M. Diagnosis and classification of idiopathic inflammatory myopathies. J Intern Med 2016; 280: 39–51
3 Rasmussen A, Ice JA, Li H, Grundahl K, et al. Comparison of the American-European Consensus Group Sjögren’s Syndrome classification criteria to newly proposed American College of Rheumatology criteria in a large, carefully characterised sicca cohort. Ann Rheum Dis 2014; 73:31-38
4 Qiang JK, Kim WB, Baibergenova A, Alhusayen R. Risk of Malignancy in Dermatomyositis and Polymyosistis: A Systematic Review and Meta-Analysis. J Cut Med Surg. 2016.
5 Betteridge Z, McHugh N. Myositis-specific autoantibodies: an importante tool to support diagnossis of myosistis. Journal of Internal Medicine. 2016; 280: 8-23
6 Katzap E, Barrilla-LaBarca ML, Marder G. Antisynthetase syndrome. Curr Rheumatol Rep. 2011; 13:175
7 Mozaffar T, Pestronk A. Myopathy with anti-Jo-1 antibodies: pathology in perimysium and neighbouring muscle fibres. J Neur Neurosurg Psychiatry 2000; 68: 472
8 Gunawardena H, Betteridge ZE, McHugh NJ. Myositis-specific autoantibodies: their clinical and pathogenic significance in disease expression. Rheumatology Oxford. 2009; 48: 607
9 Benvenieste O, Stenzel W, Allenbach Y. Advances in serological diagnostics of inflammatory myopathies. Curr Opin Neurol. 2016; 29 (5): 662-73
10 Ferreira JP, Almeida I, Marinho A, Cerveira C, Vasconcelos C. Anti-Ro52 Antibodies and Interstitial Lung Disease in Connective Tissue Diaseases Excluding Scleroderma. ISRN Rheumatology. 2012. Article ID 415272, 4 pages
11 Amaral SM, Cogollo E, Isenberg DA. Why do patients with myositis die? A retrospective analysis of a single-centre cohort. Clin Exp Rheumatol. 2016;