INTRODUÇÃO
A varicela é uma doença exantemática maculo-papulo-vesicular, causada pela infecção primária pelo vírus Varicella zoster (VVZ). Esta doença ocorre tipicamente em idade pediátrica, sendo que apenas 2% a 20% dos casos são descritos em adultos1-3.
Enquanto nas crianças a varicela é uma doença geralmente benigna, nos adultos associa-se a considerável morbimortalidade. Este facto deve-se à possibilidade de ocorrerem complicações graves, que são cerca de 25 vezes mais frequentes do que nas crianças2, particularmente as neurológicas e as respiratórias.
A pneumonia por VVZ constitui a complicação mais grave e mais comum no adulto4-5, podendo ter uma evolução clinica desfavorável, com instalação de insuficiência respiratória e consequente necessidade de ventilação mecânica, sendo que, nestes casos, a mortalidade pode chegar aos 50%5-6.
Neste trabalho, os autores descrevem o caso clínico de um adulto jovem imunocompetente, com pneumonia por VVZ, que evoluiu para Síndrome de Dificuldade Respiratória Aguda (ARDS) e choque séptico, alertando para a importância da intervenção precoce, para o bom desfecho da situação clínica.
CASO CLÍNICO
Homem de 33 anos de idade, com antecedentes de tabagismo activo (20 unidades maço ano), previamente saudável, recorreu ao Serviço de Urgência por febre alta (temperatura máxima de 39,5 ºC) e dispneia. Referia calafrios, suores, tosse seca e dispneia para esforços médios, com 3 dias de evolução. No dia anterior, notou aparecimento de vesículas disseminadas no tronco com subsequente distribuição centrifuga e generalização. O doente referiu contacto com criança com varicela (o filho de 2 anos) uma semana antes, negando história pregressa e vacinação para esta doença. Negava outras comorbilidades e antecedentes cirúrgicos relevantes, bem como toma de medicação crónica.
Ao exame objectivo, à admissão no Serviço de Urgência, o paciente apresentava-se consciente, orientado, colaborante, febril (temperatura timpânica 38,6ºC), normotenso (tensão arterial 122/75 mmHg), taquicárdico (frequência cardíaca de 105 bpm), taquipneico (frequência respiratória de 35 ciclos por minuto- cpm) e com saturação periférica de oxigénio de 91% em ar ambiente. Apresentava-se hidratado e suado; a nível do tronco e abdómen, apresentava vesículas em vários estádios evolutivos. Auscultatoriamente apresentava fervores crepitantes dispersos, mais audíveis à direita; sibilos à inspiração profunda e sons cardíacos rítmicos e taquicardicos.
Analiticamente (Tabela 1) destacava-se trombocitopenia e aumento de proteína C reactiva (PCR). A gasometria arterial revelou insuficiência respiratória parcial (pH 7,47; pCO2 35,5 mmHg e pO2 54,4 mmHg). Adicionalmente, as serologias virais (hepatite B, hepatite C e vírus da imunodeficiência humana) eram negativas. Foram ainda colhidas amostras de expectoração e sangue para exame bacteriológico, que também foram negativas.
A radiografia de tórax (Fig. 1) evidenciou infiltrados nodulares disseminados em ambos os campos pulmonares, compatível com doença intersticial difusa bilateral, sugestiva de pneumonia atípica. Admitiu-se o diagnóstico de pneumonia por VVZ.
Oito horas após a admissão, o paciente apresentava pO2 de 68,5 mmHg com FiO2 de 60%, por Máscara de Venturi. Foi internado na Unidade de Cuidados Intermédios, onde iniciou terapêutica com Aciclovir 750 mg endovenoso, 8/8 horas.
Após cerca de 12 horas, por agravamento da insuficiência respiratória e instabilidade hemodinâmica (pressão arterial média <65 mmHg), foi submetido a entubação oro-traqueal e iniciada ventilação mecânica na modalidade de pressão controlada, com frequência respiratória de 16 cpm, pressão de suporte de 14 cmH2O, pressão expiratória final positiva (PEEP) de 12 cmH2O e FiO2 de 70%, ficando com PaO2/FiO2 de 172 mmHg. Adicionalmente, foi iniciado suporte vasopressor com noradrenalina a 0,40 mcg/Kg/min. Foi admitido na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), com os diagnósticos de pneumonia por VVZ e choque séptico com ponto de partida respiratório, com falência respiratória e circulatória.
Ao terceiro dia de internamento, verificou-se novo agravamento hemodinâmico, com aumento da necessidade de suporte vasopressor (noradrenalina a 1 mcg/Kg/min e adrenalina 0,20 mcg/Kg/min), agravamento da relação PaO2/FiO2(142 mmHg) e agravamento dos infiltrados a nível da radiografia torácica, com poupança das bases, pelo que se admitiu ARDS primário (segundo os critérios de Berlim7).
Ao quarto dia de internamento na UCI, verificou-se agravamento clínico, com picos de febre (temperatura máxima 39,2ºC), agravamento analítico dos parâmetros inflamatórios (PCR >480 mg/L; Leucócitos 11,5 x109/L), mantendo necessidade de suporte aminérgico (quadro sugestivo de sobre-infecção bacteriana).
Foram colhidas novas amostras culturais de secreções brônquicas e sangue, com posterior isolamento de Streptococcus pneumoniae. Realizou antibioterapia com Cefriaxona 2 gr/dia, tendo-se verificado melhoria clinica e analítica, o que permitiu o desmame do ventilador a partir do dia 16 e extubação com sucesso ao dia 18. Durante o internamento na UCIP, cumpriu 10 dias de Aciclovir e 7 dias de Ceftriaxone. Foi transferido para a enfermaria de Medicina Interna após 23 dias na UCI. Teve alta hospitalar após 33 dias de internamento, clinicamente melhorado. O doente foi orientado para consulta externa de seguimento, onde faltou.
DISCUSSÃO
A pneumonia é a complicação mais grave e mais comum da infecção pelo vírus Varicella zoster nos adultos, ocorrendo entre 15% a 45% dos casos3,5,8.
Neste artigo apresenta-se o caso de um adulto jovem, do sexo masculino imunocompetente, fumador, que desenvolveu pneumonia após contacto com criança com varicela. Apesar da varicela ser uma patologia muito mais frequente nas crianças, vários estudos descrevem que a sua incidência nos adultos tem vindo a aumentar, assim como as suas complicações, com necessidade de hospitalização e com elevada mortalidade associada1,4.
Vários factores de risco têm sido identificados como estando associados ao desenvolvimento de pneumonia na varicela, nomeadamente a gravidez, o tabagismo, a imunossupressão, a doença pulmonar crónica e a severidade das lesões cutâneas4,8,9. Os indivíduos do género masculino parecem também ter um aumento de risco para esta patologia, embora este género esteja associado a maior consumo tabágico10. O paciente descrito neste caso apresenta como únicos factores de risco o tabagismo activo e o género masculino, tratando-se de um individuo imunocompetente. De facto, diversos estudos têm descrito pneumonia associada à infecção por VVZ, em indivíduos adultos imunocompetentes8,11. Este facto aponta para a relevância da vigilância clínica dos doentes adultos com varicela, uma vez que um número significativo pode progredir para complicações potencialmente fatais.
Quanto à apresentação, os sintomas mais comuns da pneumonia por VVZ incluem febre, tosse e dispneia5,9. As manifestações cutâneas ocorrem em quase 100% dos doentes3,5,10, sendo que, na maioria deles, as primeiras lesões dermatológicas surgem 1-6 dias antes dos sintomas respiratórios. No entanto, já foram descritos casos em que o aparecimento dos sintomas respiratórios precede as alterações cutâneas vesiculares4. No caso que aqui descrevemos, o doente teve os primeiros sintomas - calafrios, sudorese, febre, tosse seca e dispneia – dois dias antes do aparecimento das manifestações cutâneas. Esta cronologia de sinais e sintomas dificulta a associação ao agente causal, atrasando o diagnóstico e o tratamento. Poderá também ter contribuído para atrasar a procura, por parte do doente, de assistência médica e para a gravidade das complicações que se verificaram.
É de realçar que este doente apresentou um quadro clínico de grande gravidade, com insuficiência respiratória aguda com necessidade de ventilação invasiva, choque séptico, ARDS e sobre-infecção a S. pneumoniae. Constatou-se um perfil contínuo de agravamento hemodinâmico e respiratório, não sendo possível determinar o contributo da infecção bacteriana para a ARDS, que vinha já a desenvolver-se no decurso da pneumonia viral. Estudos anteriores revelaram que um número significativo de doentes com pneumonia por VVZ (23-87%) foi admitido na UCI por insuficiência respiratória grave, sendo que 7-44% necessitaram de ventilação mecânica3,6,9,10. Por outro lado, a ARDS constitui uma complicação importante da pneumonia por VVZ, com frequências que variam entre 6-21%3,5,10,12. Adicionalmente, Nee e Edrich2 referem que até cerca de 50% dos pacientes com pneumonia por VVZ nas UCI podem desenvolver sobre-infecção bacteriana. Já relativamente à ocorrência de sepsis associada a pneumonia por VVZ, os relatos na literatura são muito escassos, sendo que os casos descritos estão associados a doentes com estados de imunossupressão13,14.
A taxa de mortalidade descrita por pneumonia por VVZ na população adulta saudável varia entre de 10-30%9,15. Vários estudos indicam que esta taxa tem vindo a diminuir desde a década de 60 do sec. XX. Esta melhoria parece estar relacionada não somente com a disponibilidade e instituição rápida do tratamento antiviral, mas também com a maior precocidade do diagnóstico e com o melhor suporte respiratório nas UCI6. No entanto, a mortalidade em pacientes com pneumonia por VVZ submetidos a ventilação mecânica é ainda elevada, chegando aos 50%5, 6. No doente do caso apresentado, apesar do seu risco de morte ser elevado, verificou-se evolução favorável, o que poderá ter sido influenciado pela instituição precoce de terapêutica com Aciclovir, que constitui o tratamento de referência para a varicela nos adultos 4 e antibioterapia para a sobre-infecção bacteriana. Estudos anteriores sugerem que a combinação de Aciclovir com corticoterapia, poderá reduzir a mortalidade nestes doentes10. No entanto, estes estudos carecem de robustez metodológica pelo que estudos controlados são necessários para esclarecer o papel da corticoterapia no tratamento da pneumonia por VVZ.
Este caso demonstra a importância da detecção precoce da infecção primária pelo VVZ, em adultos. Pela potencial gravidade desta situação clínica, todos os adultos com varicela, especialmente os que apresentam factores de risco para desenvolvimento de pneumonia e suas complicações, devem ser cuidadosamente avaliados e vigiados e deverão preferencialmente ser admitidos em unidades hospitalares com cuidados intensivos. A rápida e adequada intervenção determina o bom prognóstico nestes doentes.Quadro I
Resultados analíticos à entrada
Parâmetros | Valor | Unidade | Intervalo de referência |
Hemoglobina | 160 | g/L | 130-170 |
Leucócitos | 7.2 | x10^9/L | 4.0-10.0 |
Plaquetas | 90 | x10^9/L | 150-400 |
Tempo de protrombina | 15.5 | segundos | 9.4-13 |
Alanina aminotransferase | 58 | UI/L | <55 |
BUN | 15 | mg/dL | 8.9-20.6 |
Creatinina (soro) | 0.9 | mg/dL | 0.7-1.3 |
Na+ | 136 | mmol/L | 136-144 |
K+ | 4.5 | mmol/L | 3.3-5.1 |
Cl- | 105 | mmol/L | 101-111 |
Proteina C reactiva | 86 | mg/L | <5 |
Figura I

Radiografia de tórax póstero-anterior à entrada no serviço de urgência
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