Introdução
As doenças vasculares hepáticas são condições raras que afetam menos de 5/10000 doentes e representam um problema de saúde mundial.1
A hipertensão portal (HP) é uma síndrome clínica definida pelo gradiente de pressão venosa portal (entre a veia porta e a veia cava inferior) superior a 5mmHg.2,3 A hipertensão portal cirrótica está associada a um gradiente de pressão venosa hepática (GPVH) elevado, contudo, na hipertensão portal não cirrótica, o GPVH é normal ou apenas ligeiramente aumentado.2
A hipertensão portal idiopática não cirrótica (HTPINC) é uma patologia rara, sendo caracterizada pela hipertensão portal intra-hepática na ausência de cirrose ou de outras causas de doença hepática.4
A HTPINC tem sido descrita mundialmente, contudo, é mais comum em homens jovens entre os 30 e 40 anos, pertencentes a estratos sociais mais baixos.2,5
A incidência da HTPINC varia de acordo com o país.6 Estudos efetuados nas décadas de 80 e 90 sugeriram que a incidência desta patologia na Índia rondava os 23%, enquanto em estudos prévios a sua incidência nos países ocidentais era de apenas 3-5%.6 Entretanto, ao longo dos anos, foram relatados menos casos, sugerindo que a incidência atual possa ser muito inferior.6
O diagnóstico de HTPINC permanece um desafio na prática clínica, porque não existe nenhum teste que possa ser considerado como gold standard, tratando-se de um diagnóstico de exclusão.1,3
Dada a dificuldade diagnóstica desta patologia e a necessidade de uma abordagem meticulosa, apresentamos um caso clínico de HTPINC.
Caso clínico
Doente de 65 anos que, em Outubro de 2014, foi admitido no Serviço de Medicina por dor abdominal generalizada, icterícia e prurido, com uma semana de evolução. Sem hábitos alcoólicos. Negou náuseas, vómitos, diarreia ou febre. Sem colúria ou acolia. Além disso, negou ingestão de chás de ervanária, cogumelos, paracetamol ou outras drogas (exceto pravastatina/fenofibrato que iniciou 2 semanas antes).
Como antecedentes pessoais destacou-se dislipidemia e aumento isolado de gama glutamiltransferase (GGT), desde há 5 anos, em seguimento pelo seu Médico de Família.
Ao exame físico destacou-se: pele e escleróticas ictéricas; palpação abdominal indolor, sem massas ou organomegalias palpáveis e sem ascite.
Analiticamente verificou-se elevação das enzimas hepáticas: aspartato aminotransferase 398U/L [N:<40], alanina aminotransferase 779U/L [N:<41], GGT 757U/L [N:10-49], fosfatase alcalina 192U/L [N:40-130], bilirrubina total 7.7mg/dL [N:<1.2], bilirrubina direta 6.6mg/dL [N:<0,3], sem alterações no hemograma, coagulação, ionograma e função renal. Tomografia computorizada abdominal sem alterações. Serologias víricas negativas [vírus de hepatite B, vírus de hepatite C, vírus de hepatite A, vírus de hepatite E, vírus de imunodeficiência humana (VIH), vírus Epstein-Barr, citomegalovírus]; autoimunidade negativa (anticorpos antinucleares, anticorpos anti-músculo liso, anticorpos anti-actina, anticorpos anti-mitocondriais, anti-M2, anti-Sp100, anti-gp210, anti-SLA/LP, anti-LKM-1, Anti-LC1, anti-Ro-52); eletroforese de proteínas séricas sem picos monoclonais; imunoglobulinas (Ig) normais: IgG 843mg/dL [N:600-1560], IgA 118mg/dL [N:90-410], IgM 153mg/dL [N:30-360]; estudo do ferro e velocidade de sedimentação normais. A colangiopancreatografia por ressonância magnética foi normal.
Foi colocada como hipótese provável drug-induced liver disease à associação pravastatina/fenofibrato. O fármaco foi suspenso e ocorreu melhoria clínica e analítica progressivas. Notificação ao Núcleo de Farmacovigilância do Norte.
Após a alta clínica do internamento iniciou seguimento em Consulta de Hepatologia. Em avaliação subsequente, o doente referiu dispepsia pelo que realizou endoscopia digestiva alta (EDA) que mostrou varizes esofágicas grau II no terço inferior.
A ecografia abdominal foi normal. O ecodoppler hepático revelou normal permeabilidade do eixo espleno-portal e dos vasos supra-hepáticos, o fluxo na veia porta apresentou a habitual orientação hepatopetal, mas com aumento da velocidade (35cm/seg). A elastografia hepática transitória foi normal (5.3 KPa; IQR 1.1).
Analiticamente a enzima conversora de angiotensina 40U/L [N:19-40] e cobre sérico 13.5µmol/L [N:8.8-17.5] foram normais. Serologia para schistosomiase negativa. Estudo pró-trombótico normal: anticorpo cardiolipina (IgG 6.5GLP-U/mL e IgM 21GPL-U/mL) [negativo <10GPL-U/mL, indeterminado 10-40GPL-U/mL, positivo >40GPL-U/mL], β2-glicoproteína (IgG 1.6U/mL, IgM 4.6U/mL) [negativo <7U/mL, indeterminado 7-10U/mL, positivo >10GPL-U/mL], anticoagulante lúpico negativo, antitrombina III 98% [N:80-120], proteína C 93% [N:70-130], proteína S 70% [N:55-140], fator V Leiden 145,4seg [N:120-300], fibrinogénio 236mg/dL [N:200-400], fator VIII 1,2U/mL [N:0.7-1.5] e estudo homozigótico para o fator V Leiden e protrombina normais.
Foi realizada biópsia hepática por via transjugular (BHTJ) que revelou gradiente de pressão portossistémico de 7mmHg. A biópsia não mostrou alterações morfológicas significativas do parênquima (Figura 1).
Após exclusão de outras causas de hipertensão portal foi assumida HTPINC. O doente mantém seguimento em Consulta de Hepatologia.
Discussão
A etiopatogénese da HTPINC permanece desconhecida.2,4 Os mecanismos potencialmente envolvidos na patogénese da HTPINC podem ser classificados em cinco categorias: distúrbios imunológicos, infeções crónicas, exposição a fármacos ou toxinas, distúrbios genéticos e trombofilia3,4,5(Figura 2).
A maioria dos doentes com HTPINC apresenta sinais e complicações da HP: esplenomegalia (74-97%), anemia (90%), hemorragia varicosa (65-72%) e ascite (50%).3,4,5 No entanto, na HTPINC, a mortalidade por hemorragia varicosa é significativamente inferior aos cirróticos, porque a maioria dos doentes apresenta função hepática preservada.4
A EDA inicial pode revelar varizes em mais de 75% dos doentes sem hemorragia varicosa na altura do diagnóstico,4 tal como foi observado no doente estudado.
Os sinais de doença hepática crónica, encefalopatia hepática, síndrome hepatopulmonar e icterícia são raros.1,4,5 A trombose da veia porta (TVP) descrita em 13-46% dos doentes está associada a um pior prognóstico e requer uma investigação mais aprofundada.4,7,8 A infeção por VIH e a hemorragia por varizes foram reportados como fatores de risco para TVP.9
O diagnóstico baseia-se em critérios clínicos e na exclusão de outras causas de HP, o que representa um desafio diagnóstico.4 No entanto, a HTPINC é uma patologia pouco conhecida e os doentes são erroneamente diagnosticados como cirróticos.3,4 O diagnóstico é baseado nos seguintes critérios: presença de sinais inequívocos de HP; ausência de cirrose hepática, fibrose avançada ou outras causas de HP; ausência de trombose das veias hepáticas ou da veia porta em estudos imagiológicos realizados no momento do diagnóstico4 (Figura 3). O estudo imagiológico hepático (ecografia abdominal com Doppler) é necessário para avaliar o parênquima e a circulação hepáticas, para determinar a presença de sinais radiológicos de HP (esplenomegalia, ascite e colaterais) e o eixo venoso porto-espleno-mesentérico.1,4,6 A maioria dos doentes apresenta sinais imagiológicos de doença hepática crónica (nodularidade hepática) e espessamento das paredes da veia porta, mas o eixo esplenoportal principal está permeável.1,4,10 Contudo, as características de HTPINC não são específicas.3
Outro teste útil para o diagnóstico de HTPINC é a elastografia hepática transitória.1,6,8,9 O valor da elastância hepática é menor (<12 KPa) na HTPINC do que na cirrose hepática ou na HP clinicamente significativa,1,6,8 tal como observado neste caso clínico. O ratio da rigidez baço/fígado é maior na HTPINC do que na cirrose hepática ou hepatite crónica.8,9 A biópsia hepática (percutânea ou transjugular) permanece essencial no diagnóstico da HTPINC, sendo imprescindível para a exclusão de cirrose hepática ou de outras doenças que potencialmente possam desenvolver HP.1,3,6 No presente caso clínico, a biópsia hepática foi normal.
Na BHTJ devem ser avaliados os gradientes, porque o GPVH na HTPINC é normal (≤5mmHg) ou apenas ligeiramente elevado (5-10mmHg, com uma média de 7mmHg).2,4 No nosso caso, o doente apresentava um GPVH de 7mmHg. O GPVH é um auxiliar no diagnóstico de HTPINC.11 Os valores baixos de GPVH e elastância hepática transitória podem ser úteis para excluir cirrose hepática num doente com sinais de HP.4
Nos doentes com HTPINC, a profilaxia (primária ou secundária) de varizes esofágicas com beta-bloqueadores é discutível, devido à ausência de ensaios clínicos randomizados e à inexistência de guidelines específicas para esta patologia.1,3,4 O shunt portossistémico intrahepático transjugular (TIPS, da sigla em inglês) é uma alternativa em doentes com hemorragia incontrolável que não respondam adequadamente ao tratamento médico ou endoscópico (8-12%), hiperesplenismo sintomático, incumprimento do tratamento endoscópico e impossibilidade de follow-up.1,2,4,5
Não existe consenso sobre o papel ou indicação para o tratamento anticoagulante e a sua utilização permanece controversa.2,4 A anticoagulação previne a progressão da doença e mantém a veia porta permeável.3 Considerando que a hemorragia gastrointestinal é a principal complicação da HTPINC aliado ao facto do desconhecimento do papel da trombofilia nesta patologia, a utilização do tratamento anticoagulante permanece uma questão controversa e não pode ser amplamente utilizado ou recomendado até serem realizados mais estudos.3 A anticoagulação apenas pode ser considerada em doentes com HTPINC que apresentam estados pró-trombóticos subjacentes ou como prevenção do desenvolvimento ou recorrência da TVP.1,2,4,5
Na HTPINC, a função hepática encontra-se preservada e as complicações da HP podem ser controladas com tratamento endoscópico e TIPS; contudo, alguns doentes podem necessitar de transplante hepático.3,4 As principais indicações para transplante hepático são: HP severa incontrolável, insuficiência hepática progressiva, síndrome hepatopulmonar, encefalopatia hepática e carcinoma hepatocelular.3,4 O prognóstico pós-transplante hepático nestes doentes é bom e a doença tende a não recorrer.3,4
O prognóstico na HTPINC é geralmente melhor do que nos doentes cirróticos com igual grau de HP.4 A HTPINC é considerada uma patologia benigna com uma sobrevivência aos 5 anos de aproximadamente 100%.3
Recomenda-se follow-up a cada 6 meses para avaliação clínica e laboratorial, no entanto, deve ser efetuada uma vigilância mais apertada nos doentes descompensados, com TVP ou síndrome hepatopulmonar.2 O controlo endoscópico deve ser efetuado a cada 3-6 meses após erradicação das varizes e a cada 6 e 12 meses nos doentes com varizes grandes e pequenas não hemorrágicas, respetivamente.2
Deverá prevalecer uma elevada suspeição clínica para esta entidade em doentes que apresentem sinais de HP sem cirrose hepática. Sendo uma entidade rara são necessários mais estudos para compreender melhor não só a sua etiopatogénese bem como as implicações daí decorrentes sobre o seu tratamento.
Figura I

Biópsia hepática por via transjugular evidencia parênquima hepático sem alterações morfológicas. A: coloração com hematoxilina-eosina; B: coloração com ácido de Schiff.
Figura II

Distúrbios associados com a hipertensão portal idiopática não cirrótica
Figura III

Cinco critérios de hipertensão portal idiopática não cirrótica
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Conflito de interesses
Os autores não têm conflitos de interesse a declarar.