Introdução
A esofagite necrosante aguda (ENA) foi descrita pela primeira vez em estudos pós-mortem por Brennan (1967)1, depois por Lee et al (1977)2 e mais tarde, através de Endoscopia Digestiva Alta (EDA), por Goldenberg (1990)3. Esta é uma entidade pouco frequente, cujo diagnóstico é apenas possível recorrendo à EDA3, com incidência estimada entre 0.01-0.0125%3-4. Além de rara, a ENA afeta predominantemente o sexo masculino (4:1), com idade média de apresentação entre 67 e 68,44 anos.4-7. A característica macroscópica principal é a visualização de uma área escura com destruição concomitante da mucosa esofágica, pelo que também é conhecida por “Esófago Negro”.3-7
A etiologia não é clara, mas sabe-se que condições de baixo fluxo sanguíneo e isquémia local constituem parte integrante da sua fisiopatologia.3,4,5,7 A hemorragia digestiva alta (HDA) é a manifestação clínica mais frequente, sendo a epigastralgia, dor torácica, disfagia ou até um estado confusional outras formas possíveis de apresentação.4-6
O objetivo deste artigo é apresentar um caso clínico que se manifestou inicialmente por HDA e epigastralgia, com diagnóstico precoce de ENA e instituição de medidas terapêuticas adequadas, constatando-se que ao fim de um ano a doente se encontrava assintomática. Desta forma os autores pretendem chamar a atenção para esta entidade que, apesar de rara, deve ser diagnosticada atempadamente, uma vez que o prognóstico depende do diagnóstico precoce e da instituição das medidas terapêuticas adequadas.
Caso Clínico
Doente do sexo feminino, 76 anos, com antecedentes de Diabetes Mellitus tipo 2, Dislipidémia, Doença Cerebrovascular e Epilepsia Vascular. Foi transportada ao serviço de urgência por quadro de vómitos em “borra de café”, epigastralgia do tipo moínha, de intensidade moderada, sem irradiação, sem fatores de alívio ou de agravamento, desconforto lombar bilateral e febre (39ºC) com 12 horas de evolução. Ao exame objetivo: hemodinamicamente estável, subfebril, ligeiramente desidratada. Abdómen globoso, com ruídos hidroaéreos presentes e normais no timbre, intensidade e frequência; dor à palpação profunda do epigastro, sem defesa, sem massas ou organomegálias palpáveis. Percussão costo-vertebral direita dolorosa. Toque rectal: dedo de luva sem sangue.
Procedeu-se à entubação nasogástrica com saída de coágulos de sangue vivo em abundante quantidade. Analiticamente verificou-se a presença de leucocitose com neutrofilia, proteína C reactiva aumentada e análise sumária de urina sugestiva de infeção urinária (Tabela 1). Assim, procedeu-se a Endoscopia digestiva alta de urgência que detetou ENA em fase de re-epitelização, de forma mais marcada no terço inferior; alguns coágulos escuros no lúmen gástrico, sem evidência ou sinais de hemorragia recente. Piloro permeável, peristalse diminuída. (Figura 1).
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A doente foi internada com a hipótese de Pielonefrite aguda e ENA secundária a gastroparésia/quadro infecioso. Foi medicada com NaCL 0,9%, Pantoprazol Intravenoso, Sucralfato, Cefuroxima intravenosa, Insulina, Enoxaparina, Clopidogrel, Carbamazepina. Durante o internamento manteve-se hemodinamicamente estável, apirética, sem novos episódios de HDA. Realizou pesquisa de estados pró trombóticos, que se revelou negativa (Tabela 2). Efetuou Tomografia Computorizada toraco-abdomino-pélvica demonstrando rim direito com cálculo com 22 x 10.7 mm, em localização piélica, espessamento irregular das paredes piélica e ligeiríssimo atraso na eliminação (Fig.2). Teve alta ao décimo dia de internamento, melhorada. Nas consultas de seguimento efetuadas ao longo dos doze meses seguintes não apresentou qualquer sintomatologia sugestiva de complicação de ENA.
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Discussão
A ENA foi descrita clinicamente pela primeira vez em 1990 por Goldenberg et al. 3 cujos critérios para caracterização macroscópica de Esófago Negro são vigentes até aos dias de hoje5:
1) Envolvimento circunferencial do esófago, com ou sem exsudados;
2) Compromisso distal com envolvimento proximal progressivo, com interrupção a nível da junção gastroesofágica;
3) Achados histológicos uniformes com compromisso severo e difuso da mucosa e submucosa, sem células escamosas reconhecíveis, fibras musculares desordenadas, hiperémia e escassos vasos trombosados sem um agente causal específico;
4) Obrigatoriedade de descartar outras hipóteses diagnósticas como melanoma maligno, acantose nigricans, melanose, pseudomelanose e ingestão de agentes corrosivos.
Na literatura só cerca de 100 casos foram descritos desde a primeira publicação em 1990. 6,8 Tal parece dever-se ao facto de ser uma entidade pouco conhecida e por vezes existirem erros diagnósticos por confusão com outras patologias. Desta forma o principal objetivo dos artigos publicados sobre o assunto destina-se a aumentar o índice de suspeição acerca da ENA, uma vez que o prognóstico pode ser melhorado se diagnosticado precocemente, de forma a instituir medidas terapêuticas corretas e atempadas.8
Quanto à sua fisiopatologia, sabe-se que o esófago recebe irrigação por segmentos em cada terço, mas a rede arterial do esófago distal é mais pobre que no terço médio ou proximal, razão pela qual a porção distal é mais sujeita a isquémia.5,6 Os mecanismos de proteção da barreira incluem as conexões intercelulares estreitas, a zona aderente e a rede de desmossomas, somando aos sistemas tampão intrínsecos (Bicarbonato, muco e fator de crescimento).5 Quanto aos mecanismos fisiopatológicos, a necrose esofágica resultante surge da soma de múltiplas condições como estado de choque, condições propícias para isquémia e a lesão corrosiva do conteúdo gástrico.3-5 Há também diminuição da função dos sistemas da barreira da mucosa e dos mecanismos de cicatrização nos doentes desnutridos e criticamente doentes.5 Alguns autores propõem um fenómeno patogénico em dois tempos: num primeiro momento intervém a isquémia e posteriormente a lesão provocada pelo refluxo de ácido clorídrico e pepsina que exacerba e perpetua a lesão local.4,5
No entanto, apesar dos fatores isquémicos serem uma causa documentada de esófago negro, os doentes hemodinamicamente estáveis também podem sofrem desta condição8, como observado no caso da doente apresentada. Desta forma, na literatura foram identificadas várias condições precipitantes e fatores de risco conforme demonstrado na Tabela 3. No caso apresentado admitem-se a microangiopatia diabética e a gastroparésia como causas para a necrose esofágica.
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A apresentação clínica mais frequente é a HDA, com hematemeses e melenas4,5,8, mas também foram reportados outros sinais e sintomas como manifestação principal, tais como epigastralgia, dispepsia, vómitos, náuseas, disfagia e febre4,5,8.
A biópsia é recomendada, mas não é necessária para o diagnóstico, tendo em conta o risco de perfuração que o procedimento acarreta. 4,7
Na marcha diagnóstica há que descartar melanose (observada na esofagite crónica), pseudomelanose, melanoma, acantose nigricans, Síndrome de Stevens - Johnson, hematoma intramural do esófago, intoxicação com tinturas ou ingestão de carvão ou outros agentes corrosivos, como cáusticos.3-6
O tratamento passa sobretudo por tratar a doença de base e estabilizar o doente do ponto de vista hemodinâmico.4-6, devendo evitar-se a hipoperfusão sistémica e optimizar-se o fluxo sanguíneo esofágico de forma a reduzir a lesão isquémica4,5. É importante um apoio nutricional adequado, sendo necessário recorrer à alimentação parentérica em alguns casos.4-6 Recomenda-se repouso intestinal por 24-48 horas5, com restrição da dieta oral, bem como entubação naso-gástrica na oclusão intestinal concomitante ou vómitos persistentes5. É importante inibir a secreção ácida e tratar o refluxo4,5. Assim, os Inibidores de Bomba de Protões em altas doses estão indicados para suprimir a secreção ácida5, bem como o uso de Sucralfato como citoprotector da mucosa esofágica, uma vez que este se liga à pepsina e estimula a produção de muco4,5. Alguns autores recomendam também o uso de antibiótico endovenoso de largo espectro.4,6
Em doentes com má evolução e com sinais de perfuração como pneumomediastino ou mediastinite, o tratamento deve ser cirúrgico.5-6 Em doentes com complicações, como estenose esofágica, o tratamento pode ser cirúrgico ou endoscópico, dependendo das características da mesma.5
O prognóstico é sombrio, a mortalidade é alta variando entre 38-60%, mas esta não é necessariamente uma doença terminal.4-7 Habitualmente as causas de morte são as patologias críticas subjacentes e não a extensão da doença esofágica, responsável por 6% das mortes.6 Ao repetir-se a Endoscopia nas 48-72 horas após o diagnóstico verifica-se regeneração da mucosa esofágica.4-5 O facto é que 25% dos doentes apresentam complicações, sendo a mais frequente a estenose esofágica (15% dos casos)5,6. A mediastinite e os abcessos mediastínicos por rutura esofágica são raros (7% dos doentes).6
Em suma, a ENA é rara, estando associada a estados de hipoperfusão sistémica e a múltiplas condições que favorecem um substrato isquémico. Deve ser suspeitada em adultos com várias comorbilidades e que se apresentam com Hemorragia Digestiva Alta. O diagnóstico é endoscópico, podendo ou não ser realizada biópsia no caso de haver dúvida quanto a outros diagnósticos diferenciais. O tratamento inicial deve ser médico mas, caso surjam complicações, poderá haver necessidade de recorrer à terapêutica cirúrgica ou endoscópica.
Este caso clínico deu origem a um trabalho apresentado sob a forma de póster no 14ºCongresso de Medicina Interna da Federação Europeia de Medicina Interna, em Moscovo, Outubro de 2015
Quadro I
Analises
Hemograma | Leucócitos 20.20 *10^3/uL, Neutrófilos 90.9 %, Hemoglobina 15.2 g/dl, Hematócrito 46 %, Plaquetas 282 *10^3/uL |
Provas Hepáticas e Coagulação | TP 13.6 sec, INR 1.30, APTT 29.9 sec; GOT 16 U/l, GPT 10 U/l, LDH 392 U/l, FA 117 U/l, GGT 30 U/l, Bilirrubina total 0.52 mg/dl, Bilirrubina direta 0.18 mg/dl |
Função Renal | Ureia 41 mg/dl, Creatinina 0.8 mg/dl |
Ionograma | Sódio 143 mmol/l, Potássio 4.2 mmol/l |
Glicose | 247 mg/dl |
Proteína C reativa | 48.59 mg/l |
Marcadores de Necrose Miocárdica | Troponina Ths 0.060 µg/l, CK 61 U/l |
Análise Sumária de Urina | Leucócitos 20/Campo, Eritrócitos 50/Campo, raras bactérias |
Urocultura | Negativa |
Quadro II
Pesquisa de estados protrombóticos
Fibrinogénio D-Dimeros Proteína C Proteína S livre Antitrombina III (funcional) Anticoagulante Lúpico Homocisteína Ac anti-cardiolipina IgG Ac anti-cardiolipina IgM Ac Anti-B2 Glicoproteína IgG Ac Anti-B2 Glicoproteína IgM | 427 mg/dl 5.29 µg/ml 75% 77% 102% 0.85 seg 20 µmo/l 1.9 MPL-U/ml 19 MPL-U/ml 2.3 U/ml 3.3 U/ml |
Figura I

Endoscopia Digestiva Alta
Figura II

Cálculo renal direito
Figura III

Tabela 3 - causas associadas à Esofagite Necrosante
BIBLIOGRAFIA
1. JL, Brennan. Case of extensive necrosis of the oesophageal mucosa following hypothermia. J Clin Pathol 1967;20:581-4
2. Kenneth R, Lee; Ernest, Stark; Frederick E, Shaw. Esophageal Infartion Complicating Spontaneus Rupture of the Thoracic Aorta. JAMA 1977; 237:1233-4
3. Steven P, Goldenberg; Stephanie L, Wain; Pierluigi, Marignani. Acute Necrotizing Esophagitis. Gastrenterology 1990;98:403-496
4. Day A, Sayegh M. Acute Oesophageal necrosis: a case report and review of the literature. Int J Surg 2010; 8(1):6-14
5. Álvaro A, Gomes; Diego, Guerrero, Albis C, Hani; Raúl, Cañadas. Esofagitis necrotizante aguda (esófago negro) com estenosis compleja secundaria. Ver Gastroenterol Peru. 2015; 35(4):349-54
6. Ángel, Pierini; Hugo, Imhof; Eduardo, Burlando; Leonardo, Guianinetti; Leandro, Pierini. Esofagitis necrosante aguda. Reporte de um caso. Acta Gastroenterológica Latino-americana 2013, Vol 43, Nº2
7. Dana L., Altenburger; Aaron S., Wagner; Shuan, Li; Jan, Garavaglia. A case of black Esophagus With Histopathologic Descriptios and Characterization. Arch Pathol Lab Med 2011;135:797-798
8. V.M. Santos; R.B. Vilaça; I.P. Gouvêa; D.A.R. Sá. Comentario a la nota clínica: Esofagitis necrotizante aguda em paciente instable. An. Sist. Sanit. Navar. 2009, Vol 32, Nº3