Introdução
Os enfartes talâmicos bilaterais são raros, representando cerca de 0.6% dos acidentes vasculares cerebrais (AVC)1e 22 a 35% dos enfartes talâmicos, com aparente predomínio do género masculino (58%) e com idade média de 61.5 anos.2
Classicamente, e embora possam existir algumas variações, a circulação talâmica divide-se em quatro territórios: anterior, paramediano, infero-lateral e posterior e é garantida por múltiplos vasos que se originam da artéria comunicante posterior e dos segmentos 1 e 2 da artéria cerebral posterior (ACP).2
A artéria de Percheron é uma variante anatómica pouco frequente, presente em 4-12% da população3, responsável pela irrigação do território paramediano de ambos os tálamos. A oclusão da artéria de Percheron (OAP) produz um padrão de isquémia típico – enfarte talâmico paramediano bilateral, com ou sem envolvimento mesencefálico.1,3,4,5
O seu diagnóstico é habitualmente realizado tardiamente. Os principais motivos pelo atraso diagnóstico são a variabilidade de apresentação clínica, dificuldade no diagnóstico imagiológico agudo por tomografia computorizada (TC) e o reduzido reconhecimento desta condição dada a sua raridade.6
No presente artigo descrevemos um caso de enfarte em território da artéria de Percheron visando aumentar o reconhecimento desta entidade, salientando as suas características clínico-imagiológicas. Trata-se também do primeiro caso descrito de bloqueio auriculoventricular (BAV) completo em concomitância com uma OAP.
Caso clínico:
Mulher, 73 anos de idade, com história de hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2 e dislipidémia, medicada com indapamida, losartan, metformina e sinvastatina. Foi levada ao Serviço de Urgência (SU) por quadro transitório de confusão mental, cefaleia holocraniana pulsátil e palpitações com início ao acordar, com duração inferior a 1 hora, mantendo apenas queixas de náuseas.
À admissão apresentava-se diaforética, com tensão arterial 190/86mmHg, frequência cardíaca 76bpm, sem alterações ao exame neurológico. Durante a permanência em SU verificou-se alteração súbita do estado de consciência e ao exame neurológico encontrava-se estuporosa, em mutismo, midríase bilateral fixa, reflexos córneos presentes, resposta motora em fuga ao estímulo doloroso, hipotonia generalizada e sinal de Babinski bilateralmente. O estudo analítico com doseamento de tóxicos não revelou alterações. O electrocardiograma apresentava um padrão de BAV de segundo grau Mobitz tipo 2. Foi realizada uma TC crânio-encefálica (CE) que não revelou alterações. A ressonância magnética (RM) CE mostrou hiperdensidades talâmicas paramedianas bilaterais nas sequências T2 (Figura 1) e ponderações T2Fluid-Attenuated Inversion Recovery(FLAIR) (Figura 2) eDiffusion-weighted imaging(DWI) (Figura 3), compatível com enfarte em território vascular da artéria de Percheron. A angiografia por RM apenas identificou uma configuração fetal da ACP esquerda.
Por alteração do padrão respiratório (bradipneia com períodos de apneia) foi entubada e admitida na Unidade de Cuidados Intensivos. Iniciou terapêutica com heparina não-fraccionada durante 3 dias, mantendo-se posteriormente sob terapêutica antiagregante dupla com ácido acetilsalicílico 100mg e clopidogrel 75mg. A extubação foi possível ao 3º dia de internamento. A RM-CE de reavaliação evidenciou áreas de hipersinal em T2, FLAIR e DWI a interessar o mesencéfalo em topografia mediana e ambos os tálamos. Realizou eco-doppler dos vasos do pescoço que revelou placa de ateroma homogénea, cálcica, de superfície regular na bifurcação carotídea direita, condicionando redução do lúmen < 50%. O eco-doppler transcraniano foi dificultado por má janela acústica temporal bilateralmente, permitindo apenas documentar a patência da ACP esquerda (segmentos P1 e P2), assim como da circulação vertebro-basilar até ao seu segmento distal. O ecocardiograma mostrou insuficiência tricúspide moderada e hipertensão pulmonar grave; não foi detectada nenhuma fonte embolígena cardíaca.
Perante melhoria do estado de consciência foi transferida ao 8º dia para o Serviço de Medicina Interna, apresentando flutuação do estado de consciência entre a vigília e períodos de obnubilação, bem como parésia dos movimentos oculares verticais. Nos períodos de obnubilação era objectivado bradicárdia e hipotensão que revertiam espontaneamente com o despertar. Foi efectuada monitorização electrocardiográfica de 24 horas com evidência de períodos de bradicárdia com BAV completo, motivando colocação de pacemaker definitivo.
Às 6 semanas de internamento, com estabilização do ciclo vigília-sono após iniciar sertralina 50mg, teve alta pontuando 2 na escala modificada de Rankin. Faleceu após 2 anos de seguimento na sequência de neoplasia maligna do urotélio.
Discussão:
O tálamo é composto por vários núcleos e integra diversas funções corticais importantes.7A vascularização talâmica foi inicialmente estudada por Gerard Percheron que, em 1976, descreveu três tipos de variação na vascularização dos núcleos paramedianos: tipo I, variante mais frequente, em que as artérias perfurantes derivam dos segmentos 1 das artérias cerebrais posteriores; tipo II que corresponde a uma artéria única, artéria de Percheron, que emerge do segmento 1 de uma das artérias cerebrais posteriores, vascularizando ambos os tálamos e a porção cefálica do mesencéfalo; e tipo III que resulta de uma arcada de artérias perfurantes que derivam de uma ponte estabelecida entre os segmentos 1 de ambas as artérias cerebrais posteriores.2
A OAP provoca enfarte bilateral dos núcleos paramedianos do tálamo e porção cefálica do mesencéfalo.2,5As etiologias mais comuns são o cardioembolismo e a microangiopatia. Os factores de risco para OAP incluem hipertensão arterial, diabetes mellitus, fibrilhação auricular, fluxo não-laminar da artéria basilar, aneurismas (nomeadamente do topo da basilar), shunts direito-esquerdo, estados de hipercoagulabilidade e disfunção sistólica grave do ventrículo esquerdo.2,7
O envolvimento dos núcleos paramedianos dos tálamos e mesencéfalo resulta em síndromes clínicos complexos, caracterizados por uma variedade de sinais e sintomas desde défices motores a sintomas comportamentais, dificultando o seu diagnóstico. A tríade de apresentação mais comum é: alterações da memória (85%), paralisia do olhar vertical (65%) e coma (42%). O espectro de alteração do estado de consciência pode ser variável, desde confusão mental, letargia até estupor ou coma. Outros achados clínicos descritos incluem a ptose palpebral, midríase bilateral, oftalmoplegia externa completa e afasia.1,4,5,7O caso aqui exposto apresentava dois sinais da tríade clínica mais comum: coma e paralisia do olhar vertical, este último apenas objectivado mais tarde com a melhoria clínica progressiva da doente, tendo dificultado a suspeita clínica inicial de OAP.
Adicionalmente, a doente desenvolveu períodos de bradicárdia com BAV completo, sem evidência de lesão miocárdica de novo e sem relação medicamentosa.Peruzzotiet al.descreveram um caso de bradicárdia aguda em concomitância com uma OAP, propondo que as lesões isquémicas resultantes possam conduzir a uma disrupção da actividade simpática eferente do hipotálamo posterior.8No presente caso não foi possível determinar indubitavelmente uma relação causa-efeito entre as lesões isquémicas e a bradicárdia com BAV completo. Contudo, perante a ausência de diagnóstico prévio de disritmia, consideramos a possibilidade das mesmas estarem relacionadas. Este é o primeiro caso descrito na literatura de BAV completo em concomitância com OAP.
A baixa sensibilidade da TC dificulta este diagnóstico e no caso aqui exposto a TC-CE inicial foi normal. A RM-CE é o exame de eleição e o diagnóstico precoce é melhor realizado na sequência DWI.5A TC de perfusão poderá ser uma alternativa na ausência de RM no SU, porém o seu papel na OAP ainda não foi avaliado. Esta técnica tem a vantagem de ser capaz de diferenciar o parênquima cerebral isquémico em risco, potencialmente recuperável – zona de penumbra -, daquele irreversivelmente perdido – zona de enfarte. Apresenta a desvantagem de frequentemente apresentar artefactos ao nível do mesencéfalo reduzindo a qualidade do exame.9
A OAP raramente é visualizada na angiografia por RM; e a angiografia convencional não é habitualmente indicada porque a não visualização da artéria de Percheron não exclui o diagnóstico.7
O diagnóstico diferencial imagiológico inclui a síndrome do topo da basilar, a trombose venosa cerebral, a encefalopatia de Wernicke, a mielinólise extrapôntica, encefalites virais ou inflamatórias, a doença de Wilson, outros processos tóxico-metabólicos, neoplasias infiltrativas e a doença de Creutzfeldt-Jakob.2,4,7
É importante que os médicos que trabalhem no SU estejam familiarizados com a síndrome de OAP para um diagnóstico precoce de modo a possibilitar a instituição do tratamento agudo do AVC que poderá tornar o prognóstico mais favorável.1,5,10
O tratamento eficaz com activador do plasminogénio tecidular (tPA) foi documentado em dois casos de OAP.11Cassourret et al. documentaram um caso de OAP, cujo diagnóstico foi realizado já fora da janela terapêutica, em que o início de heparina intravenosa se mostrou eficaz.12O prognóstico vital e funcional do enfarte talâmico bilateral é geralmente favorável.2
No caso clínico exposto, o diagnóstico de OAP foi realizado com base na clínica e achados imagiológicos típicos fornecidos pela RM. Na ausência demismatchFLAIR-DWI, a doente não foi candidata a trombólise intravenosa, tendo iniciado heparina intravenosa com base na literatura existente. Alguns autores recomendam terapêutica anticoagulante a longo termo.13A nossa doente teve alta sob antiagregação uma vez que não foi detectada fonte embolígena.
Em conclusão, em doentes que apresentam flutuação do estado de consciência, principalmente se associado a paralisia do olhar vertical ou alteração da memória, a OAP deve ser considerada e a RM-CE (ou TC de perfusão) realizada dentro da janela terapêutica para quando o tratamento agudo ainda é possível. Contudo, na ausência destas duas técnicas, perante um alto índice de suspeita clínica e TC CE normal, sugerimos que o início da trombólise intravenosa não deva ser adiado. Por fim, consideramos que enfartes bitalâmicos com envolvimento mesencefálico carecem de monitorização cardíaca e intervenção terapêutica urgente em caso de arritmia potencialmente fatal.
Figura I

T2 axial – hipersinal em T2 sugerindo lesões talâmicas internas de maior expressão dimensional à direita.
Figura II

FLAIR: hipersinal na sequência sugerindo lesões talâmicas internas de maior expressão dimensional à direita.
Figura III

Imagem DWI: padrão de restrição à difusão sugerindo lesões talâmicas internas de maior expressão dimensional à direita.
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