INTRODUÇÃO
Os exantemas pustulosos generalizados podem surgir em diversos cenários clínicos. Desde logo, existem diferentes patologias dermatológicas que, apesar de raras, cursam habitualmente com esta forma de apresentação 1,2,3. Por questões didácticas podem-se dividir de acordo com o tempo de aparecimento das pústulas. Na psoríase pustulosa generalizada (PPG), na pustulose exantemática aguda generalizada (PEAG), no pioderma gangrenoso, sífilis secundária e gonococemia disseminada as pústulas estão habitualmente presentes desde início. Com aparecimento subagudo temos a pustulose subcórnea (Síndrome de Sneddon-Wilkinson), a dermatose de IgA e as situações de pustulização secundária de exantemas víricos 1,2,3.
A psoríase pustulosa também pode ser dividida de acordo com o grau de atingimento corporal em formas localizadas e generalizadas 2,4. Estas últimas incluem formas particulares: a Síndrome de Von Zumbush, a psoríase pustulosa infantil e juvenil, o impetigo herpetiforme da gravidez e a generalização de formas primariamente localizadas.
Por oposição, existem outras entidades que apenas nas formas atípicas incluem o aparecimento de pústulas e que, pela sua gravidade, importa ter em consideração, nomeadamente a Síndrome de DRESS (Drug Rash with Eosinophilia and Systemic Symptoms), Síndrome de Sweet, Síndrome de Stevens-Johnson e Necrólise Epidérmica Tóxica 1,3, 5, 6. Os autores apresentam um caso paradigmático deste desafio diagnóstico.
CASO CLÍNICO
Apresentamos o caso de uma mulher de 47 anos, fumadora, sem alergias, doenças cutâneas ou história familiar de psoríase.
Dez dias antes do nosso primeiro contacto com a doente no Serviço de Urgência, esta havia sido medicada com amoxicilina-clavulanato, nimesulide e paracetamol na presunção de amigdalite bacteriana – diagnóstico filiado em quadro de febre, mialgias e exsudado amigdalino bilateral ao exame objectivo. Ao terceiro dia de antibioterapia surgiu exantema maculopapular eritematoso, pruriginoso, com múltiplas vesículas milimétricas dispersas. Inicialmente localizado na face extensora dos antebraços progrediu com atingimento de toda a superfície dos membros superiores e inferiores (incluindo pregas dos cotovelos e joelhos, palmas, plantas e dorso das mãos e dos pés) e tronco, poupando face e couro cabeludo (Fig. 1). O antibiótico foi suspenso e iniciou anti-histamínico. Por agravamento do quadro, com dor e aparecimento de pústulas confluentes, formando lagos, nas palmas das mãos (Fig. 2), plantas dos pés (Fig. 3) e face anterior dos joelhos, recorreu ao Serviço de Urgência. Apresentava-se febril, hemodinamicamente estável, com exsudado amigdalino bilateral (Fig.4) e o exantema já descrito, sem sinal de Nikolsky. Sem atingimento das mucosas, edema facial ou periférico, alterações auscultatórias ou outros achados de relevo ao exame físico. Analiticamente foi constatada neutrofilia (8 400/mm3) sem eosinofilia, IgE aumentada (310 UI/ml) e elevação da PCR e VS (respectivamente 30.5 mg/L e 44 mm/1ª hora); sem anemia, alterações hidroeletrolíticas, alterações do perfil hepático ou disfunção de órgão. O líquido aspirado das pústulas revelou-se amicrobiano (exame microbiológico directo e cultural), sem eosinófilos visíveis, e a pesquisa (por PCR) de vírus varicela zoster (VVZ) e herpes simplex (HSV) foi negativa. Do restante estudo analítico: serologias VIH, VHB, VHC, sífilis, citomegalovírus, vírus Epstein-Barr (IgM/IgG EBNA e IgM VCA) e HSV negativas, sem alterações da eletroforese de proteínas séricas ou consumo de complemento e estudo imunológico para LES (ANA, anti-dsDNA e anti-coagulante lúpico) negativo.
Foi realizada biopsia cutânea de dois locais distintos - lesões pustulosas do pé esquerdo e da coxa direita, semiologicamente semelhantes, na mesma fase de evolução. A histologia revelou a presença de microabcessos espongióticos subcórneos e intraepidérmicos, infiltrado inflamatório linfocitário com numerosos neutrófilos e edema da derme papilar (Fig. 5). Observou-se ainda hiperqueratose com paraqueratose, acantose e alongamento das cristas epidérmicas, características favorecedoras do diagnóstico de psoríase.
Iniciou acitretina oral 25 mg/dia e corticoterapia tópica, com franca melhoria das lesões, progressivamente mais descamativas (Fig. 6 e 7).
Ao 7º dia de internamento constatado recrudescimento da febre, sinais inflamatórios em ambos os pés acompanhados de edema maleolar bilateral exuberante e pústulas em drenagem, com conteúdo purulento e cheiro fétido, associados a aumento dos parâmetros inflamatórios. Foi realizada nova colheita de pús, por aspiração, com identificação de Proteus mirabilis multissensível. Foram instituídas medidas locais e antibioterapia sistémica com ciprofloxacina, que cumpriu durante 8 dias com resolução do quadro infeccioso.
Após oito dias de terapêutica com acitretina, já com resolução praticamente completa do quadro, desenvolveu citólise hepática (TGO=271 U/L; TGP=461 U/L) febre e eosinofilia (3 800/mm3), com a ecografia a mostrar apenas hepatomegalia homogénea. A situação foi interpretada como toxicidade pela acitretina. Suspendeu-se o fármaco e manteve-se corticoterapia tópica nas áreas de maior densidade lesional. Após suspensão da acitretina manteve aumento paulatino das transaminases e eosinofilia durante dez dias, com posterior resolução, sempre clinicamente assintomática e sem disfunção hepática. O exsudado amigdalino desapareceu sem terapêutica dirigida.
Após 4 anos de seguimento mantém-se sem recidiva das lesões, sendo apenas visíveis áreas dispersas de hiperpigmentação sequelar.
DISCUSSÃO
A PPG constitui uma forma grave de psoríase, rara, com poucos casos descritos na literatura 4. A apresentação, gravidade e resposta à terapêutica são muito variáveis, não existindo consenso relativamente ao tratamento. Inclui-se no espectro da psoríase, distinguindo-se das formas vulgares da doença pela marcada reacção inflamatória aguda. Estão presentes as alterações arquitecturais típicas, embora a inflamação, de predomínio neutrofílico e desencadeada pela activação de linfócitos T e queratinócitos da epiderme, seja o processo fisiopatológico dominante. As citocinas inflamatórias produzidas são responsáveis pelas manifestações sistémicas típicas da PPG. Entre os factores desencadeantes contam-se alguns fármacos (entre estes a terbinafina, minociclina e outros antibióticos), redução súbita de corticoterapia, infecções, gravidez, traumatismo mecânico, sobre-exposição à luz UV e stress emocional 2,4,7,8.
Nos doentes com psoríase prévia, o aparecimento de PPG segue-se, na maioria dos casos, ao rápido descalar de corticoterapia. Quando a PPG constitui o episódio inaugural da doença, é geralmente mais precoce e desencadeado por infecção vírica que actua como trigger. Estas duas formas de apresentação associam-se a diferenças na análise dos subtipos de HLA 4,7, 9,10.
A PEAG é uma reacção cutânea grave, desencadeada por fármacos em cerca de 90% dos casos, mas também descrita em associação a infecções agudas (sobretudo víricas), picadas de insectos, metais pesados, quimioterapia, radiação e PUVA 1,3,6. Entre os fármacos implicados contam-se vários anti-infecciosos (amoxicilina, quinolonas, cloroquina, sulfonamidas, terbinafina) e diltiazem 1,6. Em termos fisiopatológicos consiste numa reacção de hipersensibilidade tipo IV, mediada por células T. Estas, em resposta ao estímulo, migram para a derme e epiderme 1. Desempenham um papel fulcral na destruição dos queratinócitos e expressão de citocinas que activam e recrutam os neutrófilos. Estes infiltram as vesículas subcórneas e intra-epidérmicas formando pústulas 1,3,6.
A distinção entre PPG e PEAG pode ser extremamente difícil. No caso descrito, apesar da associação temporal entre o aparecimento do exantema e o início da antibioterapia ser compatível com toxicodermia, esta mesma associação, assim como a infecção documentada, podem explicar o desencadear de um episódio de PPG.
Clinicamente, ambas se manifestam agudamente, com exantema pustular generalizado associado a febre e elevação dos parâmetros inflamatórios 1,2,3. O exantema é tipicamente pruriginoso, com pústulas estéreis e não foliculares,que podem coexistir com outros tipos de lesões cutâneas; surge nas áreas intertriginosas, progredindo com atingimento dos membros e tronco. Em ambas o sinal de Nikolsky pode ser positivo. O atingimento ligeiro das mucosas, com erosões da mucosa oral, fissura da língua e queilite é comum às duas entidades 1,2,3,6. Nos casos de PPG são frequentes artralgias, astenia, fraqueza muscular, náuseas e diarreia. Se não for apropriadamente tratada pode levar a hipoproteinemia, hipocalcemia, desidratação, anemia e evoluir para síndrome de distress respiratório agudo (ARDS) e disfunção multiorgânica 2,4,10. É frequente a documentação de título elevado de anticorpo anti estreptolisina O e imunoglobulinas 4. Em alguns casos de PEAG documenta-se eosinofilia periférica 6.
Histologicamente ambas se caracterizam pela presença de pústulas espongióticas subcórneas e intraepidérmicas, infiltrado inflamatório com predomínio neutrofílico e edema da derme papilar. A presença de alterações arquitecturais psoriasiformes, nem sempre de fácil identificação (acantose, hiperqueratose paraqueratótica, papilomatose e identificação dos microabcessos de Munro), favorece o diagnóstico de PPG 4. Estas alterações estão ausentes nos casos de PEAG1. Nestes, é possível, por vezes, identificar eosinófilos perivasculares e vasculite leucocitoclástica 1,2,6.
Enquanto a PEAG é caracteristicamente uma reacção autolimitada, com resolução espontânea em cerca de 15 dias, a PPG necessita de instituição de tratamento dirigido, podendo posteriormente recidivar ou evoluir para outras formas de doença psoriática como psoríase vulgar ou artrite psoriática 1,4,6.
No caso descrito foram inicialmente equacionadas outras hipóteses de diagnóstico que se descrevem de seguida:
A sífilis secundária pode produzir inúmeros sinais e sintomas, sendo que o exantema é o mais característico. Geralmente difuso e simétrico, pode apresentar máculas, pápulas e até mesmo pústulas, habitualmente atingindo palmas das mãos e plantas dos pés. Podem existir sintomas sistémicos (como febre, odinofagia, mialgias e emagrecimento), linfadenopatia, alopécia, hepatite, doença osteo-articular, renal, neurológica, gastrointestinal e oftalmológica. O diagnóstico é serológico. Trata-se com penicilina 11, 12. No caso em questão a doente doente desconhecia lesões de sífilis primária e tinha VDRL negativo.
A gonorreia é outra doença sexualmente transmissível, provocada pela Neisseria gonorrhoeae. A pele pode ser afectada por inoculação directa, atingimento secundário a partir de infecção primária das mucosas ou doença disseminada, tipicamente com pequeno número de lesões indolores, que desaparecem rapidamente mesmo sem terapêutica. Acompanham-se de sintomas articulares, genitourinários e febre. O diagnóstico tem por base a história clínica, exame físico e estudos laboratoriais (microscopia, cultura e técnicas de ácidos nucleicos). Os achados cutâneos são inespecíficos,mas podem incluir pústulas. Trata-se com cefalosporinas de terceira geração eventualmente associados a azitromicina ou doxiciclina 13.
O pioderma gangrenoso é uma dermatose neutrofílica rara que se apresenta como uma doença inflamatória e ulcerativa da pele. A forma pustular está relacionada com a doença inflamatória intestinal, tende a aparecer durante as exacerbações e acompanha-se de febre e artralgias. O diagnóstico é de exclusão. O tratamento passa por medidas locais, corticóides e agentes imunossupressores nas formas mais graves 14.
Uma palavra para a Síndrome de DRESS: associada a fármacos (estando a associação com a amoxicilina bem documentada), caracteriza-se por exantema, eosinofilia e sintomas sistémicos. Nas suas formas atípicas pode apresentar-se com pustulose. No entanto, a cronologia de aparecimento da Síndroma de DRESS caracteriza-se por ter um tempo de latência mais longo, ainda que variável (2 a 8 semanas), entre o uso do fármaco e o aparecimento de sintomas.
No caso descrito a biópsia cutânea foi essencial para o diagnóstico definitivo. Foi instituída terapêutica sistémica com acitretina, um derivado do ácido retinóico cujo mecanismo de acção, embora não totalmente esclarecido, envolve diminuição da proliferação dos queratinócitos 10. Entre os efeitos adversos mais comuns está o atingimento hepático, que neste caso obrigou à suspensão do mesmo. Entre as outras opções terapêuticas contam-se imunossupressores, nomeadamente a ciclosporina, metotrexato e corticoterapia sistémica. Está também descrito benefício na terapêutica tópica adjuvante (corticóides, derivados da vitamina D, emolientes e, após a fase aguda, PUVA) 10.
Outro aspecto a discutir é o aumento da susceptibilidade a infecção, nomeadamente a Pseudomonas aeruginosa e Staphylococcus aureus, resultante da perda da integridade cutânea. Por este motivo os sinais clínicos de infecção deverão ser vigiados. A antibioterapia profilática está desaconselhada 10.
--------------------
Agradecimentos: ao Dr. Diogo Libânio, pela colaboração no caso.
Figura I

Exantema macula-papular eritematoso com múltiplas vesículas milimétricas, inicialmente localizado à face extensora do antebraço bilateralmente (1), progredindo com atingimento generalizado da superfície corporal e agravado pelo aparecimento de pústulas confluentes, formando lagos, nas palmas das mãos (2), plantas dos pés (3) e face anterior do joelho.
Figura II

Exantema macula-papular eritematoso com múltiplas vesículas milimétricas, inicialmente localizado à face extensora do antebraço bilateralmente (1), progredindo com atingimento generalizado da superfície corporal e agravado pelo aparecimento de pústulas confluentes, formando lagos, nas palmas das mãos (2), plantas dos pés (3) e face anterior do joelho.
Figura III

Exantema macula-papular eritematoso com múltiplas vesículas milimétricas, inicialmente localizado à face extensora do antebraço bilateralmente (1), progredindo com atingimento generalizado da superfície corporal e agravado pelo aparecimento de pústulas confluentes, formando lagos, nas palmas das mãos (2), plantas dos pés (3) e face anterior do joelho.
Figura IV

Exsudado amigdalino bilateral
Figura V

Histologia da biópsia cutânea, evidenciando pústulas espongióticas subcórneas e intraepidérmicas, infiltrado inflamatório linfocitário e características favorecedoras do diagnóstico de psoríase (hiperqueratose com paraqueratose, acantose e alongamento das cristas epidérmicas).
Figura VI

Após instituição da terapêutica com acitretina e corticoide tópico, observou-se melhoria franca das lesões, que se tornaram progressivamente mais descamativas.
Figura VII

Após instituição da terapêutica com acitretina e corticoide tópico, observou-se melhoria franca das lesões, que se tornaram progressivamente mais descamativas.
BIBLIOGRAFIA
1. Speeckaert M, Speeckaert R, Lambert J, Brochez L. Acute generalized exanthematous pustulosis: an overview of the clinical, immunological and diagnostic concepts. Eur J Dermatol 2010; 20 (4): 425-33.
2. Duckworth L, Maheshwari M, Thomson M. A diagnostic challenge: acute generalized exanthematous pustulosis or pustular psoriasis due to terbinafine. Clin Exp Dermatol2011; 37: 24-27.
3. Harr T, French L. Severe cutaneous adverse reactions: acute generalized exanthematous pustulosis, toxic epidermal necrolysis and Stevens-Johnson syndrome. Med Clin N Am 2010; 94: 727-742.
4. Iizuka H, Takahashi H, Ishida-Yamamoto A. Pathophysiology of generalized pustular psoriasis. Arch Dermatol Res 2003; 295: S55-S59.
5. Oliveira A, Sanches M, Selores M. O espectro clínico da Síndrome de Stevens-Johnson e necrólise epidérmica tóxica. Acta Med Port 2011; 24: 995-1002.
6. Fernando S. Acute generalized exanthematous pustulosis. Australas J Dermatol, 2012; 53: 87-92.
7. Muto M, Ohmura A, Hamamoto Y, Konishi Y, Shiozawa S, Youn J et al. Generalized pustular psoriasis: strategy for identification of psoriasis susceptibility gene. Arch Dermatol Res 2003; 295: S60-S62.
8. Marrakchi S, Guigue P, Renshaw B, Puel A, Pei X, Fraitag S. Interleukin-36-receptor antagonist deficiency and generalized pustular psoriasis. N Eng J Med 2011; 365: 320-8.
9. Ding Y, Yi X, Yu N.Serum IgE levels are increased in patients with generalized pustular psoriasis. Clin Exp Dermatol2013; 38: 549-552.
10. Umezawa Y, Ozawa A, Kawasima T, Shimizu H, Terui T, Tagami H et al. Therapeutic guidelines for the treatment of generalized pustular psoriasis (GPP) based on a proposed classification of disease severity. Arch Dermatol Res 2003; 295: S43-S54.
11. Hook E. Syphiis. Lancet. Volume 389, No. 10078, p1550–1557, 15 April 2017
12. Singh A. Syphilis: Review with Emphasis on Clinical, Epidemiologic, and Some Biologic Features. Clin Microbiol Rev. 1999 Apr; 12(2): 187–209.
13. Mayor M. Diagnosis and Management of Gonococcal Infections. Am Fam Physician.2012 Nov 15;86(10):931-938.
14. Wollina U. Pyoderma gangrenosum – a review. Orphanet J Rare Dis. 2007; 2: 19. Published online 2007.