INTRODUÇÃO:
A crioglobulinemia é uma vasculite sistémica de pequenos e médios vasos mediada por complexos imunes que classicamente envolve a pele, rim e nervos periféricos1. Esta entidade caracteriza-se pela presença na circulação sanguínea de crioglobulinas, isto é, proteínas plasmáticas que precipitam a temperaturas inferiores a 37ºC e dissolvem com o aquecimento.2 As crioglobulinas, descritas pela primeira vez em 1933 por Wintrobe e Buell, podem ser classificadas em três subgrupos: tipo I (imunoglobulinas monoclonais), tipo II (imunoglobulinas mono ou policlonais) e tipo III (imunoglobulinas policlonais). A tipo I é uma crioglobulinemia simples, associada exlusivamente a neoplasia hematológica. As tipo II e III são mistas, associadas a infecção crónica pelo Vírus da Hepatite C (VHC) ou doenças sistémicas, como doenças do tecido conjuntivo.2
A prevalência estimada desta entidade é de 1:100.000.1 A infecção crónica pelo VHC representa 90% das causas das crioglobulinemias mistas. Nesta infecção a produção policlonal de IgG e IgM, com actividade de factor reumatóide,3 provoca imunocomplexos que se ligam aos receptores endoteliais de C1q, produzindo péptidos vasoactivos do complemento, o que origina fenómenos vasculíticos leucocitoclásticos4 (Fig. 1)
CASO CLÍNICO:
Apresenta-se o caso de uma mulher de 62 anos, caucasiana, com hipertensão arterial essencial, hipotiroidismo e hábitos tabágicos. Em 2010, foi diagnosticada, na sequência de alteração das provas hepáticas, cirrose hepática Child-Pugh A associada a Hepatite C crónica genótipo 1b. Na altura considerou-se inelegível para tratamento com Interferão peguilado e ribavirina por trombocitopenia. Não se verificaram episódios de descompensação da doença hepática desde então. Cumpre como medicação habitual: Atenolol+Clortalidona 100+25mg; Furosemida 40mg; Espironolactona 100mg; Alopurinol 300 mg.
Foi encaminhada para a consulta de Medicina Interna por lesões petequiais e maculares nos membros inferiores e dorso com agravamento com exposição ao frio e parestesias dos membros inferiores desde há 2 meses, associadas a artralgias dos punhos, cotovelos e coluna dorso-lombar, bem como a astenia. Ao exame objectivo na consulta a doente encontrava-se hipertensa, sem semiologia de ascite, com edema bimaleolar, rash eritematoso com púrpura palpável disperso pelos membros inferiores (Fig. 2 e 3) e dorso, diminuição da sensibilidade superficial em meia alta. Analiticamente, a destacar anemia normocrómica normocítica (Hb 10,7 g/dL) e elevação da creatinina para 1,44 mg/dL, com Urina II sem alterações. Da investigação, a salientar: pesquisa de crioglobulinas positiva, caracterizada por IgA, IgG e IgM positivas; diminuição da fracção C3 e C4 do complemento (63 e 9,1 mg/dL respectivamente) e factor reumatóide negativo. A biópsia da pele com vasculite leucocitoclástica e o electromiograma com “Polineuropatia sensitiva, do tipo axonal, simétrica, nos membros inferiores”. Assim, 5 meses depois, fez-se o diagnóstico de Crioglobulinemia mista no contexto de Hepatite C crónica. Do ponto de vista da cirrose, pertencia à classe Child-Pugh A, sem varizes esofágicas e a ecografia abdominal não apresentava nódulos hepáticos. Na sequência, fez tratamento antivírico com Ledipasvir + Sofosbuvir, sem ribavirina, durante 24 semanas. Logo ao primeiro mês verificou-se carga viral negativa e houve melhoria progressiva das lesões cutâneas e parestesias. Pela evolução favorável optou-se por não associar terapêutica imunossupressora. Às 24 semanas após o final do tratamento, a carga viral permaneceu negativa, o que corresponde a Resposta Viral Sustentada (RVS). Verificou-se resolução de todo o quadro clínico, normalização dos valores da hemoglobina e creatinina e negativação das crioglobulinas. Actualmente, a doente mantém-se assintomática, com cirrose hepática compensada e RVS às 48 semanas, o que constitui critério de cura para hepatite C.
DISCUSSÃO:
A crioglobulinemia é uma situação rara, cujas opções terapêuticas dependem da sua causa e sintomatologia. As crioglobulinas mistas em circulação são detectadas em 30 a 40% dos doentes com VHC. Embora apenas 5 a 30% destes doentes desenvolvam uma síndrome de crioglobulinemia mista sintomática.5 Esta é caracterizada pela tríade de Meltzer: púrpura, astenia e artralgia.6
O tratamento da crioglobulinemia é desafiante e, nos casos associados a hepatite C, a resposta clinica está estreitamente relacionada com a clearance viral. A associação de interferão peguilado com ribavirina foi o tratamento antivírico utilizado durante muitos anos, mas com as limitações de apresentar taxas de RVS inferiores a 50% 4, efeitos secundários e, na maioria dos casos não dispensar a utilização de imunossupressão, mesmo nos doentes com RVS. A introdução dos novos regimes com antivíricos de acção directa (AAD), livres de interferão, veio revolucionar o tratamento da hepatite C, e consequentemente das suas manifestações, dada a sua eficácia e segurança.
Tanto a associação Americana como a Europeia para estudo do fígado (AASLD e EASL) estabeleceram as manifestações extrahepáticas de infecção por VHC, como a vasculite crioglobulinemica, indicações prioritárias para o tratamento com os novos agentes antivirais.7,8 Os objectivos do tratamento da infecção por VHC com crioglobulinemia são a obtenção de RVS, remissão sintomática da crioglobulinemia e minimização da utilização de imunossupressores.
No respeitante à crioglobulinemia, os estudos com AAD livres de interferão, que são ainda escassos, têm reportado excelentes taxas de RVS (90% num estudo com regimes heterogéneos9 e 100% num estudo com sofosbuvir/daclatasvir10) e também resultados promissores no âmbito das manifestações clínicas da crioglobulinemia. De facto, na maioria dos doentes,a clearance viral alcançada com os novos regimes de AAD, que é rápida e sustentada, parece suficiente para alcançar uma resposta clínica completa (em 90% dos casos, segundo Saadoun D et al 10), dispensando o uso de imunossupressão na maioria dos doentes . A excepção, menos de 5% dos casos, parece corresponder aos doentes com vasculite sistémica grave nos quais a RVS não é suficiente e necessita da associação com corticoterapia e/ou rituximab para reverter a resposta imunológica estabelecida.10,11
O caso exposto representa o benefício da utilização dos novos antivíricos de acção directa no tratamento da crioglobulinemia mista em doente com infecção crónica a VHC, sem necessidade de terapêutica com imunossupressores.
Figura I

Figura 1 – Modelo patogénico proposto para a Crioglobulinemia associada ao Vírus da Hepatite C 4
Figura II

Figura 2 Rash eritematoso com púrpura palpável disperso pelos membros inferiores
Figura III

Figura 3 Rash eritematoso com púrpura palpável disperso pelos membros inferiores
BIBLIOGRAFIA
Referências bibliográficas:
1 Shachaf S, Year M. The correlation between antiphospholipid syndrome and cryoglobulinemia: case series of 4 patients and review of the literature Revista Brasileira de Reumatologia 2016; 56(1):2-7
2 Muchtar E, Magen H, Gertz M. How I treat cryoglobulinemia The American Society of Hematology 2017; 129:289-298
3 Sise M, Bloom AK, Wisocky J, Lin MV, Gustafson JL, Lundguist AL, et al. Treatment of Hepatitis C Virus-Associated Mixed Cryoglobulinemia with Sofosbuvir-Based Direct-Acting Antiviral Agents Hepatology 2016; 63(2):408-17
4 Dammaco F, Sansonno D. Therapy for Hepatitis C Virus–Related Cryoglobulinemic Vasculitis The New England Journal of Medicine 2013; 369(11):1035-45 5 Wiznia LE, Laird ME, Franks AG Hepatitis C virus and its cutaneous manifestations: treatment in the direct-acting antiviral era Journal of the European Academy of Dermatology and Venereology 2017; DOI: 10.1111/jdv.14186-
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6 Lauletta G, Russi S, Pavone F, Vacca A, Dammacco F. Direct-acting antiviral agents in the therapy of hepatitis C virus-related mixed cryoglobulinaemia: a single-centre experience Arthritis Research & Therapy. 2017; 19:74
7 Pawlotsky JM, Negro F, Aghemo A, Back D, Dusheiko G, Forns X. European Association for the Study of the Liver. EASL recommendations on treatment of hepatitis C 2016. Journal of Hepatology 2016
8 American Association for the Study of Liver Diseases. Hepatitis C Guidance: AASLD-IDSA Recommendations for Testing, Managing, and Treating Adults Infected With Hepatitis C Virus Hepatology 2015, Vol. 62, No. 3
9 Emery JS, MD, Kuczynski M, BScN, La D, Almarzooqi S, et al. Efficacy and Safety of Direct Acting Antivirals for the Treatment of Mixed Cryoglobulinemia Am J Gastroenterol 2017; doi: 10.1038/ajg.2017.49
10 Saadoun D, Pol S, Ferfar Y, Alric L, Hezode C, Ahmed SNS, et al Efficacy and Safety of Sofosbuvir Plus Daclatasvir for Treatment of HCV-Associated Cryoglobulinemia Vasculitis Gastroenterology 2017; 153: 49-52
11 Gragnani L, Visentini M, Fognani E, Urraro T, De Santis A, Petraccia L, et al. Prospective study of guideline-tailored therapy with direct-acting antiviral for hepatitis C vírus-associated mixed cryoglobulinemia Hepatology 2016 Nov;64(5):1473-1482