Introdução
A incidência global de infecção sintomática por Entamoeba histolytica é de 50 milhões de casos/ano; a prevalência é maior nos países em desenvolvimento devido às más condições sanitárias; nos países desenvolvidos a infecção ocorre, sobretudo, em imigrantes e viajantes de áreas endémicas; é uma parasitose com elevada mortalidade (40,000-100,000/ano).1 A transmissão ocorre por via fecal-oral; formas infecciosas quísticas podem permanecer viáveis no meio ambiente por semanas a meses.
Caso clínico
Mulher de 79 anos, portuguesa, natural de Lisboa, reformada da profissão de talhante, com história conhecida de quistos hepáticos, dispepsia e HTA; seguimento regular nas consultas de gastrenterologia e Medicina Geral e Familiar; medicada habitualmente com telmisartan, carvedilol, lanzoprazol e domperidona.
Sem hábitos tabágicos ou alcoólicos. Sem viagens recentes ao estrangeiro; sem viver ou contactar com animais vivos.
Recorreu ao SU do Hospital de São Francisco Xavier (HSFX) por febre com dois dias de evolução (temperatura máxima de 40ºC), calafrios, tosse não produtiva e desconforto abdominal; ao exame objectivo salientava-se rebordo hepático palpável 2 cm abaixo da grelha costal, desconforto à palpação do hipocôndrio direito, sem defesa ou irritação peritoneal. Analiticamente, no SU: leucócitos 9100 com Neu 95%, Lin 3%; PCR 15 mg/dl; AST, ALT, GGT e FA e urina II sem alterações (tabela 1); radiografia torácica: sem lesões pleuroparenquimatosas agudas; ultrasonografia (US) abdominal: quisto hepático complexo no segmento IV com septos espessos; outros quistos dispersos mas simples; colheu sangue e urina para exames culturais e iniciou terapia empírica com amoxicilina/clavulanato.
Ao 3o dia de internamento houve isolamento nas hemoculturas de Escherichia coli; escalada antibioterapia para ceftriaxone e gentamicina de acordo com teste de sensibilidade aos antibióticos.
Ao 8º dia de internamento, por manutenção de febre e elevação dos parâmetros inflamatórios realizou tomografia computadorizada abdominal que revelou quisto hepático complicado (figura 1); foi escalada antibioterapia para piperacilina/tazobactam. Analiticamente, AST, ALT, GGT e FA sem alterações; serologias para CMV, VEB, VHB, VHC, VHA e HIV negativas; pesquisa de ovos e parasitas negativa em três amostras de fezes; serologia negativas para Echinococcus granulosum, Echinococcus multiloculares e positiva para Entamoeba histolytica pelo que cumpriu dez dias de metronidazol seguidos de sete dias de paramomicina, parte da qual realizou em ambulatório.
Para melhor caracterização do abcesso hepático realizou ao 14º dia de doença (com seis dias de piperacilina/tazobactam) ressonância magnética (RM) abdominal (figura 2) que excluiu existência de fístulas e revelou diminuição do processo inflamatório. Evoluiu de forma favorável com resolução progressiva das queixas e melhoria dos parâmetros inflamatórios (tabela 1).
Dezoito meses após o internamento encontra-se assintomática, tendo realizado controlo imagiológico com TC-Abdómen que revelou vários quistos simples e resolução do quisto no segmento IV (figura 3).
Discussão
A ultrassonografia (US) é o exame de primeira linha para a detecção e, muitas vezes, diagnóstico de lesões hepáticas focais. A caracterização ultrassonográfica das lesões hepáticas focais deve fazer referência ao número, localização, dimensão, morfologia, contornos, ecogenicidade, ecoestrutura, relação com estruturas adjacentes e vascularização. Nos casos em que o diagnóstico clínico-ultrassonográfico inicial é apenas presuntivo ou há suspeita de complicações torna-se necessário realizar outros exames complementares, mais frequentemente, exames dinâmicos com contraste (TC, RM, US com contraste);2 outras vezes, para o diagnóstico definitivo, é necessário recorrer a técnicas invasivas para a colheita de material para exame anatomo-patológico ou microbiológico; outras vezes, ainda, é fundamental a conjugação de dados de imagem com exames serológicos. O diagnóstico diferencial das lesões hepáticas aparece resumido na tabela 2.2Na ultrassonografia, o quisto amebiano aparece, geralmente, como uma lesão solitária, volumosa, arredondada, hipoecogéncia mas heterogénea (semelhante a um quisto piogénico), sendo mais frequente no lobo direito. A parede espessa, caracteristicamente observada na TC, não é observável na ultrassonografia. O diagnóstico definitivo baseia-se na pesquisa de antigénio ou de DNA nas fezes e na serologia em plasma. A pesquisa de ovos e parasitas em fezes tem uma baixa sensibilidade e especificidade. 1
A infecção por Entamoeba histolytica tem início com a ingestão de água ou alimentos contaminados de fezes com a forma quística do parasita; estes podem permanecer no meio ambiente por semanas a meses e, uma vez ingeridos, os trofozoítos são libertados a nível do cólon podendo causar doença.
A generalidade das infecções por Entamoeba histolytica é assintomática4. A amebíase intestinal pode manifestar-se sob a forma de disenteria aguda com febre, dor abdominal, diarreia sanguinolenta e/ou mucóide; ou, apenas, por clínica insidiosa de dor abdominal e diarreia. A amebíase intestinal pode complicar-se de colite necrotizante, megacólon tóxico ou ameboma. A manifestação extra-intestinal mais frequente é o abcesso hepático (1% dos casos de amebíases). O diagnóstico baseia-se na serologia e no estudo imagiológico e, eventualmente, na punção por agulha fina; menos de 50% dos doentes têm antigénio positivo nas fezes.1 As complicações mais frequentes são a rotura de abcesso com extensão ao peritoneu, pleura e pericárdio e, a disseminação hematógena com lesão do pulmão, pele ou sistema nervoso central.
Nas formas invasivas recomenda-se o tratamento com nitroimidazoles (metronidazol ou tinidazol), seguido do tratamento endoluminal (paramomicina, iodoquinol ou diloxida) uma vez que, após toma de nitroimidazois, 40-60% dos doentes mantêm parasitas no intestino.1,2 O metronidazol e a paramomicina não devem ser administrados em simultâneo porque, este último, tem como reacção adversa frequente diarreia o que dificulta a avaliação da resposta ao tratamento. As formas não invasivas podem ser tratadas apenas com fármacos endoluminais.
Conclusão
Em Portugal, dado o elevado número de indivíduos provenientes de regiões endémicas, é provável a ocorrência de amebíase com tradução clínica; este caso, evidencia a importância desse diagnóstico (Quisto hepático amebiano) mesmo na ausência de epidemiologia sugestiva, seguramente, porque há contaminação e transmissão no nosso meio. De salientar, que não se encontra disponível nas farmácias portuguesas nenhum fármaco para o tratamento endoluminal.5
Quadro I
Evolução analítica sumária ao longo do internamento
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| Dia 0 | Dia 2 | Dia 8 | Dia 14 |
Hemoglobina (g/dl) | 12,1 | 10,6 | 9,6 | 10,4 |
Leucócitos (x10/L) | 9100 | 11700 | 11200 | 7000 |
Neutrófilos | 95 | 91 | 82 | 94 |
Linfócitos | 3 | 5,9 | 13 | 32 |
Proteína C Reactiva (mg/dl) | 15,1 | 29,9 | 23 | 3,8 |
Quadro II
Diagnóstico diferencial das lesões hepáticas 4, 6
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TUMORES | INFECCIOSA |
Mestastases Cistoadenoma Cistoadenocarcinoma Hiperplasia nodular focal Sarcoma indifernciado Carcinoma hepato celular | Abcesso piogénico Quisto hidatídico Quisto amebiano Abcesso fúngico |
HEREDITÁRIAS/CONGÉNITAS | OUTROS |
Doença de caroli Doença poliquistica hepática Harmatomas | Linfomas Tumores neuroendócrinos |
Figura I

TC-Abdómen (8º dia de internamento): quisto hepático no segmento IV (seta amarela), com 65x57mm, complexo, multiloculado de paredes espessas com captação de contraste à periferia e no parênquima hepático adjacente; em topografia contígua, vesícula biliar não distendida, de paredes estratificadas e espessadas sugerindo processo inflamatório; coexistem lesões quísticas simples dispersas cujas dimensões oscilam 10 e 25 mm.
Figura II

RM-Abdomen (14º dia de internamento): quisto hepático (seta amarela) localizado no segmento IV, complexo, multiloculado com redução ligeira da espessura parietal e da inflamação perilesional; vesícula biliar (seta branca) sem sinais inflamatórios; não se observam fenómenos de fistulização de lesão infectada. Vários quistos hepáticos simples dispersos.
Figura III

TC-Abdomen (18 meses após alta hospitalar): fígado de tamanho normal, várias imagens hipodensas sugestivas de quistos serosos que não apresentam captações anómalas do seu contorno parietal e o seu conteúdo é homogeneamente hipodenso.
BIBLIOGRAFIA
1. Haque R, Huston C, Hughes M, Houpt E, Petri W. Amebiasis. N Engl Med 2003; 348: 1565-732.
2. Koenraad J. Mortele, MD, Pablo R. Ros, MD . Cystic Focal Liver Lesions in The Adult: Differential CT and MR Imaging Features, RadioGraphics 2001; 21:895–910F.
3. Pons and J. M. Llovet , Approaching focal liver lesions Liver Oncology. Service of Hepatology. IDIBAPS. Hospital Clínic. Barcelona. SpainAllen G.P.
4. Ross, et al. Enteropathogens and Chronic Ilness in returning travelers, NEJM 2013: 368;19
5. Infarmed.pt. Base de dados de medicamentos. Disponível em: app7.infarmed.pt/infomed/inicio.php