INTRODUÇÃO:
A cirrose representa uma fase avançada na progressão da doença hepática crónica, com impacto marcado na sobrevida dos doentes. É a 7ª causa de morte na Europa1, 5ª em Portugal, sendo responsável por 2.500 mortes/ano2. A ascite, que em 85% dos casos ocorre no contexto de cirrose3, é também a sua complicação mais comum4.
A peritonite bacteriana espontânea (PBE) afeta 10% dos cirróticos5,6,7, representando 25% das intercorrências infeciosas nestes doentes, com uma mortalidade atribuível de 10-30%8,9. Carateriza-se pela infeção do líquido ascítico (LA), com uma contagem absoluta de PMN≥250/mm3, após excluídos focos infeciosos intra-abdominais10. O seu reconhecimento atempado e diagnóstico diferencial com peritonite bacteriana secundária são essenciais, uma vez que esta última, apesar de constituir <5% dos casos, requer tratamento cirúrgico10,11,12.
A etiopatogénese da PBE ainda não está completamente esclarecida, mas alguns avanços surgiram desde que o termo “espontânea” foi usado em 196413. Pensa-se que a hipertensão portal e sua repercussão na circulação esplâncnica se associe a sobrecrescimento bacteriano e alterações na permeabilidade intestinal, facilitando a translocação bacteriana e colonização linfática mesentérica5,7,9. Os organismos tradicionalmente isolados são enterobactérias (até 75%) como aE.Coli(50%) e aKlebsiella pneumoniae, sendo também reconhecida uma incidência crescente de cocos gram+ (génerosStreptococcuseStaphylococcus), com prevalências de 34% nalgumas séries5,9,14. Para além destes, microrganismos reconhecidamente pouco patogénicos, como aListeria monocytogenesestão a ser cada vez mais implicados na PBE, com cerca de 50 casos descritos na literatura6,7,8,15.
CASO CLÍNICO
Homem de 54 anos, leucodérmico, com diagnóstico prévio de cirrose alcoólica, proposto para transplante hepático (MELDNa 26) em 2014. Abandonou seguimento em 2015, mantendo significativos hábitos etílicos (cerca 200g álcool/dia). Foi admitido com quadro de 2 semanas de febre (Taxilar 38,5oC), dor e distensão abdominal progressiva. Ao exame objetivo apresentava-se febril (TT38,2oC), hemodinamicamente estável, com encefalopatia hepática grau 1, ictérico, sem sinais de desidratação, com diminuição dos sons respiratórios na base pulmonar direita e exuberantes edemas bilaterais e simétricos dos MIs. Tinha abdómen globoso, com sinais de ascite e dor abdominal difusa à palpação. Foi realizada paracentese diagnóstica e evacuadora, com saída de 3L de líquido amarelo-escuro, mostrando 1080 leucócitos/mm3(30% PMN (324/mm3), 70% mononucleares), GASA 2.1 g/dL, proteínas totais 0.9 g/dL. Das análises realizadas, destaca-se: macrocitose VGM 114 fL, sem anemia, 8.390 leucócitos/mL, (6550 Neutrófilos/mL, 760 linfócitos/mL), PCR 4.2 mg/dL, sem disfunção renal, hiponatremia 127mmol/L, INR 2.2, BT 12 mg/dL (BD 6.77 mg/dL), 120.000 Plaquetas/uL. A ecografia abdominal revelou volumosa ascite, com repermeabilização da veia umbilical, esplenomegalia 14x7cm e fígado dismórfico, de contornos bosselados e padrão micronodular.
Assumido quadro de cirrose descompensada, no contexto de PBE, iniciou terapia empírica com cefotaxima 2g ev q8h e fez albumina para profilaxia de síndrome hepatorrenal. Em D2, foi isoladaListeria monocytogenesno LA, sem isolamentos microbiológicos na urocultura e hemoculturas. Ajustou-se antibioterapia para ampicilina 2g ev q4h. Por apresentar melhoria clínica muito lenta, ao 3º dia de ampicilina, foi realizada 2ª paracentese, apresentando melhoria citoquímica (LA límpido, com 388 leucócitos/mm3, 77 PMN/mm3(20% PMN), 80% mononucleares, GASA 2.5 g/dL, PT 1.5 g/dL) e exame cultural negativo. O antibiograma prévio não mostrou resistências. O doente cumpriu 15 dias de ampicilina, com melhoria do quadro laboratorial e parâmetros inflamatórios negativos. Apresentou boa resposta a terapia diurética com 200mg espironolactona/80mg furosemida. Teve alta em D21, com antibioterapia profilática com cotrimoxazol, referenciado a consulta de Hepatologia.
DISCUSSÃO
A PBE manifesta-se clinicamente por febre (sintoma mais comum), dor ou desconforto abdominal e alterações do estado mental10. A frequência das manifestações clínicas é variável, sendo que cerca de 13% dos doentes são assintomáticos16.
Os critérios diagnósticos incluem uma contagem absoluta de PMN≥250/mm3e isolamento microbiológico cultural (monomicrobiano em >90% casos5) no LA, uma vez excluído foco de infeção intra-abdominal. É importante que a paracentese diagnóstica seja realizada antes do início da antibioterapia, uma vez que esta pode comprometer o exame cultural – uma dose de cefotaxima 2g pode levar 6h depois a uma perda de sensibilidade de 86%10.
A terapia empírica de largo espectro deve ser iniciada logo que possível. Um curso de 5 dias de cefotaxima é o tratamento mais utilizado, uma vez que cobre 95% das bactérias envolvidas (incluindo as 3 mais isoladas:Escherichia coli,Klebsiella pneumoniae,Streptococcus pneumoniae) e atinge concentrações ideais no líquido ascítico5,9,10,14. Alternativamente, outras cefalosporinas 3G ou fluoroquinolonas têm sido propostas, embora sejam escassos os estudos comparativos.
AListeria monocytogenesé um bacilo gram+ ubíquo, colonizando até 5% dos adultos. A principal via de transmissão é fecal-oral, estando associada a contacto com meios rurais e a consumo de lacticínios não pasteurizados7,9. É causa rara de infeção clinicamente significativa, sendo uma doença de declaração obrigatória em Portugal. Atinge sobretudo grávidas, recém-nascidos, idosos ou imunocomprometidos.
O primeiro caso de PBE porListeriafoi descrito em 197717e, desde então, apesar de raros, um crescente número de casos tem sido relatado, nomeadamente em Espanha e no Egito, onde a prevalência alcança os 24.4% nalguns centros hospitalares5,15,17. Os fatores predisponentes a listeriose incluem etilismo crónico, neoplasias em tratamento imunossupressor, cirrose hepática, infeção por VIH, doença de Crohn, hemocromatose18. No nosso doente, não foram detetados outros fatores de risco predisponentes para além da cirrose e etilismo.
Uma particularidade deste caso é que o LA no qual se isolou aListeria monocytogenesapresentava um predomínio linfocítico suspeito (70%), à semelhança do descrito em alguns casos prévios9,19e tal como é bem reconhecido no líquor de doentes com meningite por esta bactéria.
A duração ótima do tratamento com ampicilina não é consensual, mas vários estudos recomendam um período mínimo de 10-14 dias8.
Este e outros casos enfatizam alguma fragilidade da antibioterapia empírica atualmente empregue na PBE, tendo em conta que não abrangeListerianem alguns cocos gram+, cada vez mais isolados. Por isso, outros esquemas empíricos começam a ser contemplados como piperacilina/tazobactam, meropenem, ou o usoad initiode ampicilina8,9.
Também a profilaxia de nova PBE é alterada no caso de listeriose, devendo ser feita com cotrimoxazol (800/160mg) id p.o, 5-7d/semana e não norfloxacina 400 mg/d, que é habitualmente a 1ª linha, mas não cobreListeria.
CONCLUSÃO
Tendo em conta a incidência de cirrose alcoólica em Portugal, é imperioso reconhecer a importância que a listeriose pode ter no contexto de PBE.
AListeria monocytogenes, apesar de ubíqua, é um raro patogéneo humano, afetando sobretudo imunocomprometidos. O doente cirrótico, sobretudo se alcoólico, parece ser particularmente susceptível, o que tem sido corroborado pelo crescente número de isolamentos em PBEs. É importante considerá-la nos doentes refratários à antibioterapia, visto que as terapêuticas empírica e profilática de 1ª linha não contemplam esta bactéria.
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