INTRODUÇÃO
A relação entre a síndrome nefrótica (SN) e as doenças onco-hematológicas como linfoma ou doença de Hodgkin (DH) é uma rara mas bem conhecida associação (0,2-0,4% dos casos de DH) podendo esta constituir uma primeira manifestação de DH. Justifica-se uma anamnese rigorosa e investigação etiológica mais exaustiva que permita o diagnóstico precoce de uma doença maligna potencialmente curável.Os autores ilustram o tema com a apresentação de um caso clínico.
APRESENTAÇÃO DO CASO
Homem de 19 anos de idade, empregado de mesa e praticante regular de musculação, tido como saudável e sem hábitos medicamentosos embora consumindo regularmente suplementos proteicos simples. Negava consumo de anabolizantes e uso de drogas ilícitas. Um mês antes do internamento apercebeu-se de episódios de sudorese nocturna, astenia e progressiva redução da tolerância ao esforço físico. Posteriormente, pela associação de febre (zénite 38,5ºC) e edema de ambos os membros inferiores de agravamento progressivo decidiu recorrer à urgência, acabando por ser internado. Ao longo deste período, não identificou qualquer sintomatologia específica de órgão ou sistema nem perda ponderal.
Quando observado, apresentava um bom estado geral e nutricional sem icterícia ou palidez das escleróticas, pele e mucosas. Encontrava-se apirético, sem alterações à inspecção da orofaringe, identificando-se 2-3 adenopatias pequenas e elásticas (1 cm), móveis e indolores, na cadeia jugular direita inexistentes noutras cadeias ganglionares periféricas; a avaliação cardiopulmonar era inocente bem como a abdominal, embora esta dificultada pela musculatura abdominal desenvolvida com aparente hepato- e esplenomegalia. Apesar da simetria, o edema dos membros inferiores era evidente até aos joelhos.
Dos exames inicialmente realizados, destacava-se leucocitose periférica / reacção leucemóide (31.000/L sendo 85,6% neutrófilos e 6% linfócitos), sem anemia (Hb 12,7 g/dL) e com contagem plaquetária normal, sem alterações morfológicas no esfregaço. Constatou-se hipoalbuminémia (12,6 g/L) sem disfunção hepática ou renal, proteinúria exuberante de quase 18,8 g em colheita de urina de 24 horas, sendo a electroforese proteica à admissão característica de SN. O perfil lipídico não apresentaria alterações nomeadamente colesterol total de 189 mg/dL. Não menos suspeito era o alargamento mediastínico na telerradiografia torácica que justificou esclarecimento com tomografia computorizada (Fig. 1).
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Confirmou-se assim a presença de volumoso conglomerado adenopático mediastínico pré-vascular (cerca 7 cm) e moderada hepato-esplenomegalia. Referência ainda a algum derrame pleural esquerdo e liquido intra-abdominal livre (Fig. 1 e 2). Não se documentavam adenomegalias noutros territórios profundos mas assinalavam-se perifericamente em ambas as axilas, embora inacessíveis à palpação.
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De forma a garantir o diagnóstico atempado, optou-se pela biópsia percutânea aspirativa transtorácica da massa descrita (Fig. 2), confirmando-se uma DH clássica, escleronodular, expressando CD 30, em estadio II-X-B (estadiamento segundo sistema Ann Arbor modificado), ou seja:
II – envolvimento de duas ou mais regiões ganglionares linfáticas do mesmo lado do diafragma
X – Massa adenopática mediastínica (> 10 cm ou > 1/3 do diâmetro da parede torácica)
B –“Sintomas B”:
- perda de peso inexplicada nos 6 meses antes (> 10% do peso corporal)
- febre persistente ou recorrente inexplicada no mês anterior (>38ºC)
- suores nocturnos recorrentes no mês anterior.
A biópsia óssea não evidenciou envolvimento da medula óssea pela doença. Face ao diagnóstico estar estabelecido e o grave estadiamento, a nefrologia dispensou necessidade biópsia renal privilegiando-se um rápido tratamento causal da SN e alívio sintomático inicial. Medicado com inibidor da enzima de conversão da angiotensina e diurético, teve alta encaminhado para o hospital de dia da Hematologia iniciando tratamento. Submetido a 12 semanas de quimioterapia (protocolo Standford V) seguido de radioterapia (36Gy) em manto modificado, tem estado em remissão completa desde o 2º ciclo atestada por PET. Controlada a doença oncológica, assistiu-se à regressão total de anasarca, normalização electroforese proteínas (Fig. 3) e resolução da proteinúria (Tabela 1). Decorridos 5 meses com franca melhoria imagiológica e quase 2 anos, continua sem expressar sinais de recidiva de doença onco-hematológica e renal (Fig. 4).
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DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
Até ao caso apresentado, não tinham sido descritos casos da associação de SN, DH e massa adenopática mediastínica exuberante em adultos à altura do diagnóstico4. Ao contrário de outras síndromes paraneoplásicas, ainda falta reconhecer a SN como marcador preditivo e/ou prognóstico.4-7 Em alguns casos descritos na literatura, o envolvimento renal antecede o diagnóstico de DH em mais de 12 meses e a maioria dos casos de SN deve-se a lesão de doença mínima.8-10 Contudo, a SN pode desenvolver-se após o diagnóstico de DH.9,10
Para além do estadiamento da doença hematológica, essencial à definição duma estratégia terapêutica, reconhecem-se neste caso factores de pior prognóstico como a presença de sintomas B e a massa mediastínica, muito embora a idade jovem do doente e a forma localizada da doença possam contribuir para o êxito do tratamento. Particularmente neste tipo de tumor, o estadio em que a doença se apresenta é o factor prognóstico mais importante que influencia a estratégia terapêutica e a sobrevida do doente, pelo que é fundamental a precocidade diagnóstica.11-14
Não sendo uma associação frequente é comummente descrita em crianças e pouco se conhece em adultos. A evolução deste doente ilustra bem a expressão da disfunção dum órgão, nomeadamente o rim, como sinalizador de doença subjacente em evolução silenciosa permitindo o seu diagnóstico e tratamento atempados.13,14 O doente apresentaria marcada hipoalbuminémia e proteinúria típicas da SN mas normocolesterolémia. Admitimos que as restrições alimentares cumpridas pelo doente podem ter atrasado o estabelecimento dos complexos mecanismos associados à hipercolesterolémia.8,13,14 Sem o adequado tratamento esses processos iriam certamente surgir daí se notar um doseamento normal mas perto do limite superior de referência laboratorial.
Demonstra-se ainda que a remoção cirúrgica do tumor ou, como acontece neste caso, a sua destruição por quimio ou radioterapia resolve ou diminui a proteinúria.12-14 Este fato sugere a produção de uma substância pelo próprio tumor, provavelmente uma linfoquina a condicionar as prováveis lesões mínimas na etiopatogenia da lesão glomerular renal.1,2,8 O prognóstico destes doentes é bom com o tratamento da DH a levar ao desaparecimento da proteinúria.13,14
AGRADECIMENTOS
À Dra. Ana Maria Cordeiro (Assistente Hospitalar de Radiologia do Hospital Santo António Capuchos, Lisboa) pela colaboração na interpretação dos exames imagiológicos apresentados.
À Dra. Ana Luísa Tome (Assistente Hospitalar de Hematologia do Hospital Santo António Capuchos, Lisboa) no tratamento do doente
Figura I

Fígura 1 – Avaliação imagiológica à data do diagnóstico. 1.A – Teleradiografia de tórax revelando alargamento mediastínico superior e médio (linha amarela) 1.B – Tomografia computorizada axial torácica mostrando conglomerado adenopático pré-vascular (marcação amarela)
Figura II

Figura 2 – Avaliação imagiológica à altura da realização biópsia transtorácica 2.A Tomografia computorizada em corte coronal revelando massa pré-vascular (marcação amarela) e hepatoesplenomegalia (marcação vermelha) 2.B. Tomografia computorizada em corte axial torácica mostrando massa pré-vascular (marcação amarela) onde foi realizada punção biopsia transtorácica e derrame pleural (marcação azul)
Figura III

Figura 3 – Comparação da electroforese das proteínas à data do diagnóstico e no acompanhamento 14 meses após tratamento
Figura IV

Tabela 1 – Comparação de albumina, proteínas totais e proteinúra à data do diagnóstico e no acompanhamento aos 14 meses após tratamento
Figura V

Figura 4 – Reavaliação imagiológica no acompanhamento um mês após tratamento 4.A – Teleradiografia de tórax revelando normalização da silhueta mediastínica (linha amarela) 4.B – Tomografia computorizada axial torácica mostrando marcada regressão da expressão adenopática prévia tornando-se residual com: redução de volume, redução de densidade física e resolução do derrame pleural (marcação amarela)
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